Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Um encontro histórico está previsto para acontecer nesta quinta-feira (25) entre as pequenas cidades de Palmeiras de Goiás e Goianira, no interior de Goiás, região central do Brasil. Será quando, após mais de três décadas, trilhos que vêm da ferrovia iniciada no Maranhão em 1986 se conectarão aos que sobem de São Paulo e o país ganhará sua primeira ferrovia que transita pelo interior com capacidade de conectar portos do Norte aos do Sul, a Ferrovia Norte-Sul.
Pensada no Império, desenvolvida a partir de 1986 e remodelada em 2006 para um novo traçado, a Norte-Sul terá os 2,2 mil quilômetros entre as cidades de Açailândia (MA) e Estrela d’Oeste (SP) finalmente conectados, com a conclusão desse último trecho. Agora, ela terá a capacidade de ligar o Porto de Itaqui (MA) ao de Santos (SP) por via ferroviária.
Depois da conclusão, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) deve fazer uma visita ao trecho para o processo de homologação e, depois disso, a previsão é que seja marcada uma cerimônia com autoridades para a inauguração oficial.
O trecho que fica pronto é de responsabilidade da Rumo, que em 2019 ganhou a subconcessão de 1.537 quilômetros da estrada de ferro, entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste. O trecho de 720 quilômetros de Porto Nacional a Açailândia foi subconcedido em 2008 à VLI, empresa controlada pela mineradora Vale.
Com a ligação, finalmente, o país terá uma capacidade que não é a que está no nome da ferrovia (ligar o Norte e o Sul), mas outra ainda mais relevante e que pode acelerar uma mudança no desenvolvimento nacional: dar uma solução logística eficiente para o transporte de mercadorias a uma vasta região no centro do Brasil, cuja ausência a vinha condenado a uma baixa produtividade por séculos.
“Se você rodar o trecho hoje, o que se vê a olhos vistos são amplas áreas que poderiam ter aproveitamento econômico de alto nível, alta eficiência agrícola e industrial, que estão subaproveitadas. Justamente por falta de solução logística”, disse Guilherme Penin, diretor regulatório da Rumo.
A ferrovia passa por três regiões do país (Norte, Centro-Oeste e Sudeste) e conectará áreas de três estados (Minas Gerais, Goiás e Tocantins) que não têm nem saída para o mar nem para outros países, lembra o diretor da empresa. Com essas características, vastas áreas não tinham formas viáveis de escoar produtos eficientemente, já que as distâncias até os portos mais próximos passam de 1,5 mil, 2 mil quilômetros. Isso torna o frete rodoviário (única opção) impraticável, inviabilizando vários tipos de negócios.
A expectativa, que dá sinais de que está se concretizando mesmo antes da conclusão total das obras, é que além da tradicional produção agrícola de elevada produtividade visando ao mercado externo (soja, milho e algodão são os produtos mais comuns), uma vasta gama de empreendimentos pode tornar-se economicamente viáveis pela possibilidade de usar o trem como transporte, seja para os portos, seja para a região de maior renda e produção do país, o Sudeste.
O engenheiro Bento Lima, que trabalhou na Valec (estatal que recebeu a concessão da Norte-Sul ainda no século passado), conta que conheceu o idealizador da ferrovia, o também engenheiro Paulo Vivacqua, que trabalhava na Vale do Rio Doce. A Norte-Sul foi idealizada como uma compensação pela construção da EFC (Estrada de Ferro Carajás), projeto da Vale da década de 1970 ligando o Pará ao Maranhão para escoamento de minério de sua mina mais produtiva.
Bento diz que Vivacqua era “um homem de visão” e que já antecipava que toda essa região ao centro do país, até então improdutiva, seria em algum momento utilizada, o que passou a acontecer a partir dos anos 1970, com a ocupação de áreas por agricultores e o desenvolvimento de tecnologias que permitiram uma agricultura de alta produtividade em áreas próximas ao paralelo 16, que passa entre Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e sul da Bahia.
“No mapa do Brasil, você tinha o litoral povoado e depois quase nada. Quebrou-se essa coisa de que o cerrado não prestava para nada. Mas não foi caminhando do litoral para o oeste, mas do sul para o oeste. E ficou um hiato entre o litoral e o oeste”, explica Bento, apostando que a ferrovia vai preencher esse hiato.
