Dimmi Amora, da Agência iNFRA
O Ministério da Infraestrutura criou o Setembro Ferroviário, o que pode ser considerado um trem lotado de iniciativas para o setor, entre elas a que é a aposta para ser a grande locomotiva dos próximos anos: o novo marco legal para permitir a implantação de ferrovias por autorização. Desde o mês comemorativo, com euforia, foram recebidos 19 pedidos de autorização para construir mais de 5,5 mil km de novas ferrovias, que teriam R$ 82 bilhões de investimentos estimados nos próximos 10 anos.
Mas outubro chegou e, com ele, começam a ficar mais claros os problemas da Medida Provisória 1.065 (que por enquanto é o que permite as autorizações ferroviárias no âmbito federal) para que seja possível tirá-las do papel. A começar por saber se a MP, de fato, será o marco legal ou se vai valer a proposta aprovada pelo Senado no último dia 5, o PLS 261/2018.
A Agência iNFRA conversou com mais de uma dezena de agentes públicos, especialistas e representantes de empresas sobre o tema. Há uma concordância unânime sobre a necessidade de se criar o modelo de implantação de ferrovias por autorização, como forma de ampliar os investimentos no setor, aumentando a capacidade para transportar o crescente volume de carga do país.
Mas vem se consolidando um temor generalizado em relação à proposta apresentada pelo governo e, principalmente, à forma como o Ministério da Infraestrutura está recebendo e processando os pedidos.
A desconfiança é grande sobre a capacidade de parte das empresas que fizeram as solicitações de levá-las adiante, além da colisão de muitas das propostas com ferrovias concedidas já existentes ou em implantação, o que para a maioria dos entrevistados seria a ruína para os projetos. A transparência sobre os pedidos feitos é incipiente. Em quase sua totalidade, as proposições se baseiam em projetos em níveis elementares.
A medida provisória expôs de vez o que é chamado de guerra ferroviária entre as empresas do setor, com as atuais empresas concessionárias disputando entre elas trechos ferroviários, num processo que para os representantes do setor público é uma bem-vinda concorrência intramodal, mas que especialistas indicam que pode ser um canibalismo de elevado custo futuro.
Questionado pela Agência iNFRA, o Ministério da Infraestrutura defendeu a proposta, minimizou os riscos apontados e reiterou a necessidade do país de ampliar a implementação de ferrovias (texto com o posicionamento da pasta está neste link).
Grande ampliação
A extensão e o volume de recursos para essas ferrovias solicitadas impressionam. O Brasil tem cerca de 30 mil quilômetros de ferrovias construídas ao longo de quase dois séculos, sendo que os dados apontam que só 1/3 tem uma operação de fato adequada.
Nos 20 anos do século atual, só uma ferrovia nova, de pouco mais de mil quilômetros, foi totalmente concluída e está efetivamente operando no país, a Ferrovia Norte-Sul entre Tocantins e Maranhão, operada pela VLI. O modelo para implementar ferrovias é a concessão de serviços, na qual o governo tem feito parte dos investimentos para depois repassar compra de máquinas, a operação e a conclusão das obras para o setor privado.
Se somente esses 19 pedidos forem à frente, seria um acréscimo de quase 50% na extensão ferroviária que realmente funciona. Há ainda um projeto estadual já autorizado pelo Governo do Mato Grosso, com 730 km, a extensão da Ferronorte, a pedido da Rumo, estimado em R$ 11 bilhões. Outros governos locais já aprovaram mudanças legislativas que permitem a autorização, mas não houve ainda nenhuma licença.
Construir uma ferrovia é sempre um projeto desafiador. Para que trens possam ser eficientes, andando a velocidades perto dos 80 km/h, é necessário construir uma via sem curvas apertadas e com retas de pouca inclinação. E isso custa caro, ainda mais em terrenos como os do Brasil.
Pelo que está na Medida Provisória 1.065, a empresa solicitante de uma autorização tem três anos, após a autorização, para obter a licença prévia, cinco para a de instalação e 10 para a de operação, ou terá que ter uma justificativa para o atraso. O investimento é todo por conta e risco da autorizada. A medida fala em análises a serem feitas pelos órgãos públicos antes da emissão das autorizações, como a chamada viabilidade locacional.
