Mauricio Portugal Ribeiro*1
Mapeando as inadequações da teoria e da doutrina jurídica sobre equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, escrevi recentemente artigo sobre o seu sincretismo metodológico2. Dando continuidade a esse mapeamento, preciso agora tratar dos fetiches do mundo jurídico em relação à base constitucional e origem do direito ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos.
O fetiche em relação à origem se manifesta em longas discussões sobre as raízes francesas da garantia ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, particularmente sobre a configuração da teoria da imprevisão no direito francês na primeira metade do século XX, sua evolução e absorção pelo artigo 65, inciso II, alínea “d” da Lei 8.666/93 e pelas normas brasileiras sobre o tema com estatura de lei que o precederam.
Essas discussões, em minha opinião, são irrelevantes. Após quase um século de aplicação entre nós da ideia de equilíbrio econômico-financeiro de contratos e quase 30 anos de existência da Lei 8.666/93 e de farta jurisprudência na esfera administrativa e judicial sobre o tema, parece-me completamente desimportante a configuração do equilíbrio econômico-financeiro do contrato no direito francês no momento em que o Brasil importou esse instituto jurídico.
O direito ao reequilíbrio está positivado em lei, nos contratos administrativos e na jurisprudência brasileira e é com base na sua previsão nessas fontes do direito que deve ser aplicado, sendo insignificante – senão para fins históricos – a análise de suas antigas bases em França. No contexto atual, a própria teoria da imprevisão é desnecessária para aplicação das regras sobre o equilíbrio econômico-financeiro de contratos. Teorias como a da imprevisão são importantes até a sua positivação. No caso do equilíbrio econômico-financeiro, ela foi devidamente positivada em lei (art. 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93), de maneira que não é preciso mais o recurso à teoria para a aplicação do direito ao reequilíbrio em caso de eventos extraordinários, irresistíveis e imprevisíveis. Por tudo isso, tentar usar a história do direito francês, particularmente da teoria da imprevisão, para determinar a extensão no presente do direito ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos no Brasil me parece fútil.
O único argumento que poderia restar a favor apenas daqueles que buscam mostrar que a inspiração francesa dos dispositivos está em alguma medida equivocada ou que é produto de leituras superficiais do direito francês – como, por exemplo, os trabalhos recentes de Gustavo Kaercher Loureiro3 – é que as decisões judiciais e a nossa doutrina tradicional em vários casos continuam mencionando o direito francês como fonte ou como critério para decisões jurídicas aqui no Brasil. Concordo que há utilidade em desmistificar equívocos nas elaborações da doutrina tradicional e manualesca do direito administrativo que influencia decisões administrativas e judiciais. Mas, em minha opinião, essa produção acadêmica desmistificadora dos equívocos da doutrina tradicional termina se mantendo no mesmo plano da doutrina tradicional. Pretensamente, passeia com mais precisão histórica e rigor que a nossa doutrina tradicional pelo direito francês. Continua, entretanto, debatendo tema que, em minha opinião, não deveria ser relevante.
Em relação à teoria da imprevisão, alguns defendem que ela poderia ser um guia para interpretação do artigo 65, inc. II, alínea “d” e demais regras sobre equilíbrio econômico-financeiro de contratos. Em primeiro lugar, é preciso apontar que o cerne da teoria da imprevisão do modo como é aplicada nos contratos administrativos diz mais respeito ao tema da distribuição de riscos que propriamente ao tema equilíbrio econômico-financeiro. A sua função é definir de quem é o risco de eventos imprevisíveis, irresistíveis, extraordinários e extracontratuais. Por pior que possa se considerar a redação do artigo 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93 ou a redação das cláusulas contratuais sobre esse tema, eu não consigo enxergar em que a teoria da imprevisão possa ajudar na interpretação dessas regras legais e contratuais. Tanto o artigo 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/93 quanto as cláusulas contratuais – e falo com mais conhecimento dos contratos de concessão e PPP que acompanho mais de perto que os outros – são em regra mais precisas que os contornos da teoria da imprevisão, de maneira que simplesmente não faz sentido mantê-la no centro das discussões sobre distribuição de riscos em contratos administrativos.
A discussão sobre a base constitucional do direito ao reequilíbrio tem também pouca utilidade. Na grande maioria dos casos, ela é completamente irrelevante, senão como um tema meramente acadêmico.
É que – apesar de haver dispositivo na Constituição Federal que diz que os contratos terão “…cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei…” (art. 37, inc. XXI) – seria absolutamente normal não haver qualquer referência na Constituição Federal ao direito ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e isso em nada mudaria a configuração atual desse direito.
Se o direito ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos é um direito à compensação da parte que foi impactada econômica e/ou financeiramente por evento cujo risco foi assumido por lei ou em contrato por outras partes do contrato administrativo, seria normal que esse tema fosse tratado apenas em lei e nos contratos, uma vez que não abrange nenhum direito fundamental do ser humano ou temas relativos à organização dos poderes ou forma de governo. Na experiência internacional, os institutos equivalentes ao que chamamos no Brasil de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos estão previstos em regra apenas em contratos4.
Além disso, como já demonstrei em outro estudo5, não há muito que se possa extrair da citada frase constitucional sobre o tema. Ela significa apenas que se espera que a lei crie algum sistema para manutenção ao longo do contrato das condições efetivas da proposta. Os significados de “manutenção”, de “condições”, de “efetivas” e de “proposta” dependem do que a lei estabelecer. Interpretações diferentes dessas palavras podem levar a sistemas de proteção de condições efetivas da proposta criados por lei muito diferentes da configuração atual do direito ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, de maneira que tentar extrair algo de concreto ou mais específico da Constituição é, em minha opinião, um esforço vão. No máximo, parece-me que se justifica uma menção nos textos jurídicos de que se entendeu no Brasil ser o direito ao equilíbrio econômico-financeiro tão relevante que a Constituição Federal fez referência a ele em uma frase com sentido pouco claro.
Por fim, note-se que, apesar d’eu não ter dados estatísticos sobre isso, a minha experiência é que a grande maioria dos casos não seria impactada na hipótese de não existência da mencionada norma constitucional.
Portanto, parece-me perda de tempo a leitura de textos jurídicos, alguns deles longos, sobre a existência (ou sobre a não existência) da base constitucional para o direito ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos.
Talvez o que chamei de fetiche seja nesse caso apenas resultado de uma compensação funcional: escreve-se sobre o passado e sobre a Constituição Federal porque não se tem muito a falar sobre o funcionamento da garantia ao equilíbrio econômico-financeiro, uma vez que tratar desse tema requer, evidentemente, compreensão dos aspectos econômicos e financeiros dos contratos, coisa ainda rara no nosso meio jurídico.
Mas isso só prova que, assim como no caso do combate ao sincretismo metodológico, é preciso voltar às lições básicas de coerência e simplicidade no discurso sobre o equilíbrio econômico-financeiro de contratos, à moda do Princípio de Occam, que estão na base de toda evolução do conhecimento a partir do Iluminismo. Só assim a academia jurídica voltará a ser relevante na evolução do tema.