Penin, da Rumo, aponta que estudos indicam o centro do eixo da produção agrícola do país na década de 1970 localizado entre os estados do Paraná e do Rio Grande do Sul. Após a incorporação do oeste, o eixo atualmente está na região entre o Mato Grosso e Goiás, justamente a área que não tinha ferrovias com qualidade adequada para o transporte de mercadorias.
O diretor da empresa aposta que a Norte-Sul deve repetir o que já acontece em outra região do interior atendida pela estrada de ferro a partir da década passada com maior qualidade, o sul do Mato Grosso. Penin conta que cada avanço da ferrovia ou ganho de produtividade que gere redução de custos de frete pode viabilizar novas áreas para produção agrícola de alta produtividade e, posteriormente, outros negócios industriais, tanto em Goiás como no Tocantins.
“São vastas áreas com produção de subsistência ou de pecuária de baixa intensidade ou agricultura improdutiva que vão ser incorporadas mais rapidamente à produção moderna. Porque as condições físicas para tal, relevo, clima e outras, estão ali. O que não estava era a solução logística, o que tornava proibitivo o investimento naquele hectare”, explicou Penin.
O estado do Tocantins é citado como exemplo de como a chegada da ferrovia é transformadora. Bento conta que o estado foi o que mais cresceu proporcionalmente na produção de grãos nos últimos 10 anos, 153%. Nenhum outro estado chegou a 100%, informa o engenheiro, que não tem dúvidas de que a ferrovia, aliada à criação do estado na Constituição de 1988, foi a responsável por esse desenvolvimento.
Bento lembra que, na época da construção da Norte-Sul, um hectare no estado não passava de R$ 1 mil. O ex-secretário de agricultura do estado, Thiago Dourado, atualmente consultor de empresas, diz que hoje um hectare no Tocantins pode valer entre R$ 5 mil e R$ 50 mil. Essa variação depende de quão próximo ele está de uma infraestrutura de transporte.
“Com infraestrutura perto, vale 10 vezes mais”, conta Dourado.
O sul de Goiás, onde a Rumo antecipou a inauguração da ferrovia para 2020 e começou a operar num trecho entre Estrela d’Oeste (SP) e Rio Verde (GO), levando cargas para São Paulo, vive um momento econômico sem precedentes, que pode ser visto na cidade de Rio Verde, de 250 mil habitantes, que fica no traçado da ferrovia.
A previsão da prefeitura local, que trabalhou para que a cidade abrigasse pátios ferroviários, era que fossem gerados 10 mil empregos diretos ao longo de 10 anos após o início da operação da via. Esse número foi alcançado em três anos, segundo o prefeito da cidade, Paulo Faria do Vale. Só em 2023, até março, foram mais 1,3 mil.
“A economia do município se transformou”, contou o prefeito sobre a chegada da Ferrovia Norte-Sul.
A história
Chegar ao momento de ligação dos trechos dessa ferrovia pode-se definir como uma saga, nem sempre com atos heróicos. Ao lançar a ferrovia em 1985, o então presidente da República, José Sarney, foi muito criticado, já que não havia carga na região que justificasse o investimento bilionário. A estratégia de vendê-la como uma integração entre o norte e o sul do Brasil não ajudou a melhorar a percepção ruim de então.
Para Bento Lima, a forma escolhida para divulgar a ferrovia escondeu a estratégia real, que era ser uma ferrovia de desenvolvimento para o Centro-Oeste. Esse modelo de ferrovia tenta antecipar o desenvolvimento de uma região, levando uma solução logística mais barata como forma de fomentar o crescimento em áreas de baixo desenvolvimento.
“Chamar de Norte-Sul foi mais para fazer marketing”, disse Bento, que não concorda com as críticas de que ela demorou a ser feita. “Ferrovia de desenvolvimento você vai construindo na medida em que o local vai se desenvolvendo. Para o norte, acredito que o tempo foi o adequado.”
As críticas à ferrovia se ampliaram diante das denúncias de que a construção havia sido contratada numa licitação de cartas marcadas em 1986. As sucessivas crises fiscais que perduraram praticamente até o ano de 2005 fizeram com que a Norte-Sul andasse pouco, não alcançando mais de 200 quilômetros, entre Açailândia e Estreito (MA).
