O conceito de Infratech e o futuro da infraestrutura

Gabriel Fiuza de Bragança¹, Rodolfo Benevenuto², Reinaldo Fioravanti³, Fabio Ono⁴, Paulo Coelho Ávila⁵, Diego Botassio⁶, Eduardo França Amaral⁷

Não é novidade que a transformação digital, advinda do que muitos consideram como a quarta revolução industrial, afetará de maneira disruptiva praticamente todas as áreas da economia e mesmo da sociedade. No entanto, em razão da sua essencialidade e estrutura institucional, contratual ou regulatória com participação pública, os setores de infraestrutura merecem uma reflexão pormenorizada. A necessidade de integração entre setores e o surgimento de novas soluções tecnológicas e comerciais em todas etapas da cadeia dos setores de energia, saneamento e transportes têm imposto desafios cada vez maiores à forma como esses setores serão estruturados e regulados. O setor de telecomunicações, frequentemente pouco lembrado como setor de infraestrutura, servirá de base e alicerce para os demais. Com a ampliação do 5G, a introdução de sensores em diversas áreas e a difusão da chamada IoT (Internet das Coisas), haverá um expressivo aumento no volume de dados produzidos por ativos de infraestrutura tradicional como rodovias, portos, hidrômetros, medidores de energia etc. Telecomunicações será a infraestrutura das infraestruturas que beneficiará e será beneficiada pelas demais indústrias de rede. Mais do que nunca, os aparatos normativos e contratuais, tão adaptados à realidade de monopólios naturais tradicionais e quase imutáveis por tantas décadas, terão que ser repensados de forma que a inovação seja a sua mais nova protagonista.

Já existem alguns exemplos do potencial dessa transformação digital em setores de infraestrutura. Na Austrália, a chamada plataforma “de olho na água” traz a comunidade para a fiscalização da qualidade da água por meio de aplicativos de coleta de imagens. Na área de energia, até pouco tempo, o modelo centralizado de gerenciamento da rede era o único viável em razão do patamar tecnológico e da dificuldade de gerenciar uma rede complexa de eletricidade. Porém, com o advento de medidores inteligentes, geração descentralizada de energia solar e registro de transações via blockchain, negociações de compra e venda par a par (peer to peer) de energia têm se tornado cada vez mais econômicas e tecnicamente viáveis. Na área de saneamento, em países africanos como Niger e Quênia, já se operam modelos de pré-pagamento de serviços de água voltados à população de baixa renda. Sensores e válvulas inteligentes em hidrômetros agora permitem a redução de perdas de água e a gestão de uso de água pelos usuários por meio de aplicativos e avisos por SMS.

O conceito de InfraTech, segundo o G20 (2020a), deriva de Infrastructure Technology e é definido como “a integração entre materiais, máquinas e tecnologias digitais em todo o ciclo de vida da infraestrutura”. Em sua definição mais ampla, InfraTech é qualquer tecnologia que afete o desenvolvimento, entrega e operação contínua das infraestruturas e dos serviços a elas vinculados. Isso pode incluir tecnologias usadas para definir os requisitos estratégicos de infraestrutura ou permitir a tomada de decisões orientada por dados, inovações em finanças que suportam o gerenciamento de um ativo, ou tecnologias que suportam o relacionamento que um cliente tem com os serviços de infraestrutura. De uma perspectiva de política pública, é importante fazer a distinção entre o design de tecnologias nas operações de planejamento e entrega de infraestrutura versus a integração de tecnologias nas próprias estruturas, o que muda a natureza dos ativos de infraestrutura de simples objetos inanimados para sistemas de informação dinâmicos.

