29/09/2025 | 12h34  •  Atualização: 29/09/2025 | 12h37

Opinião – TCU consolida investimento cruzado no setor ferroviário

Foto: Divulgação

Milton Carvalho Gomes* e Silvia Machado Leão**

No Acórdão 2186/2025 – TCU-Plenário, aprovado em 17 de setembro, o TCU (Tribunal de Contas da União) aprovou de forma unânime o acordo entabulado entre a MRS Logística, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e a União (Ministério dos Transportes) no âmbito da SecexConsenso, e que inaugura um novo modelo para investimentos ferroviários no país. Pelo acerto, a empresa deverá depositar R$ 2,8 bilhões em uma conta específica – tecnicamente chamada de conta vinculada ou escrow account – cuja movimentação se dá exclusivamente por meio de comandos da agência reguladora ao banco depositário. Esses recursos não irão para o Tesouro Nacional, mas permanecerão no setor ferroviário e serão usados em projetos estratégicos eleitos pelo definidor da política pública, Ministério dos Transportes.

A decisão marca a primeira aprovação de um investimento cruzado em modalidade financeira. Em vez de executar diretamente obras de infraestrutura ferroviárias, como ocorreu no precedente da Vale na prorrogação antecipada da concessão da Estrada de Ferro Vitória a Minas, a concessionária aporta recursos em dinheiro, que depois serão aplicados em empreendimentos escolhidos pelo poder público. O mecanismo tem respaldo jurídico no art. 25, §1º da Lei 13.448/2017 e no artigo 66 da Lei 14.273/2021, que autorizam expressamente a destinação de receitas do setor ferroviário para novos investimentos no próprio setor, sem transitar pelo orçamento da União.

Dois conceitos centrais ajudam a entender o modelo aprovado. Investimento cruzado significa valer-se de recursos de uma concessão ferroviária para financiar projetos de interesse público em malha distinta daquela objeto da outorga. A conta vinculada, por sua vez, funciona como uma conta bancária especial, com regras rígidas sobre quem pode ali depositar recursos, como eles são geridos, quem autoriza seu uso e de que forma devem ser fiscalizados. 

Comando legislativo e validação constitucional
É conhecido o desafio histórico por que passa o sistema ferroviário brasileiro, que, apesar de sua importância estratégica para um país de dimensões continentais, sofre com a escassez crônica de recursos públicos e muitos projetos considerados prioritários se mostram inviáveis sob os modelos tradicionais de financiamento.

Sem fechar os olhos a essa realidade, a Lei 13.448/2017, especialmente no artigo 25, autoriza – conclama mesmo – o ente público a promover alterações contratuais no setor ferroviário para resolver problemas operacionais e logísticos, inclusive por meio de prorrogações e relicitações. O dispositivo, de forma exemplificativa, oferece ao gestor público a possibilidade de valer-se de ferramentas flexíveis, adotar medidas diferenciadas por contrato ou por trecho ferroviário em busca de soluções sistêmicas.

O §1º do artigo 25 merece atenção especial, por ser ele a estabelecer que eventuais soluções devem ser construídas de comum acordo com os concessionários e por admitir a possibilidade de “investimentos pelos contratados em malha própria ou naquelas de interesse da administração pública”. É essa formulação – criativa – do legislador que mais tarde passou a ser conhecida como investimento cruzado: recursos oriundos de uma concessão específica podem ser aplicados em outras malhas ferroviárias de interesse público, fazendo com que os frutos de uma concessão individual possam ser apropriados pelo próprio sistema. 

A Lei 14.273/2021 reforçou esse desenho ao determinar, em seu artigo 66, que os recursos arrecadados junto às operadoras ferroviárias devem ser reinvestidos em infraestrutura logística ou de mobilidade de titularidade pública. A norma não apenas autoriza, mas impõe que o dinheiro permaneça no setor ferroviário, criando uma fonte estável de financiamento, o que afasta de vez a ideia de que tais valores devam ser tratados como receitas livres do Tesouro.

A constitucionalidade do modelo foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5991, em que a ministra Cármen Lúcia destacou que o investimento cruzado serve para promover a integração da rede ferroviária, indo além dos limites de cada concessão. Segundo a ministra, “[o] investimento cruzado está compreendido na autonomia política do ente federado, ao qual compete avaliar a vantagem ou não da substituição da outorga pelo pagamento em dinheiro sobre novos investimentos na infraestrutura da malha ferroviária brasileira”. No mesmo julgamento, o ministro Gilmar Mendes reforçou essa visão, ao ponderar que “[o] legislador preferiu garantir que o valor econômico decorrente das prorrogações fosse de fato canalizado para a reestruturação das ferrovias brasileiras, em vez de determinar eventualmente o pagamento de outorga pela prorrogação que seria destinado à União”, e complementou afirmando que “[t]al preferência se deve às indiscutíveis dificuldades do setor ferroviário nacional, atualmente marcado por grandes problemas de atraso tecnológico e de baixa capacidade operacional”.

Prevaleceu, assim, a tese defendida pela Advocacia-Geral da União, que naquela oportunidade sustentou que o investimento cruzado “constitui alternativa ímpar, pois, sem recorrer a recursos do erário, inaugura-se um ciclo de retroalimentação positiva modal de transporte ferroviário, permitindo a superação de gargalos de infraestrutura específicos sem desfiguração do objeto das concessões originalmente pactuadas”. Em outras palavras, trata-se de um mecanismo que garante reinvestimento direto no sistema ferroviário, com respaldo legal e constitucional sólido.