O economista Bernardo Figueiredo, que trabalhou no Geipot, órgão de planejamento do governo até a década de 1990, e posteriormente ajudou o primeiro governo do presidente Lula a elaborar um plano ferroviário, contou que ao chegar ao governo encontrou um projeto que na prática não era uma ferrovia ligando o Norte ao Sul.
Isso porque havia uma ligação que ia da cidade de Açailândia (MA) até Colinas do Tocantins (TO) e outra de Porangatu (GO) até Anápolis (GO). Ou seja, a Norte-Sul eram duas ferrovias que não se conectavam. Isso era tecnicamente justificável porque a EFC (Estrada de Ferro dos Carajás), onde a Norte-Sul se liga ao norte para chegar ao porto de Itaqui (MA), tem a chamada bitola larga (largura entre os trilhos).
Já o ponto que seria a ligação ao sul da ferrovia, em Anápolis, com a FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), ferrovia que vai de Goiás a São Paulo (por um caminho mais alongado que a Norte-Sul), tem a bitola estreita. Pelas diferenças de bitola, a técnica indicava que não seria adequada uma ligação única. Mas o presidente Lula, que foi um dos críticos ferrenhos do presidente Sarney quando a ferrovia foi lançada, decidiu fazer a ligação completa e mudou o projeto.
A partir dali, segundo Bernardo, é que a ferrovia passou a ser de fato uma ligação entre o norte e o sul do país, já que seria toda construída em bitola larga e parando não mais em Anápolis, mas em Estrela D’Oeste (SP), onde se ligaria à Malha Paulista, a ferrovia que chega ao porto de Santos (SP).
Em 2008, a Lei do SNV (Sistema Viário Nacional) foi aprovada com a modificação do traçado da Norte-Sul e, com isso, nasce oficialmente a ferrovia que será entregue nos próximos dias. Há outros trechos da ferrovia em estudos, de acordo com a Valec, desde 2022 rebatizada de Infra S.A, que levam até o Rio Grande do Sul, ainda não desenvolvidos (estudos neste link). [https://portal.valec.gov.br/ferrovias/ferrovia-norte-sul/estudos-de-viabilidade-evtea]
“Foi só aí [2008] que ela virou Norte-Sul”, contou Bernardo.
Mas, de novo, a implementação não saiu sem novas denúncias de corrupção em sua construção, o que levou a diversas operações da Polícia Federal ao longo da década passada contra ex-dirigentes da então Valec, a estatal que tem a concessão da ferrovia e passou a cuidar da construção desde o início.
Como forma de iniciar o processo de operação da parte da ferrovia que estava pronta, em 2008 o governo também decidiu licitar um primeiro trecho, entre Porto Nacional (TO) e Açailândia (MA), fazendo a chamada subconcessão. Lá, segundo Bernardo, já estava um problema operacional que, para ele, ainda não teve solução e pode prejudicar o desenvolvimento futuro da ferrovia, o direito de passagem.
Nas contas dos estudos da concessão de 2008, a chamada FNS (que é o trecho de Porto Nacional a Açailândia) valeria 50% menos se não fosse garantido o direito de passagem para que os trens que operam nela pudessem cruzar pela EFC, a ferrovia da Vale, e chegar ao porto de Itaqui (MA), segundo Bernardo. O governo obteve da Vale a garantia do direito de passagem e pôde conceder a ferrovia pelo dobro do valor. Mas somente a própria Vale apareceu na disputa.
Entre 2001 e 2022, o Brasil, investiu R$ 20 bilhões em construção de ferrovias com recursos do Orçamento da União, de acordo com dados atualizados da Infra S.A, o que inclui obras na Norte-Sul (cerca de 3/4) e na Fiol, uma ferrovia na Bahia. Desse valor, R$ 16 bilhões ficaram concentrados em apenas cinco anos, entre o último ano do segundo mandato do presidente Lula e os quatro anos do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.
“Concluir a Norte-Sul é um feito fantástico da engenharia ferroviária brasileira. Temos que dar parabéns aos engenheiros do quadro da Valec, que conseguiram terminar esse processo, mesmo com investimentos que foram altos só num período e depois foram pequenos”, disse Jorge Bastos, que desde fevereiro deste ano presidente a Infra S.A.
Os avanços lentos da construção da ferrovia na década passada fizeram o governo da presidente Dilma Rousseff iniciar um segundo processo de subconcessão, agora do trecho após Porto Nacional (TO) que faltava para chegar até São Paulo. O projeto ganhou tração no governo Michel Temer, dentro do qual teve o edital lançado, mas a data da licitação foi marcada para março de 2019, já no início do governo Jair Bolsonaro.
