Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Numa calçada de cerâmica, à frente de uma parede envidraçada que dá acesso a uma confortável sala de espera, um fogão a lenha preparava o café de trabalhadores e executivos que dormiam em colchonetes improvisados no salão em frente.
Era hora de começar a rotina, que envolvia tentar salvar o maior número de equipamentos essenciais possíveis, obter alimentos e, principalmente, usar barcos para patrulhar a unidade e evitar roubos e saques ao Aeroporto de Porto Alegre (RS), o maior da região sul do Brasil.
Por mais de 20 dias, essa foi a vida de um grupo de 15 funcionários da concessionária Fraport, responsável pela unidade, durante o alagamento que deixou pistas, pátios e terminal de passageiros sob água por quase um mês, algo que jamais tinha sido registrado num aeroporto no mundo por um período tão longo.
Na semana passada, dois dos executivos da empresa contaram detalhes sobre o que ocorreu com essa equipe e também sobre a recuperação da unidade, que voltou a receber voos menos de seis meses depois do evento.
“Como concessionária, nós seguimos todos os manuais, os simulados, os testes. Mas, infelizmente, isso que aconteceu não estava previsto em nenhum manual”, disse o diretor de Operações da unidade, Edgar Nogueira. “Foi de fato uma operação de guerra, [feita] com pessoas voluntárias.”
Sob aplausos de pé ao fim da apresentação no ANM (Airport National Meeting), evento da ABR (Aeroportos Brasil), associação que reúne as concessionárias, Nogueira e Leonardo Carnielle, vice-presidente comercial e de Concessão da Fraport, mostraram com imagens e dados os problemas enfrentados para salvar a unidade, que em 2023 recebeu sete milhões de passageiros.
O esforço dos trabalhadores que se dispuseram a permanecer no aeroporto alagado e a colaboração de gestores públicos, empresas do setor e de companhias de outras atividades foi o que tornou possível a rápida recuperação da unidade, na visão do vice-presidente. “Chegava ajuda sem a gente pedir”, contou Carnielle.
O primeiro alerta para o que viria surgiu no dia 2 de maio, quando já chovia a alguns dias em todo o estado, e a Defesa Civil convocou o aeroporto para uma reunião de emergência no dia seguinte, na área central da cidade. Um prenúncio dos problemas já se demonstrou logo na chegada à reunião. Ruas ao redor do local do encontro já apresentavam grandes bolsões de água que não escoavam do Rio Guaíba para o mar.
Avião sem tripulação
Ao ser informado pelo órgão de que o rio subiria a uma cota de até seis metros, Nogueira voltou para o aeroporto já sabendo que ele seria alagado. A dúvida dos executivos era somente uma: por quanto tempo? “Fecha na sexta e volta na segunda? Tivemos que procurar entender como funciona a meteorologia”, contou Leonardo Carnielle.
As informações não eram boas. Condições extremamente complexas do clima, que impediam que as águas que vinham das áreas mais altas do estado e desaguavam no Guaíba saíssem para o mar, fizeram a empresa entender que o problema seria complexo. E longo.
“Começamos a subir viaturas, resgatar o que era possível de material, avisar aos funcionários. Nem todos acreditaram. Muita gente imaginou que era loucura”, lembrou Nogueira, contando que a última vez que houve alagamento na unidade fora 40 anos atrás.
Os voos foram cancelados e começou uma operação para retirar todos os aviões que estavam na unidade, o que foi finalizado às 20h10 do dia 4, exceto por um: uma aeronave da Sideral, companhia que realiza operações de carga aérea, que não tinha tripulação para levantar e ficou na unidade ao longo de todo o alagamento, tornando-se uma das fotos que simbolizou o drama dos gaúchos durante a catástrofe.
Passageiros retirados em caminhão
Mas havia um outro problema a resolver: o que fazer com trabalhadores e passageiros que chegaram nos últimos voos na unidade, que já estava isolada antes mesmo do alagamento da pista. Foi necessário que eles saíssem num caminhão de bombeiros até uma área segura. O caminhão foi danificado e não pôde ser recuperado após a operação.
A velocidade com que subia a água do rio, que o diretor de Operações lembra ficar a quilômetros de distância, impressionava. “Nosso pátio virou uma represa. Todo o primeiro piso foi impactado. Perdemos data center, esteiras, equipamentos de inspeção, tomógrafo, cabeamento, pontes de embarque… Tudo foi danificado”, conta Nogueira, mostrando a foto do estacionamento do aeroporto onde 200 carros estavam totalmente encobertos pela água. “Mais de 100 mil carros foram perdidos no Rio Grande do Sul.”