Os benefícios e oportunidades de criação de valor a partir de InfraTech podem ser destacados em três aspectos centrais:

  • Melhorar a eficiência e reduzir os custos ao longo do ciclo de vida de um ativo de infraestrutura: funções analíticas aprimoradas, gerenciamento de dados, comunicações e automação têm benefícios financeiros significativos. Melhor planejamento e tomada de decisão através da InfraTech não apenas reduz custos, mas também prolonga a vida útil dos ativos. Além disso, os custos de manutenção podem ser significativamente reduzidos por meio de análises avançadas (por exemplo usando inteligência artificial), custos reduzidos de monitoramento, intervenções remotas e peças impressas em 3D sob demanda, por exemplo.
  • Aumentar o valor econômico, social e ambiental: a InfraTech pode ajudar a criar oportunidades econômicas, usando novas soluções para conectar pessoas e empresas, melhorar a compreensão do comportamento dos usuários (por exemplo, por meio de data science) e, também, ajudar a criar empregos e negócios orientados para a tecnologia. Também pode ampliar o acesso a serviços sociais essenciais (por exemplo, saúde, educação), garantindo serviços mais seguros e confiáveis para os usuários. A InfraTech também melhora a resiliência, permitindo uma resposta mais rápida e direcionada a desastres, como a pandemia de COVID-19. Finalmente, a InfraTech pode melhorar a qualidade do ar, reduzir emissões, contribuir com os objetivos da agenda climática e contribuir com diversos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis).
  • Criar mercados por meio de tecnologia e infraestrutura: tecnologias digitais estão reestruturando sistemas produtivos, desintermediando as cadeias produtivas (como o caso das empresas de transporte por aplicativo – TNC, por sua sigla em inglês) e criando mercados, exigindo a alteração e adaptação dos modelos de operação dos serviços e dos ativos de infraestrutura. O surgimento de novas atividades produtivas em redes domésticas e globais e novas formas de prestação de serviços públicos exigem maior eficiência e confiabilidade do suporte dos sistemas de infraestrutura à transformação em curso.

Os capex (investimentos adicionais de capital) e opex (custos operacionais), necessários para maior incorporação de soluções de InfraTech em projetos de infraestrutura tradicional, precisam ser analisados levando-se em conta seus retornos sociais, ambientais e econômicos de longo prazo. Essa relação benefício-custo tende a ser ainda maior considerando o aumento da intensidade e frequência de emergências globais e desastres naturais, que demandam soluções de infraestrutura mais resilientes e integradas. Ademais, a redução dos custos e o aumento dos benefícios das opções da InfraTech têm evoluído rapidamente devido às mudanças nas curvas de maturidade da tecnologia e no contexto em que a tecnologia é aplicada.

Por outro lado, a InfraTech também apresenta desafios que devem ser corretamente endereçados, incluindo:

  • Riscos de implementação: dada a complexidade das tecnologias emergentes, há potencial para impactos adversos não intencionais na segurança e confiabilidade. As tecnologias nascentes também trazem riscos adicionais devido à maior incerteza tecnológica;
  • Riscos econômicos e da força de trabalho:  a adoção de novas tecnologias nos setores de infraestrutura pode resultar em incompatibilidades de qualificação profissional e reestruturação do mercado de trabalho associada à sua implementação e operação. Novas habilidades serão necessárias para usar, efetivamente, as novas tecnologias e gerenciar as operações da InfraTech; isso indica um esforço de requalificação da mão de obra atual e futura no setor de infraestrutura;
  • Riscos sociais: a implantação assimétrica da InfraTech pode exacerbar a desigualdade no acesso a tecnologias e serviços de infraestrutura (digital divide). Além disso, o aumento exponencial de dados gerados por meio da InfraTech apresenta desafios sociais e técnicos, incluindo maiores riscos de segurança cibernética e problemas relacionados à privacidade, proteção e confidencialidade de dados;
  • Riscos ambientais: o aumento dos requisitos de armazenamento de dados de muitas soluções InfraTech resultará em maior consumo de energia (por exemplo, data centers, refrigeração etc.). Além disso, atualmente, algumas soluções da InfraTech dependem de recursos naturais escassos (por exemplo, lítio);
  • Risco de obsolescência: a rápida e constante evolução da tecnologia muitas vezes desafia os horizontes de investimento de longo prazo dos projetos de capital e pode “prender” os investidores a projetos InfraTech que se tornam desatualizados ou não mais adequados. Embora a evolução rápida das tecnologias seja acompanhada por custos decrescentes, a substituição ou atualização de ativos pode causar uma interrupção significativa nos parâmetros do projeto ou grandes despesas de capital.