O leilão desse novo trecho também foi marcado por polêmicas, visto que, novamente, os problemas com o direito de passagem seguiam (informações mais detalhadas sobre o tema estão nas páginas 34 a 40 desta reportagem de 2022 sobre a gestão do ex-ministro Tarcísio de Freitas no Ministério da Infraestrutura). [https://agenciainfra.com/blog/wp-content/uploads/2022/06/O-ultimo-ato-reportagem-especial.pdf]
Segundo Bernardo, que na época assessorava a RZD, estatal russa de ferrovias, a regra do direito de passagem para garantir o transporte de carga pelas duas ferrovias de outras concessionárias que acessam os portos (a Malha Paulista, da Rumo, e a EFC, da Vale) eram frágeis e fizeram o grupo desistir.
O direito de passagem dos trens de uma ferrovia pela outra é garantido legalmente, mas depende de contratos entre as duas concessionárias. As concessionárias que operam no país dizem que o uso desse direito é comum entre elas. O que Bernardo Figueiredo, que também foi diretor-geral da agência reguladora do setor, diz é que, para novos entrantes, não há segurança de que esses contratos terão janelas de trânsito e preços adequados, o que torna os investimentos inseguros.
O resultado do leilão de 2019 foi que só a Rumo e a VLI, que tem a Vale como principal acionista, disputaram. E a Rumo venceu com uma oferta elevada: R$ 2,7 bilhões em outorga, quase o dobro do mínimo exigido.
Com a vitória, a Rumo iniciou o processo para finalmente terminar a construção da ferrovia com um investimento de R$ 4 bilhões (incluindo novos trens). Mas encontrou o que Guilherme Penin chama de um “ativo heterogêneo”, com “trechos em bom estado, realizados com boa técnica, materiais de primeira; e trechos simplesmente inexistentes, e também trechos nos mais diversos [graus] de avanço, alguns com materiais ruins, já um pouco depreciados”.
“Até hoje a gente acha problemas”, contou.
Os dois maiores desafios, que eram as construções de duas grandes pontes, a sobre o Rio Grande (fronteira Minas Gerais e São Paulo) e a sobre o Rio Paranaíba (Minas Gerais e Goiás), foram concluídos ano passado. Faltava o trecho final entre Palmeiras de Goiás e Goianira, que até março tinha 70% de avanço. Segundo Penin, foi atacado com “veemência” nos últimos três meses para ser concluído, deixando 100% operacional o que passou a ser chamado de Malha Central da Ferrovia Norte-Sul.
O prazo inicial para a entrega da ferrovia concluída teria terminado em 2022 pelo contrato assinado em 2019. Por isso, havia a expectativa de que ela estivesse operacional ainda no governo Bolsonaro, o que segundo Penin não ocorreu por causa da pandemia. Empresas contratadas não conseguiram entregar o contratado no prazo. O Congresso aprovou uma lei que permitiu a postergação em um ano de todas as obras ferroviárias previstas em concessões, o que faz com que não haja oficialmente atrasos na entrega.
“Estamos rigorosamente no prazo”, disse o diretor.
O desenvolvimento
O diretor comercial da Rumo, Danilo Veras, tem o desafio diário de fazer os produtores de mercadorias procederem a uma troca que, mesmo economicamente lógica, nem sempre é simples: deixar de mandar ou buscar suas cargas de caminhão no porto para usar o trem.
Para uma distância adequada ao transporte ferroviário, acima de 600 quilômetros, os estudos indicam que o frete ferroviário pode ser até cerca de 30% do preço do frete rodoviário. Isso, no entanto, depende de diversos fatores, entre eles a qualidade da ferrovia, os custos operacionais, os preços das concessionárias, o sobrepeso nos caminhões, a frequência dos trens e diversos outros, que podem até eliminar essa vantagem.
Desde que a Rumo ganhou a concorrência para operar a Malha Central da Ferrovia Norte-Sul, o que o diretor tem visto é um movimento de busca de negócios por parte dos clientes, ao nível de a empresa ter que trabalhar com eles modelos que possam fazer com que operem juntos para buscar uma maior eficiência do investimento.
