Geocracia
Oceanógrafo, mestre e doutor em Geofísica pela Columbia University e professor associado da Faculdade de Oceanografia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Marcelo Sperle não gosta do termo “PIB do mar”. Para este pesquisador especialista em geologia e geofísica marinha, geomorfologia costeira e mineração submarina, a expressão fica limitada à questão financeira. “’Economia azul’ é um conceito muito mais amplo”, diz Sperle em entrevista exclusiva ao Geocracia.
No entanto, ele reconhece que esse aspecto é a força motriz que permite uma economia do mar sustentável. E lembra que, segundo a DGN (Diretoria-Geral de Navegação) da Marinha do Brasil, a contribuição do oceano para a economia nacional corresponde a cerca de 19% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional: “Ou seja, em 2022, o PIB do mar tem um valor agregado de R$ 1,74 trilhão”, afirma.
Mas, para que todo esse potencial se concretize, Sperle, que é vice-coordenador do Programa de Geologia e Geofísica Marinha e vice-presidente da Aoceano-RJ (Associação Brasileira de Oceanografia), diz que o país precisa apostar em “legislação ambiental e jurídica específicas para a regulação das inúmeras atividades associadas à economia azul”.
Acompanhe a seguir a entrevista na íntegra.
A Portaria 128, da Marinha do Brasil, cria o Grupo Técnico PIB do Mar, no âmbito da Subcomissão para o Plano Setorial para os Recursos do Mar. O grupo tem como finalidade estudar meios de definir e mensurar a geração de riquezas na plataforma marítima brasileira. É possível traçarmos um perfil sobre qual é o estágio atual de nossa gestão do mar?
Sim. A rigor, a “economia do mar” ou “economia azul” (“blue economy”) é apenas um novo conceito para tratar dos múltiplos usos dos recursos do mar (vivos e não vivos) que o ser humano já utiliza há milênios. As antigas civilizações – egípcios, fenícios, chineses, gregos, persas, vikings, entre outras – sempre utilizaram o mar como meio de transporte para o comércio, conquistas de novos territórios, pesca e lazer.
Eu prefiro utilizar o termo economia azul ao invés de economia do mar ou “PIB do mar”, pois estes trazem uma conotação eminentemente financeira. E a economia azul é um conceito muito mais amplo.
Economia azul tem a ver com utilizar, mas, principalmente, proteger os oceanos, o que me parece bastante óbvio, pois eles ocupam mais de 70% de nosso planeta. E a vida na Terra surgiu e depende integralmente da saúde dos oceanos.
A nova economia azul adiciona sustentabilidade e conservação à velha economia do mar. A economia azul junta o mar e os seus atuais e futuros usos às necessidades de cada região, das indústrias e das pessoas, alinhando interesses, conciliando expectativas e contribuindo para o desenvolvimento sustentável das comunidades e da sociedade em geral.
É neste aspecto, o social, que o Brasil ainda está em um estágio embrionário na gestão sustentável dos múltiplos usos do mar. O litoral brasileiro é um dos mais extensos do mundo, com cerca de 8 mil quilômetros contínuos. Aproximadamente 60% da população se concentra e depende diretamente das regiões costeiras. É um litoral extremamente diverso e desigual, tanto em termos ambientais, como humanos – o que em temos de gestão é desafiador.
Para exemplificar esse enorme desafio basta verificar que, desde a instituição do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, em 1988 – há 34 anos, portanto –, apenas três estados brasileiros estabeleceram, ainda que parcialmente, seus planos de gerenciamento costeiro, o que é lamentável.
O que viria a ser a economia azul ou economia do mar para o Brasil?
O conceito de economia azul foi consolidado na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro em 2012. A economia azul possui diferentes definições, mas todas são estruturadas a partir de entendimentos entre os países, organizações ou até mesmo entre setores específicos.