Em face a tantos desafios e oportunidades, há claramente um cenário de convergência entre as infraestruturas tradicionais (não previamente habilitadas ao emprego de novas tecnologias) e a infraestrutura digital, bem como a integração entre diferentes setores. Por exemplo: entre saneamento e telecomunicações, com os hidrômetros digitais; entre telecomunicações, estrada de ferro e terminal portuário, com o incremento de eficiência para o escoamento da produção agrária das fazendas do interior de SP ao porto de Santos; entre energia e telecomunicações, com os smartgrids;  entre os setores de transporte e energia, com a implementação de infraestrutura para recarga de carros elétricos, e; entre transporte e telecomunicações, com a implementação de cobertura celular em rodovias. No caso de novos projetos (greenfield), há uma clara oportunidade de emprego de soluções tecnológicas inovadoras desde as fases iniciais de concepção deles. No caso de projetos de modernização das infraestruturas existentes (brownfield), já há possibilidade de adoção de sensores e outras aplicações digitais capazes de coletar e gerenciar dados tornando mais eficiente a operação das infraestruturas. Tal fenômeno requererá a integração e a harmonização do planejamento, governança e, principalmente, da regulação de diferentes setores.

O GiHub (Global Infrastructure Hub), a partir da agenda de InfraTech do G20, tem compilado estudos de caso e aplicações globais de soluções de InfraTech. Em 2020, foram identificados 130 casos diferentes, cobrindo mais de 40 países e envolvendo diferentes aplicações como transporte, energia, água e esgoto em diferentes estágios dos projetos. Conforme a figura abaixo, atualmente a maior parte as aplicações concentram-se em transporte, seguido por água e envolvem tecnologias de sensores, IoT (Internet das Coisas), IA (Inteligência Artificial) e analytics – a análise de grandes bases de dados para tomada de decisões, além de outras. É razoável que tais tecnologias tenham destaque, visto que envolvem a coleta de dados (IoT e sensores) e o tratamento de dados (analytics e IA) que são processos centrais para a cadeia de valor tecnológica. Exemplos detalhados de experiências internacionais, alinhadas aos elementos para a adoção da InfraTech, podem ser consultados no documento “GI Hub Stocktake of Infrastructure Technology Use Cases” (G20, 2020b).

  Fonte:  GI Hub (2022).

O Brasil tem as suas complexidades adicionais. A Nota Técnica SEI nº 29640/2022/ME (SDI/ME, 2022) discorre em detalhes sobre temas prementes relacionados à InfraTech já enfrentados no cenário nacional. Entre eles, destacam-se: (i) a exploração de receitas acessórias em concessões; (ii) os compartilhamentos de diferentes infraestruturas, galerias subterrâneas e postes; (iii) a abertura, digitalização, transição energética e descentralização do setor elétrico, e; (iv) as questões tributárias e de cibersegurança. Com o intuito de estabelecer uma visão estratégica para o desenvolvimento da InfraTech no Brasil, e aplicar as melhores práticas globais, ainda que emergentes, a divisão de qualidade de investimentos de infraestrutura (QII – Quality Infrastructure Investiment) do Banco Mundial, em parceria com o Ministério da Economia, farão uma avaliação pioneira do nível de prontidão (readiness assessment) do Brasil para adoção de soluções de InfraTech considerando diversas dimensões, tais como regulatória, institucional, de planejamento, governança, capacitação e mercado.

