Daniel Steffens G. Nogueira*
A introdução deste artigo, inescapavelmente, fará um breve comentário sobre as medidas de enfrentamento da pandemia aplicadas ao setor elétrico, as quais, embora tenham suscitado muitas opiniões (ora divergentes), aparentam ter sido bem recepcionadas pela comunidade técnica/especializada.
Uma vez que o isolamento social vem afetando intensamente as atividades econômicas e o consumo de energia elétrica, o Governo Federal editou a Medida Provisória 950/2020 (que determinou a criação da Conta-Covid) com o condão de prover liquidez para a cadeia setorial, por meio de uma operação especial de crédito. A referida MP foi regulamentada pelo Decreto 10.350/2020 e o regulador deu o contorno normativo ao expediente com a edição da Resolução 885/2020.
Assim, todos os pilares de concertação do arranjo operacional foram bem delineados: desde ter se valido o regulador da estrutura de encargo da CDE (promovendo maior garantia aos Lender Banks), passando pela atual taxa de juros do mercado (baixa histórica), bem como a escolha da gestora CCEE (Câmara de Comercialização de Energia), que tem elevada expertise nesse âmbito – ela organizará os fluxos financeiros para promover o buffer tarifário nas distribuidoras nessas transações.
Mas não nos esqueçamos: como bem salientado pelo diretor-geral da ANEEL em diversas oportunidades, a injeção de liquidez propiciada pela operação pretendeu endereçar uma questão conjuntural. Essa ressalva é importante para que se possa trazer o contraponto, na medida em que se abordará questões estruturais adiante. Sigamos.
Temos exemplificado, a partir desse caso, que a regulação promovida pelo Estado caminha muito bem com este escopo: na elaboração de comandos que, como vimos, afiguraram-se como emergenciais, pontuais e de enfrentamento. Desse modo, ao se promover a defesa do liberalismo econômico (nos parágrafos logo abaixo), isso não significará postular contra o Estado; mas sim, a favor da intervenção estatal focada em emanar diretrizes públicas gerais e difusas, compliance regulatório e fiscalização dos abusos de poder econômico de agentes. Nada mais.
Todas essas assertivas iniciais se fazem necessárias, pois se nota que uma série de críticos da Conta-Covid emitiram seus julgamentos voltados para circunstâncias inerentes à modelagem setorial. Então, convém a modulação.
Há certa impropriedade nesse tipo de exame, pois, conquanto o provimento regulatório se propôs a endereçar financiabilidade (conjuntura), as críticas que aviltaram os subsídios cruzados, a assimetria alocativa entre o ACR e o ACL e tantas outras desse gênero – embora tenham atacado problemas legítimos – deveriam ser dirigidas a questões estruturais.
Daí desponta a premente necessidade para que a agenda de modernização setorial – que, diga-se de passagem, vem sendo defendida com altivez pelo MME (Ministério de Minas e Energia) – retome protagonismo, especialmente no que toca às questões de abertura do mercado.
Não é demasiado ilustrar que, no Brasil, secularmente, carreamos o endêmico problema de uma máquina estatal PPP (paquidérmica, paternalista e perdulária), que desemboca num aparato burocrático descomunal e tributação exorbitante. Esse paradigma suplica por simplificação normativa e criação de ambiente fluido de negócios se quisermos prosperar.
Pelo tanto, apenas tangenciando a representativa importância do preço horário (tendente a granularidades ainda mais finas) e da separação de lastro e energia, enfoca-se, por ora – para devida amarração com os parágrafos iniciais –, na atribuição das distribuidoras como ente basilar no losango setorial (G, T, D e C).
É cediço que a indústria da eletricidade nacional não foi completamente desverticalizada, mantendo-se a conjugação das atividades de distribuição e comercialização para os consumidores menores sob monopólio dos agentes de distribuição. Por conseguinte, segundo essa premissa de design, há concentração de riscos de contratação de energia nessas concessionárias.
Urge, dessa feita, separar as atividades de “fio/transporte” das atividades de comercialização de energia nas distribuidoras, robustecer a liberalização do mercado e afastar gradativamente os mecanismos que promovem o repasse financeiro excessivo (na forma de deficiência alocativa) que, inexoravelmente, terminam por onerar os consumidores cativos.
Relembremo-nos: não se questiona que o modelo de leilões que se consolidou a partir de 2004 foi fundamental para assegurar a confiabilidade sistêmica e constituiu elemento fundamental do vetor expansionista. Ademais, toda financiabilidade setorial (bancos de fomento) que se arregimentou no entorno dessa feição foi exitosa. Isso é um ponto pacífico.
Por outro lado, é incontestável que o avanço tecnológico, a penetração das renováveis na matriz e o benchmarking em relação aos modelos mais liberalizados ao redor do mundo nos oferecem um sinal difícil de ser ignorado.
É inadiável a mitigação de monopólios, a reformulação da má-formação de preços (preço por modelo a ser substituído por bids de geração), a intensificação da concorrência e desmonte de uma série de controles regulatório-burocráticos.
Vale somar a estes, o advento retail wheeling (mercado varejista) e o combate aos subsídios (cruzados, caroneiros, oportunistas, lobistas ou de quaisquer outras espécies), pela noção básica de que, se há altíssima transferência regulatória, há, em igual proporção, impossibilidade do oferecimento de melhores preços. Com a aplicação bem modulada do clássico laissez-faire, estará pavimentado um caminho alvissareiro para o SEB (Setor Elétrico Brasileiro). Planejamento indicativo, sim. Planejamento de intervenção centralizada para constrição das forças de mercado por decreto estatal, não, obrigado.