Conflito sobre a regulação
E é nesse ponto que começam os problemas de outubro. As regras para que os servidores públicos possam analisar os pedidos feitos são as que estão na MP, insuficientes para que uma decisão seja tomada.
Prometida para a semana seguinte à da publicação da MP, 45 dias depois saiu a regulamentação para realizar os processos de autorização ferroviária, a Portaria 131 do Ministério da Infraestrutura, disponível neste link, publicada no dia 15 de outubro.
O tempo decorrido foi porque os problemas para criar essas regras para o trâmite do processo de autorização e como dar essa licença começaram antes mesmo de a medida provisória ser editada. Houve uma oposição entre agentes públicos do Ministério da Infraestrutura e da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) muito além das disputas técnicas comuns sobre regulamentações setoriais.
Houve pedidos ignorados de especialistas da agência para que o ministério mudasse normas que entraram na MP, que eram consideradas incompatíveis com os normativos existentes, levando à necessidade de mudanças profundas na regulamentação ferroviária para que fosse possível concluir os processos de autorização.
O ministério acabou colocando na MP que é ele quem vai ficar responsável por praticamente todo o processo de análise dos pedidos. Em parte, isso é devido à necessidade de a agência cumprir o Decreto 10.411/2020, que determina que todas as normas que afetem o mercado têm que passar por processo de AIR (Análise de Impacto Regulatório), consulta pública e outros modos de participação social.
A estimativa é que não é possível fazer nada em menos de nove a 12 meses na agência. Há temor de que, se não cumprir essas regras, o TCU (Tribunal de Contas da União) barre qualquer iniciativa da ANTT. Os críticos da ANTT pelo lado das empresas apontam que ela é excessiva na regulação do funcionamento do setor ferroviário nas concessões e está buscando criar um sistema similar para as autorizações, o que pode engessá-lo.
Prazo indefinido
A Portaria 131 é datada de 14 de outubro, dia em que o ministério também entrou na mesma norma do Decreto 10.411/2020. Na prática, já deveria estar cumprindo os requisitos dele, visto que há indicações da Casa Civil desde 2018 sobre a prática de produzir as AIRs e consultas para mudanças com impacto setorial nesse nível. Mas a norma foi publicada sem qualquer tipo de consulta prévia aos interessados.
Somente após receber 19 pedidos é que os empreendedores sabem qual documentação é preciso apresentar para ter uma autorização ferroviária, de acordo com o que está descrito na Portaria 131.
O ministério manteve a centralização da pasta aos pedidos de autorização e foi delegado ao secretário nacional de Transportes Terrestres do ministério a responsabilidade de emitir as autorizações, e não ao ministro de Estado.
Está previsto que a ANTT tem um prazo de 45 dias, prorrogável uma vez sob justificativa, para dar ou não oposição à chamada viabilidade locacional do pedido, o que foi caracterizado apenas quando um trecho solicitado cruzar com outro trecho ferroviário.
No caso de mais de um pedido para a mesma área de influência, a portaria prevê que todos os pedidos sejam autorizados. Mas, num outro ponto, informa que se for verificada “incompatibilidade locacional ou outro motivo técnico-operacional relevante que impossibilite a implantação concomitante de autorizações […] será priorizada a outorga de autorização de acordo com a ordem de apresentação da documentação completa”.
Ou seja, foi criado um critério de escolha a quem pedir primeiro por um direito, numa portaria que saiu depois de pedidos já feitos, inclusive para trajetos idênticos. Foi criada uma possibilidade das outras empresas que pediram e não foram autorizadas a fazerem adequações para também terem seus pedidos atendidos depois, mas ficará a critério discricionário do ministério autorizar ou não.
A portaria prevê que a empresa pode determinar o prazo para iniciar as operações, que pode ser prorrogado indefinidamente por ato do ministério. Não há qualquer previsão de punição para a empresa que pedir uma autorização e desistir de implementar o projeto, mesmo que não apresente justificativa para isso, e o ministério tem 60 dias para homologar a desistência.
Intervenções políticas
O sistema ferroviário no país avançou no século XIX com as ferrovias construídas num modelo assemelhado ao atual de autorização. O modelo conseguiu tirar do papel na época obras que vinham sendo prometidas pelo Estado sem sucesso por anos e o país teve um grande boom ferroviário até o início do século XX.
