Bernardo Gonzaga, da Agência iNFRA
O aluguel de navios estrangeiros no Brasil para o transporte dentro do país, a chamada cabotagem, abre margem para manobras fiscais que podem levar à evasão de divisas e criar restrição à concorrência. É o que indicam documentos protocolados no Ministério da Infraestrutura, apontando que uma das empresas nacionais do setor, a Norsul, afreta navios de subsidiárias dela mesma no exterior por preços acima da média praticada no mercado.
Pelas regras, empresas com sede no Brasil e com embarcações nacionais podem afretar (uma espécie de aluguel) navios estrangeiros para complementar sua frota nacional.
Os documentos denunciando essa prática foram enviados ao ministério no momento em que a pasta trabalha em um pacote de medidas que deve ser lançado ainda neste ano, o chamado BR do Mar, para tentar aumentar a concorrência na cabotagem no Brasil, permitindo a ampliação de afretamento, entre outras medidas.
As informações se baseiam em dados obtidos por meio do vazamento de informações sigilosas conhecido como “Panama Papers”. Eles indicam que subsidiárias da Norsul têm elevados lucros no exterior, onde não pagam impostos, que seriam obtidos de maneira artificial.
O denunciante, que terá a identidade preservada, diz que “as embarcações de maior porte [que fazem cabotagem no Brasil] não são de propriedade direta da Norsul, mas de suas empresas estrangeiras que concentram quase 70% da frota que explora, unicamente, a cabotagem”.
Reportagem especial da Agência iNFRA sobre o tema mostrou com exclusividade auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) em que o órgão de controle aponta diversos problemas para o desenvolvimento na cabotagem do Brasil. Entre eles, a falta de fomento à concorrência no setor. A reportagem completa está neste link.
A empresa Norsul nega qualquer irregularidade, diz que faz as suas declarações de impostos no Brasil de acordo com a lei e que está 100% de acordo com a legislação sobre afretamento de navios no país. A resposta completa da companhia está no fim deste texto.
O mercado
No mercado de afretamento, uma empresa que tem carga para transportar contrata um armador de cabotagem para realizar esse serviço dentro do país. O armador emite a nota para sua contratadora e recebe o recurso. Em tese, o armador vai pagar imposto sobre o faturamento dele, descontadas suas despesas.
A evasão fiscal aconteceria no momento em que a Norsul paga acima da média do mercado pelo afretamento de um navio que seria dela mesma, de acordo com os documentos obtidos no “Panama Papers”.
Com essa operação, a empresa deixaria de pagar parte do imposto de renda devido no Brasil. Isso ocorre porque o navio afretado é livre dessa cobrança aqui. A operação de afretamento, que é uma espécie de aluguel de navio, é contabilizada como se fosse uma despesa da Norsul.
Essa despesa é chamada de “preço de transferência”, que significa o preço praticado em uma operação de importação ou exportação entre uma empresa e suas filiais ou sucursais ou uma empresa e sua controladora.
O abuso dessa operação, que caracterizaria evasão fiscal, acontece quando uma empresa, com o objetivo de transferir lucro a paraísos fiscais para não pagar IR no Brasil, eleva artificialmente as despesas. No caso específico, os custos inflados do aluguel reduziriam a quantidade de recursos arrecadados pela Norsul que poderia ser taxada no Brasil.
Os casos
Uma dessas empresas pertencentes à Norsul, a Norwest Navigation Inc, aparece no balanço patrimonial da Norsul de 2016. No mesmo documento, outra empresa pertencente à Norsul, a Norwest Navigation SCS, aparece com endereço registrado em Luxemburgo. Na prática, elas são uma só e usam de artifícios para reduzir o pagamento de impostos no exterior, de acordo com o material.
A Norwest Navigation Inc é, na prática, dona dos navios Rya Rad e Den Sha. Eles estavam afretados pela Norsul em 2016 para transporte de bauxita na navegação de cabotagem no Brasil. Os dados apontam que a Norwest teve lucro bruto de R$ 5,9 milhões.
Documento, que vazou no “Panama Papers”, mostra que o navio Rya Rad está em nome da empresa Rya Rad, que tem como sócia a Norwest e como controlador Haakon Lorentzen, sócio majoritário da Norsul, presidente do conselho diretor à época. Lorentzen é sobrinho do rei da Noruega.
A Rya Rad aparece em atividade desde 2010 e com base no Reino Unido. No documento de prestação de contas dessa empresa em 2016, ela registra uma receita de US$ 12,9 milhões e gasto administrativo na ordem de US$ 7,1 milhões.
Os navios Rya Rad e Den Sha, ambos controlados por ela, teriam a única função de prestar afretamento na cabotagem brasileira, o que tornaria esse gasto administrativo elevado para os padrões nacionais. A movimentação dos dois navios, o Rya Rad e o Den Sha, segundo os documentos, daria uma média aproximada de US$ 17 mil/dia o valor pago pelo afretamento, o que é distante da média do custo de afretamento de um navio do mesmo porte para aquele ano.
