iNFRADebate: As amarras da judicialização no desenvolvimento do setor elétrico nacional

Gustavo Valadares*

O Senado Federal retoma os trabalhos neste segundo semestre com a possibilidade de aliviar o peso do enorme desafio que o setor elétrico nacional vem enfrentando. Aprovado no fim de junho na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 10.985/2018, de autoria do então senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), retorna à Casa para que os senadores referendem as emendas feitas pelos deputados. O texto, que estabelece novas condições para a repactuação do risco hidrológico, se aprovado, pode destravar o ambiente de judicialização no MCP (Mercado de Curto Prazo) e liberar mais de R$ 25 bilhões ao ano para a liquidação dos contratos de comercialização de energia no ambiente livre.

O cenário, que se arrasta há mais de sete anos, apresenta capítulos cada vez mais dramáticos. Em julho, o nível de liquidação financeira do MCP atingiu pífios 11,9% dos contratos celebrados: dos R$ 8,65 bilhões contabilizados, apenas R$ 1,03 bilhão foi liquidado. Se o índice apurado em abril pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) já havia assustado o setor – dos R$ 10,46 bilhões contabilizados houve adimplemento de R$ 2,84 bilhões –, o de julho disparou o alerta vermelho.

A judicialização atormenta e impede o desenvolvimento e a maturidade do mercado livre de energia elétrica. Isso se explica em duas medidas: (i) um modelo que não atende as necessidades dos produtores e dos consumidores; (ii) e uma insegurança jurídica que perdura há anos. O principal problema é que as liminares criam situações paradoxais, nas quais quem não está amparado por decisão judicial está condenado ao calote.

Exemplo disso são os números da liquidação feita em abril. Os agentes que tinham decisões judiciais vigentes para não participarem do rateio da inadimplência oriunda de liminares do GSF (Generation Scaling Factor) perceberam adimplência próxima de 94%. Já os agentes amparados por decisões que determinam a incidência regular das normas perceberam adimplência de 18%. E os credores que não têm liminares perceberam adimplência próxima de 9%.

Sistema de compensação

No Mercado de Curto Prazo, o gerador que produz mais energia que o volume fixado para a sua unidade tem direito a receber essa geração valorada ao PLD (Preço de Liquidação de Diferenças). Já o player que gera menos energia que o estabelecido, deve pagar a diferença, também ao PLD, em função de ter produzido menos que o necessário. Assim os valores se compensam em um verdadeiro sistema de pesos e contrapesos, sob a administração da CCEE.

Ocorre, contudo, que, em razão da judicialização – nascida do inconformismo dos geradores hídricos participantes do MRE¹ (Mecanismo de Realocação de Energia) –, os agentes que têm créditos no MCP estão enfrentando graves problemas para receber as receitas. Desde 2013, o GSF médio apurado pela CCEE tem média inferior a 1. Isso significa que a geração de energia hidráulica das usinas pertencentes ao MRE tem sido continuamente inferior à garantia física que é utilizada como referência para comercialização da geração das usinas hídricas. O ajuste dessa defasagem na produção deveria ser assumido pelas usinas hidrelétricas do MRE, mas não é o que tem ocorrido.

Os geradores hídricos iniciaram a judicialização da questão do rateio da insuficiência de energia gerada, obtendo dezenas de liminares que os desoneraram do pagamento dos débitos no MCP. Como consequência direta, os geradores de energia então credores no MCP tiveram suas receitas reduzidas, ao ser afetados por decisões judiciais proferidas em processos dos quais nunca foram parte, referentes a liminares do risco hidrológico de geradores hídricos.

Isso estimulou credores que tiveram suas receitas afetadas a ingressarem com mais ações no Poder Judiciário, requerendo que os processos dos quais eles não participavam não afetassem o recebimento dos créditos, criando assim, um cenário devastador de judicialização do setor elétrico brasileiro.

Por isso, a aprovação e a regulamentação do PL 10.985/2018 trazem esperanças. Em síntese, a legislação tenta estabelecer um freio de arrumação no MCP ao possibilitar que as usinas abram mão das liminares. Em troca, a parte não correspondente ao risco hidrológico do GSF será ressarcida às usinas, na forma de extensão das concessões.

Com efeito, a solução da judicialização nas liquidações financeiras no MCP é imprescindível à garantia da confiabilidade, sustentabilidade e consequente fortalecimento do ambiente de contratação livre, elemento essencial e estratégico à política nacional energética, razão pela qual a questão deveria ser objeto de prioridade absoluta do novo governo.

¹O MRE é uma complexa ferramenta financeira que tem por objetivo primordial o estabelecimento de uma equação que compartilha os riscos hidrológicos que afetam os agentes de geração, buscando garantir a otimização dos recursos hidrelétricos do SIN (Sistema Interligado Nacional). O indicador que mede a quantidade de energia produzida em relação à garantia física das usinas hídricas pertencentes ao MRE é o Fator de Ajuste do MRE ou o GSF.
*Gustavo Valadares é advogado e consultor do escritório Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados, com atuação em direito público.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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