A partir de então, de acordo com o professor da Universidade da Califórnia William Summerhill, em seu livro “Trilhos do Desenvolvimento”, que estudou o tema com profundidade, intervenções políticas e outros tipos de problemas foram tornando essas ferrovias menos rentáveis. Para que não fossem abandonadas, o Estado teve que assumi-las.
O governo federal operou as vias férreas até a década de 1990, quando os prejuízos bilionários da estatal criada para unificar a rede ferroviária passaram a ser insuportáveis para os combalidos cofres da União. As ferrovias foram concedidas, formando a conformação atual do sistema no país.
Depois de vender a Rede Ferroviária, para desenvolver novas ferrovias, o Estado vinha tentando fazer as obras com dinheiro público para depois concessionar as ferrovias, o que levou ao pífio resultado de implantação das últimas décadas, além de diversos inquéritos na Polícia Federal sobre desvios de recursos.
As dificuldades para se investir em malhas que pudessem capilarizar o sistema ferroviário existente levaram à ideia de criá-las por autorização, como uma espécie de segunda camada das linhas centrais, incentivando uma maior participação de empresas no sistema atual.
É o chamado modelo shortline, que tem levado a um crescimento do transporte por ferrovias nos EUA, onde a conformação do sistema é mais parecida com a do Brasil. O problema é que, para funcionar, não é preciso apenas que seja permitida a construção de novas linhas fora dos troncos, mas que a regulação delas seja mais simplificada, para tornar a operação mais atrativa. É um dos apontamentos do estudo feito pelo BCG (Boston Consulting Group) sobre o tema, que pode ser acessado neste link.
“Se a regra da autorização for a mesma que funciona na concessão, esquece, porque ninguém vai se interessar”, indicou um especialista.
Influência da política
A vontade de concluir os processos de autorização dentro do prazo da MP, que se for prorrogada se encerrará entre dezembro e fevereiro, a depender do recesso do Parlamento, tem sido encarada entre agentes do setor como a necessidade do ministro Tarcísio de Freitas de acelerar com os projetos por causa dos compromissos políticos devido ao fato de ter sido lançado pelo presidente Jair Bolsonaro como possível candidato nas próximas eleições. Em resposta, detalhada no texto do link, o ministério disse que isso é uma “acusação infundada e leviana”.
A medida provisória foi editada após um projeto de lei do Senado, o PLS 261/2018, do senador José Serra (PSDB-SP), ficar por quase dois anos sem ser votado na Comissão de Infraestrutura da Casa. Esse PLS tem direcionamento semelhante ao da MP na criação de um regime de autorização.
Como o projeto tramitava antes da MP 1.065, senadores de alguns estados protestaram contra a edição da medida e pediram ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a sua devolução, o que impediria que o governo autorizasse ferrovias ou até mesmo recebesse os primeiros pedidos, ato que ocorreu numa festiva cerimônia no Palácio do Planalto três dias depois da publicação da MP.
Alguns entrevistados lembraram que a cerimônia remeteu aos tempos do PAC e do PIL, programas de infraestrutura lançados pelos governos anteriores, quando projetos ferroviários pouco amadurecidos eram colocados em apresentações, mas depois não saíam do papel. Alguns dos trechos das autorizações pedidas agora, inclusive, faziam parte desses programas.
Para evitar a devolução da MP pelo Congresso, foi feito acordo entre o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e os senadores para deixar a MP caducar e ficar valendo o que for aprovado pelo Parlamento no PLS. O problema é que o ministério não quer perder a oportunidade de anunciar os investimentos já solicitados e trabalha para poder autorizar as propostas ainda dentro do prazo de validade da MP.
Não há confiança de que será possível aprovar o Projeto de Lei 261/2018 dentro do prazo em que a MP 1.065 estará vigendo, além dela ter direcionamentos diferentes sobre quem e como é feita a análise, dando mais poderes para a ANTT que os conferidos na medida provisória.
O PLS 261 foi aprovado pelo Senado no último dia 5 e encaminhado à Câmara. A proposta do Senado foi considerada um pouco mais restritiva que a do governo e há indicação de que o próprio Ministério da Infraestrutura possa tentar alterações na Câmara, o que faria o projeto retornar ao Senado. Outra possibilidade é aprovar como está e deixar para a Presidência vetar pontos específicos.