A tabela da Baltic Exchange, um dos organismos comerciais mais respeitados em valores de afretamentos, aponta que a média diária de afretamento de navio do mesmo tipo no mercado mundial, na maior parte do ano de 2016, variou de US$ 3 mil a US$ 7 mil. Somente entre a segunda quinzena de novembro e a primeira quinzena de dezembro daquele ano os valores da diária superaram US$ 10 mil.
Em outro caso, no afretamento do navio Babitonga Bay, que seria de propriedade da Norsul em 2016 (está em nome da sua subsidiária Arlott e P&B Shipping), também estaria sendo usada a manobra contábil.
Em 2016, em um dos documentos enviados ao ministério, a empresa Arlott aparece como de propriedade de Haakon Lorentzen, também sócio da Norsul, e baseada no Reino Unido. No mesmo ano, ela apresentou faturamento de US$ 6,4 milhões. Esse valor teria sido fruto apenas de valores do afretamento do navio Babitonga Bay na cabotagem brasileira.
Os gastos administrativos da empresa aparecem com valor de US$ 2,3 milhões, o que, segundo o material de acusação, também não é compatível com o de uma empresa que existe apenas para alugar um navio.
Os especialistas
A Agência iNFRA consultou três especialistas em tributação, sendo dois deles da Receita Federal. As fontes foram informadas quanto à prática descrita nos documentos que estão com o Ministério da Infraestrutura, mas não acessaram o conteúdo do material.
Um dos especialistas, advogado tributarista, disse que essa prática não necessariamente caracteriza evasão fiscal. Mas que, independente de ser ou não, se ficar provado o intuito da empresa de burlar a legislação fiscal, a prática é ilegal, mas somente a Receita poderia atestar isso.
Já as fontes da Receita Federal disseram ver semelhanças com o caso típico de evasão fiscal. “O valor do afretamento muito acima do de mercado é uma forma de mandar dinheiro para fora [neste caso]”, disse uma fonte.
A outra fonte, também da Receita Federal, disse que quando uma empresa contrata uma subsidiária dela mesma no exterior e o preço do serviço cobrado é acima do de mercado, é uma típica forma de evasão. A fonte enfatizou que essa prática não é incomum no país.
Segundo o especialista, a Receita tem dificuldades de chegar até esses mecanismos porque são muitas empresas e pessoas físicas a serem fiscalizadas. Quando é identificada uma transação suspeita ou uma prática irregular no mercado, na hora da autuação, muitas vezes a empresa já foi fechada.
“Você chegar ao resultado é uma obra de muito trabalho. O cara começa a fiscalizar uma empresa e não consegue em um ano fiscalizar um ano dessa empresa. Mesmo com a tecnologia. Em parte, no Brasil, se perde na complexidade. Um dos pontos dessa complexidade é tributar sobre lucro”, disse.
A posição da empresa
Procurada, a empresa de navegação Norsul disse que “respeita rigorosamente todas as obrigações legais fiscalizadas pela Receita Federal quanto aos preços de transferência praticados entre suas subsidiárias/partes relacionadas. Portanto a precificação do afretamento de suas embarcações entre as empresas do grupo está 100% adequada ao normativo legal brasileiro vigente”.
Ainda em nota, a Norsul diz que “tendo em vista a característica específica de cada embarcação, como dimensão, capacidade, tipo de carga transportada, idade, consumo de combustível etc. não podemos afirmar que os preços praticados pela nossa companhia estejam acima ou abaixo do mercado, tendo em vista a dificuldade de se estimar os navios que possam ser usados como comparação exata para esta finalidade”.
A companhia informa ainda que “os preços de afretamento praticados pelo mercado variam diariamente dependendo do tipo de navio, de carga, da localidade e da disponibilidade naqueles períodos e não há um parâmetro que possa ser usado para a cabotagem brasileira com esta finalidade”.
Sobre o afretamento do navio Rya Rad em 2016, a companhia informou que “o valor de US$ 7,1 milhões de despesas administrativas, conforme reportado em demonstração financeira registrada publicamente na Companies House na Inglaterra, são referentes ao total destes gastos da subsidiária como um todo, englobando não somente o navio Rya Rad, mas também o navio Den Sha” e atribui esse valor à “depreciação contábil” dos equipamentos “registrada pelo método linear, que considera o custo de aquisição das embarcações apropriados ao longo da vida útil estimada do navio”.
A empresa diz ainda não ter sido comunicada sobre denúncia ou irregularidade pelos órgãos competentes. “Entendemos que não há que se falar em sonegação, uma vez que o resultado auferido pela subsidiária no exterior é considerado de forma individualizada na determinação da base de cálculo anual do Imposto de Renda (IRPJ) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) da Norsul no Brasil, em conformidade com o art. 79 da Lei 12.973, de 13/05/2014. Referidos valores são informados detalhadamente na Escrituração Contábil Fiscal da Norsul submetida anualmente ao fisco brasileiro.”
“Adicionalmente, a Norsul efetua os cálculos dos preços de transferências no afretamento de embarcações de suas subsidiárias, de acordo com o disposto nos art. 18 a 24 da Lei 9.430 de 27 de dezembro de 1996, também informado de forma detalhada na Escrituração Contábil Fiscal.”