Enquanto no Brasil o poder público vem trabalhando fortemente para impulsionar essa visão e agenda estratégica para InfraTech, no âmbito do Fórum de Infraestrutura do G20 outras organizações, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), têm liderado iniciativas em vários países da América Latina, como Colômbia, Peru e Chile focadas em quatro pilares principais. São eles: i) empresas do setor; ii) o setor público; iii) os consumidores, e; iv) o ecossistema de inovação da infraestrutura. As iniciativas apoiadas, além de incluir os aspectos regulatórios, institucionais e de planejamento como discutido anteriormente, inclui um esforço concentrado para desenvolvimento de pilotos de soluções digitais específicas que possam ser catalizadores da transformação digital; isso permite reduzir os riscos de sua implementação, atraindo mais inovação para o setor. Exemplos incluem aplicações para manutenção de rodovias usando computer vision e inteligência artificial que têm reduzido em até 80% os custos de gestão de rodovias. Ainda, essa é uma ferramenta que apoia empresas do setor elétrico a reduzir fraudes, por meio da utilização de inteligência artificial para identificar anomalias no consumo de eletricidade, entre outros. Se os dados são o novo petróleo do século XXI, então há, no Brasil, um novo pré-sal ainda pouco explorado e justamente “abaixo” das estruturas, ou seja, na INFRA-estrutura. Porém, ainda não há um modelo comprovado para extrair o valor desse “pré-sal” de dados na infraestrutura; portanto, estão abertas as oportunidades para investimentos na interoperabilidade de sistemas e no desenvolvimento de novos modelos regulatórios e contratuais que favoreçam a coordenação e o compartilhamento de dados de InfraTech. Em um contexto de mudanças demográficas e climáticas aceleradas, alta fragmentação e baixa digitalização dos setores de infraestrutura, é fundamental que novas políticas públicas considerem os desafios e oportunidades da agenda InfraTech. Não se pode vislumbrar uma economia do futuro com alta produtividade e geração de valor para a sociedade sem que trabalhemos, hoje, por uma infraestrutura compatível com esse futuro. Em se tratando de infraestrutura no Brasil, não dá mais para vivermos num recorrente futuro do pretérito. Como diria Peter Drucker, “a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”.

Referências
Banco Mundial (2020). InfraTech Policy Toolkit. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/34326.
G20 (2020a). G20 Riyadh InfraTech Agenda. Disponível em: https://cdn.gihub.org/umbraco/media/3008/g20-riyadh-InfraTech-agenda.pdf.
G20 (2020b). GI Hub Stocktake of Infrastructure Technology Use Cases. Disponível em: https://cdn.gihub.org/umbraco/media/3060/the-global-infrastructure-hubs-reference-note-on-InfraTech-stocktakejuly-2020-revised.pdf.
GI Hub (2022). Infrastructure Technology Use Cases. Disponível em: https://www.gihub.org/infrastructure-technology-use-cases/.
McAfee (2019). Navigating Cloudy Sky. Disponível em: https://www.mcafee.com/enterprise/en-us/assets/executive-summaries/es-navigating-cloudy-sky.pdf.
SDI/ME – Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia (2022). InfraTech – Oportunidades para Digitalização da Infraestrutura. Processo SEI 19654.100176/2022-18.
Banco Interamericano de Desenvolvimento (2021). Estrategia de Transformación Digital Para El Sector de Infraestructura y Energía 2021- 2025.
¹Gabriel Fiuza de Bragança: doutor em Economia pela VUW/NZ (Universidade Victoria de Wellington, Nova Zelândia), mestre em Economia pela EPGE/FGV (Escola Brasileira de Economia e Finanças / Fundação Getulio Vargas) e em Matemática pelo Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada).
²Rodolfo Benevenuto: doutor em Engenharia de Transportes pela Trinity College Dublin, MBA (Master of Business Administration) em Gerenciamento de Projetos pela FGV e engenheiro eletricista pela USP (Universidade de São Paulo).
³Reinaldo Fioravanti: doutor em Engenharia de Transportes pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mestre em Administração Publica pela Universidade de Harvard e em Engenharia Logística pelo Zaragoza Logistics Center e MBA pela Business School São Paulo.
Fabio Ono: mestre em Desenvolvimento Econômico pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), MBA em Gestão Financeira e Controladoria pela FGV, pós-graduação pela Harvard School of Government.
Paulo Coelho Ávila: arquiteto, urbanista e mestre em Planejamento Urbano pela UnB (Universidade de Brasília) e MBA em Transformação Digital e o Futuro dos Negócios pela PUC (Pontifícia Universidade Católica).
Diego Botassio: mestre em Economia Aplicada e especialista em Data Science e Analytics pela USP.
Eduardo França Amaral: especialista em regulação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) com MBA em Gestão Estratégica de Pessoas e especialização em Direito do Estado e da Regulação, ambos pela FGV, e graduação em Direito pela UCAM (Universidade Candido Mendes).

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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