Como uma medida provisória tem força de lei enquanto estiver em vigor, se uma ferrovia for autorizada no período da vigência da MP, a avaliação entre os especialistas é que o ato será legal. Mas eles também alertam que seria uma temeridade iniciar projetos com valores bilionários dessa forma, principalmente os de grande porte. Dificilmente elas terão financiabilidade, devido ao elevado risco legal que será uma autorização dada nessas circunstâncias, indicam.
Falta de transparência
Além do risco financeiro, há também o risco social. As regras de transparência da medida provisória foram consideradas incipientes de forma quase unânime, fora dos agentes públicos, e pouco mudou com a edição da Portaria 131.
Não há previsão de que os pedidos sejam submetidos a consultas públicas prévias. O governo considerou isso, que é exigido no sistema portuário e nos projetos de autorização dos estados, uma burocracia desnecessária.
A organização Climate Policy Initiative, da PUC-RJ, afirmou que essa falta de transparência poderá ter consequências graves. Uma nota técnica avaliando a medida provisória sobre esse aspecto foi produzida pela organização e pode ser lida neste link.
Em entrevista à Agência iNFRA, os pesquisadores Joana Chiavari, diretora associada, e Gabriel Cozendey, analista legal, disseram que o regime na forma da MP “não possibilita uma adequada fiscalização, pela sociedade civil, de questões socioambientais referentes aos projetos de ferrovias” por não haver qualquer obrigação de publicação de dados dos requerimentos como estudos, projetos, licenças, condições de financiamento, traçado georreferenciado e justificativa para a aprovação ou rejeição das autorizações.
“Sem esses dados, fica muito difícil aferir os termos em que uma autorização é outorgada ou rejeitada. Além disso, a falta dessas informações dificulta a verificação dos impactos de um determinado projeto em áreas ambientalmente sensíveis, como áreas de proteção ambiental e terras indígenas. Abre-se, inclusive, a possibilidade de que um projeto a ser financiado por meio da emissão de títulos temáticos ‘verdes’, como os green bonds, tenha na verdade impactos socioambientalmente negativos”, explicaram por e-mail.
A forma com a MP centralizou no Ministério da Infraestrutura as decisões sobre autorização, vista como tentativa de autorizar de qualquer maneira as ferrovias que forem solicitadas dentro do prazo de vigência, foi avaliada como um enfraquecimento da regulação no país, numa decisão em sentido contrário ao que o ministro vem defendendo desde que chegou à pasta.
Colocar esse tipo de relação com o mercado fora do ministério tem sido a praxe. As autorizações portuárias, na aviação civil e no transporte rodoviário de passageiros são dadas pelas agências, só para ficar nos exemplos do setor de transportes.
Isso decorre do fato de o sistema de governança das agências reguladoras, que têm um colegiado de diretores com mandato e servidores especializados e com autonomia para emitir pareceres, ser muito mais sofisticado que o dos ministérios, cujos cargos são sujeitos à exoneração sem necessidade de justificativa. Menos sujeitos, portanto, a falhas técnicas e desvios.
O PLS 261 recuperou na sua proposta parte dos poderes da ANTT nos processos de autorização para as ferrovias, o que foi considerado um ponto positivo da proposta por alguns dos agentes entrevistados. No processo de votação, não houve oposição do Ministério da Infraestrutura a essas mudanças.
Mercado de projetos
Esses elementos levam a um temor entre especialistas, operadores e agentes públicos: o da criação de um mercado de projeto ferroviário. Para justificar a existência de uma ferrovia de grande porte, é necessário que se tenha uma quantidade substancial de carga para ser transportada. Para financiar a obra, que sempre tem custo bilionário, não é incomum que se exija do tomador contratos de garantia de transporte.
E nunca é pouca carga. Dificilmente uma ferrovia de trecho longo, de mil quilômetros por exemplo, vai se justificar economicamente com menos de um milhão de toneladas a ser transportada em média mensalmente (12 milhões por ano). Para se ter uma ideia da dimensão disso, o tipo de caminhão comum que transporta grãos tem 50 toneladas. São ao menos 20 mil viagens ao mês com esse tipo de caminhão para substituir o que se transportaria nos trens.