Três barcos foram adquiridos pela empresa e bombeiros de Florianópolis também auxiliaram com um. Mas a distância entre o aeroporto e o ponto em terra mais próximo da unidade era de quatro quilômetros. Era nesse ponto onde era possível se abastecer de alimentos e outros itens para a sobrevivência dos cerca de 15 trabalhadores que permaneceram na unidade. Mas nem tudo chegava, e foi necessário se abastecer com produtos que estavam no próprio aeroporto. “Registramos e pagamos tudo depois”, contou.
Não eram todos, contudo, que queriam pegar os produtos do aeroporto fechado com registro e pagamento. A principal rotina dos voluntários era difícil e perigosa: circular com os barcos para evitar saques na unidade. “Infelizmente aconteceu muito saque, área invadida na calamidade. Nosso dia a dia dentro dos barcos era uma grande preocupação com o patrimônio e a segurança das pessoas”, revelou Nogueira.
Heliponto improvisado
Os voluntários viveram sem energia e água, em temperaturas que variaram dos 15 aos 37 graus no período. Segundo o diretor de Operações, foi possível suportar porque o grupo que ficou era multidisciplinar, o que para ele é uma lição para eventos futuros semelhantes.
“Tinha gente da manutenção, de operações. Mantivemos médica e enfermeiro no grupo. Pessoas de RH. Todos tinham algum conhecimento em alguma área”, explicou Nogueira no momento em que apareciam fotos posadas do grupo sorrindo. “Era tudo muito triste, mas conseguimos levar isso de uma maneira leve. Já bastava a pressão que sofríamos.”
Os primeiros sinais das águas baixando traziam esperança ao grupo, mas também novos desafios. Os barcos já corriam risco ao circular com águas mais baixas, mas ainda não era possível andar de carro. Um heliponto teve que ser improvisado para levar equipamento de apoio para o grupo que permanecia.
A baixa das águas deixava evidente que o aeroporto não teria condições de funcionar imediatamente e foi necessário criar uma solução provisória.
“Veio a ideia da Base Aérea. Era algo até onde sei inédito. É estranho pedir para a Força Aérea ceder espaço para a gente operar, mas era necessário. A gente precisava fazer alguma coisa porque tínhamos um problema diferente que exigia soluções diferentes”, disse Carnielle, lembrando que a solução contou com apoio da Força Aérea, mesmo com uma operação humanitária acontecendo. “Mas obviamente não deu para atender ao Fator D”, brincou o diretor de operações, referindo-se ao fator de qualidade de atendimento aos passageiros exigido pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) às concessionárias.
“Aeroporto novo”
A recuperação da unidade começou pela drenagem da água, que contou com apoio de equipamentos do Exército e de plantadores de arroz do estado que cederam máquinas que não eram possíveis adquirir. Em 30 de maio, começou a limpeza do terminal de passageiros. Mas o maior desafio não estava ali. Como seria possível saber se as pistas estavam adequadas para receber aviões após mais de 20 dias submersas, algo que nunca tinha ocorrido em nenhum aeroporto no mundo?
“Quem olhava, depois que a água baixou, dizia que a pista estava intacta, não aconteceu nada. De fato, olhando, parecia. Mas quando começaram os testes, vimos que houve impacto. O solo não tinha mais condições de compactar, de receber uma aeronave”, disse o diretor de operações.
A fala rígida do diretor de Operações na apresentação no ANM não passa a dimensão do que precisou ser feito. O recapeamento foi de uma camada de pouco mais de 40 centímetros de asfalto. Numa rodovia, essa camada fica entre cinco e 10 centímetros. Uma usina de asfalto foi montada dentro da unidade. Mais de 1,8 mil metros cúbicos de pavimento já foram usados. O pátio de aeronaves recebeu 55 mil metros quadrados de concreto, o que equivale a sete campos de futebol. “É um novo aeroporto”, afirmou Nogueira.
As obras prosseguem ainda, até 16 de dezembro, segundo a empresa. Mas foi possível retomar os voos em parte da pista a partir do final de outubro. O terminal de passageiros já havia voltado em julho, para receber os viajantes, que eram levados até a Base Aérea, numa operação que demorava quase três horas.
Olhar emocionado
A apresentação sobre a recuperação do Salgado Filho foi a última do evento iniciado pela manhã. Já era início da noite e um público de quase 200 pessoas ainda acompanhava com atenção o relato de uma saga de pessoas que nunca imaginaram passar por algo parecido trabalhando em um aeroporto.
Mas Nogueira mantinha seu tom rígido, mesmo quando relatava pontos complicados, como dormir por mais de 20 dias no aeroporto ou comentar o que viu: “É diferente de você ver pela televisão. Você sentir a temperatura da água, sentir o cheiro da lama e escutar o choro de quem está sofrendo, que teve a casa invadida”.
A postura rígida só foi quebrada ao fim da apresentação, quando o público se levantou para aplaudir efusivamente de pé por um longo período, tirando do chefe de Operações um visível olhar emocionado, de quem está segurando o choro.
Veja as imagens apresentadas pela Fraport: