Mauricio Portugal Ribeiro*1
Eu queria dedicar esta nota àqueles que escrevendo ou falando sobre equilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos ainda conseguem me surpreender, quebrando, assim, o tédio da longa quarentena. A crítica direta, sem arrodeio, é o melhor presente que lhes posso ofertar:
1- Estão tornando-se comuns artigos ou palestras de juristas, operadores do direito, reguladores e agentes públicos que relativizam a possibilidade de enquadramento da pandemia do coronavírus como força maior ou caso fortuito nos contratos administrativos e na legislação sobre eles, enfatizando a particularidade da situação que estamos vivendo e os aspectos que dificultariam esse enquadramento ou seus efeitos. Esses artigos ou palestras sustentam enquadramentos, teorias e soluções customizadas para a pandemia do coronavírus. Parece-me normal o pensamento novidadeiro surgir em momentos de crise. É, de fato, tentador encontrar uma particularidade no que estamos vivendo que requeira uma nova teoria jurídica, um novo marco legal. E, evidentemente, isso não ocorre por acaso. Uma nova teoria, uma situação única, é sempre uma chance para protagonismo de quem a aborda, de quem resolve destrinchá-la, uma oportunidade para expressão de potência intelectual. O grande problema é que isso cria insegurança jurídica, na forma de dúvida sobre como o sistema jurídico deve tratar a pandemia. Seria muito mais útil focar a criatividade em aspectos pouco abordados em relação ao reequilíbrio dos contratos em tempos de pandemia, por exemplo, no tema do seu cálculo ou da forma de efetivação desse desequilíbrio.
2- O fato de o impacto da pandemia ser avassalador não muda a sua natureza jurídica. Ela se caracteriza como caso fortuito ou força maior e os atos de autoridades que criam exigências ou restrições para combatê-la se caracterizam como fatos do príncipe ou da administração.
3- O risco dos eventos de caso fortuito, força maior, fato do príncipe e fato da administração, no caso dos contratos administrativos, foi atribuído expressamente à administração pública, pelo art. 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93. Portanto, os impactos negativos da pandemia nos contratos administrativos – reduções de receitas ou aumentos de custos dos contratados da administração – devem ser objeto de compensação econômica e financeira, da administração pública ao seu contratado.
4- Se, por conta do enorme impacto da pandemia sobre os contratos, houver dificuldades práticas para a administração pública arcar com esses custos, isso é um outro problema, que não muda a atribuição do risco nem a natureza jurídica do evento. No limite, se for impossível o reequilíbrio pelos impactos futuros da pandemia – por exemplo, no caso das concessões de aeroportos, se for inviável à administração pública pagar aos concessionários montantes suficientes para manter, ao longo de todo o contrato, os níveis de receita pré-pandemia –, as partes podem extinguir o contrato por força maior ou caso fortuito, com pagamento da indenização por investimentos não amortizados2, ou negociar alguma alternativa de reestruturação de contratos que entenda razoável para assegurar a sua continuidade. A extinção do contrato administrativo por força maior está prevista no nosso sistema jurídico, no artigo 78, inciso XVII, da Lei 8.666/93.
5- Também me parecem estéreis discussões sobre a aplicação de limites legais à alteração dos contratos administrativos, por exemplo os previstos no artigo 65, §§ 1° e 2° da Lei 8.666/93, nos casos em que for necessária a reestruturação dos contratos para reequilibrá-los ou adaptá-los ao, assim chamado, “novo normal” pós-pandemia. Essas reestruturações não se caracterizam como alterações do contrato para efeito da incidência dos limites legais e contratuais. É que a pandemia e os atos de autoridades que criam restrições ou exigências para combatê-la estão rigorosamente previstos em lei e nos contratos (como caso fortuito, força maior, fatos do príncipe ou da administração). Portanto, essas reestruturações, se necessárias, serão realizadas rigorosamente em cumprimento ao originalmente pactuado3.
6- Na mesma linha da crítica realizada no item 1 acima, parecem-me também precipitadas afirmações como “temos uma nova realidade e os parâmetros tradicionais não se aplicam a essa nova realidade” quando se fala em reequilíbrio de contratos em geral e particularmente de concessão e PPP (parceria pública-privada), por consequência da pandemia do coronavírus. As cláusulas de força maior e caso fortuito são abertas, largas, exatamente porque devem funcionar como “válvulas de escape”, uma abertura no sistema jurídico para o indeterminado, de maneira que elas me parecem perfeitamente adequadas para lidar com a pandemia.
7- Por isso, é preciso ponderar se faz sentido transformar essas válvulas de escape, essas normas abertas em regras, com hipóteses de incidência e consequências claramente definidas em lei, como de certa forma buscam os projetos de lei em tramitação na Câmara4 e no Senado5 sobre esse tema. A tentação natural dos legisladores, estimulados em parte pela sanha novidadeira dos que insistem em afirmar uma nova realidade jurídica, é de criar regras legais, por exemplo para disciplinar o reequilíbrio dos contratos administrativos pela ocorrência da pandemia. Mas, ao transformar normas abertas em regras, é possível que se deixe de fora algum aspecto imprevisível que não seja considerado quando da elaboração da regra ou que se revele posteriormente. Nesse sentido, seria mais conveniente tratar a pandemia com normas abertas, como as que já disciplinam em lei ou nos contratos o risco de força maior e caso fortuito. A adaptabilidade dessas normas ao imprevisível, ao imponderável, à incerteza, ao que não é viável calcular é uma característica desejável no presente momento. Por outro lado, é preciso reconhecer que em vista do, assim chamado, apagão das canetas, a tendência é que os agentes públicos fiquem inertes em face da pandemia, a não ser que tenham proteção legal para as ações extraordinárias que são necessárias neste momento. Isso é um problema particularmente grave nos casos em que é indispensável que o poder concedente ou agência reguladora mova-se para realizar o reequilíbrio financeiro do contrato durante a pandemia, sob pena de a concessionária não resistir aos seus impactos, afetando a continuidade da prestação de serviços essenciais. É preciso, portanto, ponderar as vantagens e desvantagens de se transformar neste momento as normas abertas, que estão vigentes, em regras. Talvez a solução em relação a esse tema esteja no caminho do meio: por exemplo, na aprovação de normas que autorizem agentes públicos a adotarem ações extraordinárias, sem, no entanto, definir os contornos dessas ações.
8- Parecem-me também sem sentido as evocações pela doutrina jurídica ou pelos pareceres emitidos por consultorias jurídicas de órgãos ou entes públicos de “teoria da imprevisão”6, “teoria econômica dos contratos” ou coisas do gênero. Ainda quando se refiram a teorias já consolidadas como a da imprevisão, isso é também manifestação do pensamento novidadeiro criticado no item 1 acima. Note-se que na dogmática jurídica essas teorias são construídas para situações para as quais o sistema jurídico não tem resposta. No caso da pandemia, a situação é a oposta. A resposta está lá clara sob a forma de caso fortuito e força maior com pelo menos 200 anos de elaborações em torno delas, e com o mérito de terem sido usadas com sucesso em pelo menos uma pandemia anterior (a gripe espanhola) e duas grandes guerras.
9- Também me parece equivocado o anúncio por agentes públicos de que não permitirão que concessionárias com histórico de inadimplência contratual usem a pandemia como “tábua de salvação” para suas concessões. Inadimplementos de concessionárias devem ser apurados em processos administrativos específicos e eventualmente gerar punições, por exemplo, a aplicação de multas e/ou reequilíbrio do contrato em favor do poder concedente/usuário. Por outro lado, a pandemia do coronavírus é evento de desequilíbrio previsto nesses contratos e gerará apuração em processo administrativo específico e reequilíbrio a favor dos concessionários. No limite, se o contrato de concessão for extinto por caducidade nos próximos meses (por inadimplemento do concessionário), o seu direito a reequilíbrio pelos impactos da pandemia continuará valendo e deverá se converter em indenização em dinheiro pelo erário ao concessionário.