A maioria das empresas que pediu por autorização ao governo federal até o momento para construir ferrovia não tem essa característica de ter carga garantida nos trechos para os quais solicitaram. Outras têm, como são os casos de dois requerimentos da multinacional de celulose Bracell para trechos em São Paulo.
Parte dos trechos pedidos são vistos pelos técnicos como rotas de interesse para algumas cargas, especialmente as do agronegócio. Outros são apontados como possíveis imbróglios e de baixa viabilidade, como é o caso do pedido para ligar Curral Novo (PI) a Suape (PE), por uma empresa ligada ao grupo Bemisa.
O trecho se localiza na mesma rota do que hoje é a ferrovia em construção chamada Nova Transnordestina, controlada pelo grupo CSN, que há 15 anos tenta concluir esse projeto ferroviário no Nordeste e mal chegou à metade da construção, mesmo usando significativos subsídios públicos.
Recentemente, a Transnordestina entregou ao governo um plano para devolver o trecho até Suape, alegando que não há carga para ele (quer priorizar um outro trecho da ferrovia, que vai para o Porto de Pecém, no Ceará), o que levou um especialista a perguntar: “Não tinha carga para uma ferrovia e agora vai ter para duas?”.
Saída para novo regime
Há dois riscos apontados em operadores desse tipo. O primeiro é que não tenham experiência, o que pode criar ferrovias de baixa eficiência, seja na construção, seja na operação, o que tende a representar custos maiores a serem suportados pelos usuários ao longo do funcionamento.
O outro é que, se quem obtiver primeiro as autorizações para os trechos não tiver as condições de executá-los, poderá utilizá-los para negociar com empresas com condições de fato de operar, mercadejando o direito conquistado, mesmo sem reunir as expertises para implementá-lo.
Isso decorre do fato de que é praticamente consenso entre os especialistas que, se o governo seguir com sua atual direção de autorizar qualquer pedido de ferrovia, mesmo os que concorram entre si ou com ferrovias já existentes, o programa tende a ser um fracasso. As ferrovias são vistas como monopólios naturais, e ter mais de uma via operando para levar a mesma carga é apontado um fator de ruína para ambas.
Um estudioso do tema que analisou ferrovias em todo o mundo disse não ter visto nada nem parecido com essa possibilidade, de autorizar mais de uma ferrovia para operar um mesmo trecho. Um outro experiente operador ferroviário diz que “ter três ferrovias fracas é muito pior que ter uma forte”.
A financiabilidade das ferrovias é um dos temas mais desafiadores para quem quer implementar esse tipo de projeto, visto que são bilhões a serem empenhados nas obras antes de qualquer possibilidade de receita, quando as ferrovias são novas. O temor é que o modelo que está sendo desenhado torne inviáveis os financiamentos, impossibilitando a construção.
Por causa dessa possibilidade, um dos temas mais sensíveis no momento é a regulamentação de como será o direito das atuais concessionárias de pleitearem reequilíbrio de seus contratos ou até mesmo a saída do regime de concessão para o de autorização, no caso de uma autorização ser dada na área de influência da concessionária ou até mesmo sem que tenha qualquer influência das autorizadas.
O fato de a edição da medida provisória ter ocorrido em agosto (ela já vinha sendo pensada pelo governo desde o início do ano devido à demora do Senado em analisar o PLS 261/2018) deu-se em parte pela oposição do Ministério da Economia à proposta de permitir que as atuais concessionárias de ferrovias passassem para o regime de autorização.
No Senado, também havia oposição à essa permissão, liderada pela senadora Kátia Abreu (PP-TO). A permissão entrou e saiu várias vezes da proposta ao longo da tramitação. Na votação da semana, acabou sendo inserida no PLS a possibilidade de migração do regime.
Ter dois regimes diferentes, sendo um mais restritivo que o outro, tenderá a enfraquecer as atuais concessionárias ferroviárias, a exemplo do que acontece no setor portuário, no qual os terminais do regime autorizado (privados) têm sido mais competitivos que os que estão sob o regime público (arrendados), na visão dos especialistas no tema.