Segundo o Center for the Blue Economy, instituição norte-americana vinculada ao Instituto de Middlebury, a economia azul engloba três fundamentos que se relacionam, mas são distintos: i) a contribuição geral dos oceanos para as economias globais, ii) a necessidade de uma economia do mar baseada na sustentabilidade ecológica e ambiental dos oceanos, e iii) a economia oceânica como geradora de oportunidades de crescimento, tanto para os países desenvolvidos, quanto para os países em desenvolvimento e subdesenvolvidos.
Já em 2014, a ONU (Organização das Nações Unidas) apresentou uma definição mais ampla de economia azul: “uma economia oceânica que visa a melhoria do bem-estar humano e equidade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica”.
Enquanto em 2017, o Banco Mundial, definiu economia azul como “o uso sustentável dos recursos oceânicos para o crescimento econômico e para a melhoria dos meios de subsistência e empregos; mas, ao mesmo tempo, preservando a saúde do ecossistema oceânico”.
A economia azul inclui uma gama ampla de atividades tradicionais como pesca, aquicultura e indústrias de processamento do pescado e de algas; a extração de petróleo e gás offshore; o transporte marítimo de carga e de passageiros; as instalações portuárias e sua logística; as infraestruturas e obras marítimas; a construção naval e manutenção de navios e plataformas; a fabricação de estruturas marítimas; o turismo de cruzeiros e o turismo costeiro, as atividades náuticas de lazer, o desporto e a cultura; e o ensino das ciências do mar, formação e investigação científica.
Inclui também as atividades emergentes como as energias renováveis do oceano (eólica, solar, ondas e marés), a biotecnologia marinha (biocombustíveis, recursos genéticos, farmacêuticos), a mineração marinha em águas rasas e profundas, a defesa e vigilâncias das áreas marítimas, a segurança de pessoas e de bens, entre outras.
Vale destacar ainda as atividades correlatas que viabilizam todas as citadas anteriormente, mas permitem também o sustento de diversas famílias, como o setor de alimentos, limpeza, reciclagem, extrativismo animal e vegetal e conservação ambiental.
E o PIB do mar, como ele tem evoluído e qual a expectativa da inserção das eólicas offshores?
O PIB do mar é apenas a parte financeira da economia azul, mas, obviamente, é a força motriz que permite uma economia do mar sustentável, resultante do equilíbrio entre a atividade econômica e a capacidade de longo prazo dos ecossistemas oceânicos para suportar essa atividade, permanecendo resilientes e saudáveis.
De acordo com o relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicado em 2016, os oceanos representam a 7a maior economia do mundo, sendo estimado que o valor agregado pela “indústria oceânica global” pode chegar a US$ 3 trilhões, em 2030.
O Brasil, em particular, possui jurisdição sobre uma área oceânica com cerca de 5,7 milhões de km2, conhecida como “Amazônia azul”, que é essencial para a economia do país. Esse enorme espaço oceânico possui uma grande diversidade de recursos naturais, bem como riquezas minerais e energéticas.
Segundo a DGN da Marinha do Brasil, a contribuição do oceano para a economia do Brasil, ou seja, o PIB do mar corresponde a cerca de 19% do PIB nacional, sendo 2,6% oriundos de atividades diretamente relacionadas com o mar e 16,4% de atividades indiretamente relacionadas. Ou seja, em 2022, o PIB do mar tem um valor agregado de R$ 1,74 trilhão.
Parte deste montante e do potencial para o seu crescimento, é oriundo do setor de “energias renováveis offshore”. O potencial dos recursos energéticos advindos do mar tem atraído crescente interesse das comunidades científicas e dos governos em todo o globo. O aproveitamento do mar para a geração de energia limpa mostra-se promissor, especialmente por sua natureza renovável. Destacam-se tecnologias que permitem o uso das marés (energia maremotriz), das ondas, de correntes marinhas, de gradientes térmicos e de gradientes de salinidade. Além destes, existem também consideráveis perspectivas para o aproveitamento da energia eólica offshore – ou seja, por meio de turbinas localizadas em alto-mar.