Evolução dos precedentes
A prática do investimento cruzado foi sendo construída a partir de diferentes casos, nos quais o Estado, em vez de exigir o pagamento de outorga a ser recolhido aos cofres do Tesouro, optou por direcionar recursos privados a investimentos de interesse público no próprio setor ferroviário.

O primeiro exemplo ocorreu na prorrogação antecipada do contrato de concessão da Estrada de Ferro Vitória a Minas, operada pela Vale S.A. Nesta ocasião, a concessionária foi incumbida de dois compromissos: construir um trecho da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e adquirir trilhos e dormentes destinados à Valec (que seriam utilizados em um terceiro trecho, que não eram, nem a EFVM, nem a Fico). O poder público, portanto, abriu mão da arrecadação direta e optou pela aplicação dos recursos em projetos estratégicos do setor.

Outro precedente importante se deu na prorrogação antecipada da Malha Paulista, operada pela Rumo, cujas obrigações contratuais foram também objeto de negociação no âmbito da SecexConsenso do TCU. O termo de autocomposição, aprovado pelo plenário do TCU em 2023, autorizou a aplicação de valores no setor ferroviário sem, contudo, detalhar a forma de execução. Apenas em 2025, por meio de aditivo contratual firmado com a ANTT, ficou definido que os recursos seriam depositados em conta vinculada, a serem posteriormente destinados a projetos escolhidos pelo Ministério dos Transportes.

No caso mais recente, o julgado aqui comentado (Acórdão 2186/2025 TCU-Plenário), o acordo celebrado com a MRS Logística consolidou de maneira explícita a modalidade financeira de investimento cruzado, pelo qual a concessionária se obrigou a aportar valores em conta vinculada, sob governança da ANTT, com aplicação futura definida pelo poder público em projetos ferroviários estratégicos.

Esses precedentes confirmam que o investimento cruzado, da forma como disposto na lei, pode assumir diferentes feições. No caso da Vale, materializou-se tanto como execução direta de obras (obrigação de fazer) quanto como fornecimento de insumos a empresa pública (obrigação de adquirir e entregar). Nos casos da Rumo e, de forma ainda mais clara, da MRS, prevaleceu a obrigação de aportar recursos financeiros (obrigação de pagar) para uso posterior. O elemento central, contudo, não está na forma de cumprimento, mas na finalidade de assegurar que valores privados, gerados em uma concessão específica, sejam canalizados para projetos ferroviários de interesse público mais amplo. 

Não faria sentido, de fato, conferir interpretação restritiva se a lei assim não o fez; essa flexibilidade é o que torna o instituto valioso, pois permite ao Estado adaptar a modelagem contratual às necessidades concretas do sistema, de modo a garantir que recursos que poderiam ser absorvidos pelo caixa único do Tesouro sejam efetivamente transformados em investimentos – promovidos e executados por um privado – no próprio setor.

Algumas conclusões
Os empreendimentos do setor ferroviário demandam, de regra, complexa estruturação dos projetos a partir de estudos robustos, coordenação entre múltiplos agentes, extensos processos de licenciamento e amadurecimento institucional gradual. O risco de eventual descompasso entre a disponibilidade de recursos e a capacidade efetiva de execução do projeto é mitigado na hipótese de investimento cruzado na modalidade financeira, ao permitir que recursos sejam preservados em conta vinculada enquanto projetos estratégicos amadurecem institucional e tecnicamente. O gestor público ganha flexibilidade para aproveitar janelas de oportunidade, adaptar-se a eventuais mudanças nas prioridades setoriais e coordenar investimentos com ciclos de planejamento de longo prazo, com segurança e previsibilidade.

O Acórdão 2186/2025 do TCU marca a consolidação do investimento cruzado nessa modalidade, ao validar o aporte em contas vinculadas como forma legítima de direcionar recursos privados a projetos ferroviários estratégicos. A decisão reforça o alinhamento entre legislação, jurisprudência constitucional e medida administrativa eficiente, ressaltando a imprescindibilidade de uma governança robusta e transparente desses recursos.

A efetividade do modelo, contudo, depende de regras claras de aporte, segregação fiduciária dos recursos, critérios públicos de priorização e mecanismos de transparência e auditoria que assegurem credibilidade ao processo. Esses cuidados são indispensáveis para que o instrumento mantenha a finalidade para a qual foi concebido, que é transformar receitas privadas em investimentos de impacto sistêmico no setor ferroviário.

Fato é que o TCU deu um passo importante ao confirmar a legalidade e a utilidade prática do investimento cruzado, por reafirmar que o essencial não está na forma da obrigação, mas na destinação e no uso eficiente dos recursos. Com marcos regulatórios claros e salvaguardas de governança, o instrumento tem potencial para se consolidar como uma das principais ferramentas de financiamento do setor ferroviário brasileiro.

*Milton Carvalho Gomes é procurador federal e secretário-adjunto de Infraestrutura da SAJ/Presidência da República. Doutorando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa. Coordenador do Better Regulation/IDP.

**Silvia Machado Leão é procuradora federal da Advocacia-Geral da União, especialista em Direito Administrativo, subprocuradora-geral de Matéria Regulatória substituta na Procuradoria Federal junto à ANTT.

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