Clientes insatisfeitos
Há temor entre as empresas usuárias do transporte de carga que o modelo privado de ferrovias amplie o que é considerado um oligopólio no setor, já que o país tem três grupos empresariais que dominam a operação das ferrovias. No caso dessas empresas, a crítica à ANTT é que ela tem sido pouco eficaz em evitar abusos das concessionárias de ferrovia.
Há anos, as organizações dos setores industriais e do agronegócio tentam criar medidas de abertura do mercado, como permissão para que outros operadores possam operar trens pelas linhas existentes.
Temem que esses esforços possam ir por água abaixo se o modelo de autorização for implementado com restrições a esse tipo de concorrência, ampliando assim a possiblidade de monopólios que têm sido nocivos ao país.
Em sua defesa, os agentes públicos afirmam que as principais medidas regulatórias para abertura das ferrovias à concorrência interna já foram tomadas nas renovações contratuais e novos contratos, e nos regulamentos técnicos da agência, restando agora ao mercado criar uma empresa de fato para isso, o que nunca foi feito.
Diversos indicadores ao longo dos anos apontam que as ferrovias, que pela literatura do setor deveriam transportar a um preço por cerca de metade do custo do transporte por caminhão, têm cobrado valores muito próximos ao do transporte rodoviário. É comum os clientes dizerem que o preço que pagam na ferrovia é tabelado “em 90% do valor do caminhão”.
Outra reclamação é que a maior parte da malha está abandonada e as concessionárias não a operam e nem permitem a operação de outros, dificultando o acesso ou mantendo-a degradada. No processo de desestatização da década de 1990, o governo não colocou regras de operação mínima das malhas e as companhias privadas podem operar somente as áreas lucrativas.
A maior parte das emendas à MP 1.065, como mostrou reportagem da edição 1.115 da Agência iNFRA, e ao PLS 261/2018 tenta trazer para o regime de autorização as regras que estavam no regime de concessão para tentar reduzir o que é chamado de “monopólio das ferrovias”. A disputa comercial, nesse caso, é sempre entre grandes grupos econômicos, sempre em busca do melhor negócio possível.
Os donos das ferrovias
As concessionárias que dominam praticamente 100% do transporte de carga no país são a Rumo, do grupo Cosan; a MRS, que tem como acionistas a Vale, a CSN e a Gerdau; e a VLI, que tem como acionistas a Vale, a Brookfield, a Mitsui e o FI-FGTS. A Vale opera duas ferrovias concedidas. Mas não se pode dizer que estejam no momento em harmonia, como mostra reportagem da Agência iNFRA.
As concorrentes têm acusado a Rumo de estar tentando atrapalhar os processos de renovação antecipada dos contratos delas e também os de implantação de novas ferrovias, especialmente a Ferrogrão, um projeto para ligar a maior região produtora de grão do Mato Grosso aos terminais portuários do Norte do país. O relato é reforçado por graduados servidores públicos do governo federal, que apontam que a Rumo foi quem atrapalhou a tramitação do PLS 261/2021 no Senado.
Em oposição a isso, a Rumo vem tentando se apresentar como vítima de ações do governo para barrar seu crescimento desde que ganhou a concessão da Ferrovia Norte-Sul entre Tocantins e São Paulo numa disputa em leilão com a VLI no início de 2019.
No caso da extensão da Ferronorte, a ferrovia que, semanas antes da edição da MP 1.065, foi autorizada pelo governo do Mato Grosso e levará os trilhos da Rumo de Rondonópolis para Lucas do Rio Verde, a empresa pediu ao Ministério da Infraestrutura cinco anos atrás para estender a sua linha, num processo que é permitido pelas regras atuais, mas o governo nunca se pronunciou.
No caso das autorizações, a companhia enxergou que seus concorrentes estavam tentando construir ferrovias para lhe tirar cargas, como é o caso de um pedido da VLI para uma linha entre Chaveslândia e Uberlândia (MG). A cidade de Chaveslândia fica ao lado de São Simão (GO), um dos principais terminais do trecho da Ferrovia Norte-Sul, da Rumo, recentemente inaugurado com a presença do ministro.