De maneira geral, a energia eólica offshore no Brasil apresenta um ótimo potencial, em especial na região Nordeste, considerando-se características meteoceanográficas, como i) ventos alísios constantes, durante todo o ano e ii) uma plataforma continental pouco profunda, o que facilita a instalação e manutenção dos aerogeradores. Nesse contexto, deve-se registrar que, até maio de 2021, já existiam 20 processos de licenciamento ambiental no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), solicitando a instalação de complexos eólicos offshore no Brasil.
Historicamente e comparado ao que o agronegócio faz pela economia do país, o Brasil vive de costas para o mar. Como reverter ou corrigir esta tendência?
O Brasil é um país continental, com uma área emersa de 8,5 milhões de km². É riquíssimo em recursos naturais, minerais, energéticos e de biodiversidade. Todo esse “gigantismo” no continente causa uma espécie de “sombra” sobre as áreas oceânicas adjacentes. E por isto se diz que “o Brasil vive de costas para o mar”.
Para reverter ou corrigir esta tendência, precisamos dispor de políticas públicas e privadas que invistam significativamente em pesquisas oceanográficas, formação de recursos humanos nas ciências do mar e incentivos ao desenvolvimento e inovação tecnológica. Tudo isso depende, fundamentalmente, de investimentos pesados em Educação, o que, infelizmente, o Brasil nunca fez ao longo de toda a sua história.
É difícil falar, por exemplo, em “mentalidade marítima”, quando temos um país com aproximadamente 20 milhões de analfabetos e semianalfabetos, 10 milhões de desempregados e 23 milhões de miseráveis; que passam fome e sobrevivem com menos de R$ 7 ao dia.
Consequentemente, a maioria da população brasileira, inclusive os gestores públicos e empresários, só “enxergam”, de forma míope, o potencial turístico e de lazer associados à economia azul. Enquanto não atuarmos fortemente na educação e mudarmos esses paradigmas, dificilmente criaremos uma mentalidade marítima para o país.
Em que pese a maior parte da população brasileira estar a menos de 100 km do mar, que tipo de legislação ambiental e jurídica poderia contribuir para reforçar o papel do mar no dia a dia do brasileiro?
Este é mais um ponto nevrálgico que o Brasil precisa investir muito, pois, a rigor, não temos uma legislação ambiental e jurídica específicas para a regulação das inúmeras atividades associadas à Economia Azul.
Temos algumas leis, portarias, decretos, normatizações e regulamentações, em geral, adaptadas do meio ambiente terrestre para o marinho. Mas a maioria carece de adequação técnica para dar a segurança jurídica necessária aos usuários e investidores que pretendem atuar nas regiões oceânicas. Além disso, existe uma sobreposição de leis federais, estaduais e municipais que muitas vezes são contraditórias e confusas.
Portanto, estas áreas marinhas, imensas e distintas, são regidas por diferentes instrumentos de gestão, em diferentes órgãos governamentais, que não necessariamente conversam entre si, pois não existe um marco regulatório para o mar brasileiro.
Em que pese as severas críticas da comunidade e dos especialistas nas mais diversas áreas das ciências do mar ao Projeto de Lei 6.969/2013, que institui a “Lei do Mar”, surge uma luz no horizonte com a instituição do PEM (Planejamento Espacial Marinho), por meio do Decreto Federal 10.544/2020, que aprova o X Plano Setorial para os Recursos do Mar, da CIRM (Comissão Interministerial para os Recursos do Mar). A esta comissão cabe realizar “o planejamento, a coordenação e a condução das atividades dos diferentes atores que possuem legítimos interesses ligados ao mar”.
O principal objetivo do PEM é estabelecer as bases institucional, normativa e regulatória para o apoio aos processos de tomadas de decisão relacionadas ao uso do mar e ao seu ordenamento, tanto em âmbito público quanto privado. O PEM prevê quatro etapas: Sul, Sudeste, Nordeste e Norte. A Marinha do Brasil, por meio da SECIRM (Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar) está buscando chegar ao montante de R$ 30 milhões para executar todo o PEM brasileiro. Recentemente, o BNDES acordou um valor inicial de R$ 5 milhões, para o início do projeto na região Sul do Brasil, o que é insignificante diante da importância da economia do mar para o dia a dia do brasileiro.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.