Em outra frente, a Rumo decidiu tirar da MRS a exclusividade na entrada de cargas no Porto de Santos (SP), o que a VLI já tinha feito quando entrou com seus primeiros pedidos de autorização no início de setembro. A alegação é que a MRS atrasa a operação dos trens e cobra um valor acima do mercado por esse pequeno trecho, chamado de Ferradura, o que a MRS diz que será corrigido na renovação de seu contrato. O debate sobre o tema pode ser visto nas reportagens da Agência iNFRA.
A entrada da Rumo
A Rumo era um operador ferroviário, criado em 2008. Em 2014 assumiu os 12 mil quilômetros de ferrovias que eram da ALL, empresa controlada pelo fundo 3G Capital, que consolidou numa só companhia várias ferrovias concedidas nos anos 1990 nas regiões Sul e Sudeste do país.
O método 3G de obter os maiores lucros possíveis reduzindo custos indefinidamente levou a companhia a ter uma péssima avaliação dos clientes e a um aumento de acidentes. A Cosan, que era então uma de suas principais clientes e a quem a ALL não atendia nas regras do contrato, aproveitou-se para adquirir a companhia numa operação ruidosa no mercado.
Desde que assumiu a operação, a Rumo fez investimentos estimados em R$ 20 bilhões para melhorar a operação, conseguiu reduzir as tarifas, ampliou o tipo de carga transportado por trens e o número de clientes reclamando vem se reduzindo. Mas ainda há trechos abandonados, especialmente na Malha Sul. Ela vem ampliando sua participação no mercado nos segmentos de carga geral e agrícola e já anunciou projetos até para transporte de minério.
Desde que ganhou o leilão da Ferrovia Norte-Sul, no trecho entre Tocantins e São Paulo, passou a despertar dentro dos representantes do governo o temor de que possa criar um monopólio no setor, o que prejudicaria especialmente o agronegócio na região Centro-Oeste, dependente de ferrovias para ser competitivo, na visão deles.
O ministro Tarcísio de Freitas, que teve grandes produtores do agronegócio com um dos apoios para ser indicado ao cargo em 2018, vem falando reiteradamente no tema. Como forma de contrapor essa possível monopolização, passou a defender mais fortemente implementar a Ferrogrão e a Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste)/Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste).
No caso da Ferrogrão, reportagem do jornal O Estado de S. Paulo informou que a Rumo de fato tentava atrapalhar o projeto, apoiando ações de diversos opositores a ele. A proposta da Ferrogrão, que liga a região produtora do Mato Grosso aos terminais portuários do Rio Tapajós no Pará, é a que economicamente dá a solução mais barata para a exportação da soja da maior região produtora do Mato Grosso.
Mas tem dificuldades e falhas evidentes em seu processo, que vêm sendo exploradas uma a uma, o que tem travado a construção da via. Construir uma ferrovia de quase mil quilômetros do zero na região Amazônica, sem recursos públicos, como vem sendo prometido, é um risco elevado. O governo tem se contorcido para tentar mitigá-lo, mas até o momento sem sucesso. Não houve nenhum pedido de autorização para ela, até o momento.
No caso da Fico, ela é uma ferrovia que vem fazendo parte de vários planos de governo, inclusive de uma abilolada tentativa de criar uma ferrovia entre o Atlântico e o Pacífico que circulou pelo país no meio da década passada com suposta aprovação do governo chinês.
Depois da vitória da Rumo na Norte-Sul, o Ministério da Infraestrutura decidiu acelerar a Fico, usando dinheiro da renovação da Vale de suas ferrovias em Minas Gerais e Espírito Santo para construir um trecho de 200 quilômetros entre Água Boa (MT) e Mara Rosa (GO), local onde ela se encontra com a Ferrovia Norte-Sul.
Agora, quer acelerar a concessão de mais dois trechos de uma ferrovia na Bahia, a Fiol, usando inclusive recursos de outorgas de outras ferrovias, para que a Fico possa se ligar a ela, criando uma saída ferroviária do Mato Grosso para o mar além das existentes hoje, que são controladas pela Rumo (ao sul) e pela VLI (ao norte).
Para se posicionar de maneira privilegiada na Fico, a VLI decidiu então apresentar o pedido de autorização para construir de forma privada o trecho entre Água Boa e Lucas do Rio Verde, apenas três dias depois de o governo lançar a MP. Um mês depois, a Rumo fez o pedido para o mesmo trecho.
A principal autoridade em ferrovia no Ministério da Infraestrutura, o diretor do Departamento de Transporte Ferroviário da pasta, Ismael Trinks, afirmou em evento recente que as ferrovias consideradas “estratégicas” pelo governo não serão reguladas pelo novo modelo de autorização previsto, tanto na MP 1.065 quanto no PLS 261.
Mas os processos estão tramitando e de forma incomum pelo governo. A Portaria 131 foi publicada no Diário Oficial do dia 15, em geral levado a público no início da manhã. Às 11h13 da manhã do mesmo dia, a Superintendência de Infraestrutura Ferroviária da ANTT emitiu a nota técnica 5505/2021/COAPI/GEPEF/SUFER/DIR dizendo que há viabilidade locacional para a implantação do trecho da Fico pedido pela VLI.
Reequilíbrios
A guerra entre as concessionárias ferroviárias, que ficou pública na semana passada, levanta uma preocupação por parte dos especialistas sobre a conta que pode sobrar no futuro. As atuais concessionárias têm contratos que lhes garantem exclusividade na operação das regiões onde estão suas ferrovias.
A Rumo e a Vale, que opera duas ferrovias no país diretamente, se comprometeram a fazer investimentos que ultrapassam os R$ 20 bilhões ao renovarem nos últimos dois anos suas concessões por mais três décadas. A MRS está em fase final de renovação de sua malha.
Autorizar novas ferrovias nas regiões já servidas por ferrovias necessariamente vai levar a reequilíbrios dos contratos, que nos casos das ferrovias são complexos porque as possibilidades para reequilibrar são restritas. Os contratos têm preços-teto muito mais altos que os praticados pelas concessionárias, por exemplo. Os prazos já muito longos. Em alguns casos outorgas foram antecipadas.
Foi criada a possibilidade de que as concessionárias também passem para o regime de autorização, se desejarem, mas essa possibilidade é vista como altamente complexa e juridicamente arriscada até o momento, especialmente no que trata da transição dos bens públicos, que hoje elas administram, para o regime privado.
Necessidade de investimentos
Tendo pouca extensão ferroviária para suas dimensões, o Brasil acaba transportando menos do que o recomendado por esse meio. A estimativa dos programas oficiais do governo está na faixa dos 20% de tudo o que é transportado. Mas, como o minério de ferro representa por volta de 80% do que é transportado em ferrovia e quase tudo vai por ferrovia, ele distorce os números. Os outros produtos têm uma participação bem abaixo dos 10%, na média.
O plano do atual ministério é dobrar o percentual de cargas transportadas por ferrovias em relação ao total com as autorizações ferroviárias (no fim da próxima década), o que nos deixaria em patamares assemelhados aos de nações de mesmo porte.
Há carga para isso, o que é apontado por todos os estudos sobre o tema já feitos. Mas o Estado, que na maior parte do mundo é quem induz o crescimento ferroviário, dificilmente terá como fazê-lo no Brasil pela total falta de prioridade no orçamento público para gastos com o setor de infraestrutura, mantida a tendência atual. Por isso, o projeto de ferrovias autorizadas é visto como a saída possível para o setor.
Entre empreendedores que estão buscando o enquadramento de projetos no modelo, a sensação é de que será necessário de fato esperar pelas regulamentações e pela definição de qual lei valerá para que seja possível seguir com a proposta apresentada. Eles apontam que os projetos têm demanda, que os técnicos do ministério têm tratado tudo com profissionalismo e indicam que haverá a segurança necessária para realizar os investimentos.
Há planos do ministério para apoiar os autorizatários nas etapas seguintes à autorização, como no licenciamento e na obtenção de crédito. Está em estudo a criação de pacotes de prestação de serviços a serem ofertados pela Valec – estatal vinculada ao ministério que está sendo transformada numa empresa de prestação de serviços. Além de rodadas de negócios para tentar um “match” entre financiadores e empreendedores.
Há muitas barreiras a serem vencidas para que o projeto de ferrovias autorizadas possa sair da publicidade e entrar nos trilhos. Até o momento, o trem segue aguardando na Estação Setembro Ferroviário para seguir em seu longo e tortuoso caminho para termos, de fato, novas ferrovias operando.