“Nossos desafios são investigar com os clientes a operação, porque recebemos dois, três, quatro [pedidos], para que eles racionalizem, digam o que faz sentido. Muitas vezes eles não competem e faz sentido de desenhar um condomínio”, conta Danilo.
Nesse modelo de condomínio, a Rumo faz a parte ferroviária do terminal e cada um dos clientes fica com um espaço da chamada pera ferroviária, que é onde os trens fazem a carga e descarga dos produtos. Quatro terminais já ficaram prontos em Goiás, todos em algum tipo de sociedade com as empresas que possuem cargas.
Até o momento, as cargas são ligadas ao agronegócio, especialmente açúcar, soja e milho, e fertilizantes. Mesmo assim, os números são expressivos. Em dois anos, a produção transportada em ferrovia, que era zero, chegou a sete milhões de toneladas (número de 2022). A expectativa é passar dos 12 milhões em 2023.
Na parte de cima da ferrovia, a VLI transportou 15 milhões de toneladas em 2022, 18% a mais que em 2021, produção também fortemente ligada aos produtos do agro. Menos de uma década atrás, esses volumes não passavam dos dois milhões de toneladas anuais.
“A conclusão da Norte-Sul é fundamental para o estado de Goiás, para o Tocantins e para uma parte Minas Gerais e São Paulo. Foi um grande desafio, mas agora vai gerar emprego e diminuição de custo para todas essa região. Toda essa mercadoria que ia de caminhão vai ter uma fluidez melhor de trem”, disse Jorge Bastos, da Infra S.A.
Mas a ampliação do tipo de carga na Norte-Sul já está contratada. A DTC (Dinâmica Terminais de Combustíveis), uma distribuidora de combustíveis de Goiás, aproveitou um investimento que já estava sendo feito em Rio Verde para um terminal rodoviário de combustíveis para fazer um novo terminal ferroviário, com os dois interligados por três quilômetros de dutos.
O diretor institucional da DTC, José Manoel Rodrigues, conta que a região já estava nos planos de expansão da empresa goiana pelo fato de ser uma grande área de produção, especialmente do agronegócio. Com a ferrovia em operação, o negócio ganhou outra dimensão. Ele explica que um comboio de trens tem capacidade de transportar oito milhões de litros, enquanto um caminhão leva 60 mil.
“A escala é gigantesca. Estamos propiciando uma redução de custos muito significativa com esse terminal”, disse o diretor da DTC, projetando para 2025 o transporte de 1,7 bilhão de litros ano, entre subida de diesel para Goiás e descida de etanol para São Paulo, pela ferrovia.
Danilo Veras, da Rumo, lembra que são vários os negócios que passaram a se viabilizar pela nova logística ferroviária. Pelo menos sete novos projetos estão em negociação para serem anunciados, inclusive para transporte de carga geral, contêineres e mineração no norte de Goiás.
“Muitos desses investimentos se tornam viáveis por causa do diferencial de logística para a ferrovia. Quando você tem uma logística mais eficiente, a preservação das margens dos negócios está na mão dos investidores, proporcionando mais investimentos”, explicou o diretor. “A história do agronegócio em Mato Grosso revela que, quanto mais avança a ferrovia, mais o fenômeno acontece. É o que esperamos em Goiás.”
O prefeito de Rio Verde, Paulo Faria do Vale, não tem dúvida sobre esse fenômeno. Agricultor na cidade, ele conta que os valores de frete já estão caindo e têm proporcionado a ampliação da produção. De acordo com ele, a expectativa na cidade é que essa queda chega entre 20% e 25% em relação aos preços anteriores.
“Quando as exportadoras diminuem o custo de frete, podem remunerar melhor o produtor”, afirmou o prefeito, que é produtor agrícola na cidade. “Agora a gente espera que isso chegue ao produtor”, lembra o prefeito reproduzindo uma desconfiança generalizada de que as concessionárias de ferrovias cobram valores acima do que seriam adequados para esse tipo de transporte, mais próximo ao custo do transporte rodoviário.
Além de mais produção, a ferrovia também trouxe para a cidade o interesse em diversos outros negócios. Até mesmo de caminhões. Segundo Vale, com a implantação do terminal ferroviário, empresas e motoristas que faziam o transporte longo até os portos passaram a se concentrar no transporte em distâncias mais curtas, entre a fazenda e o terminal ferroviário. Isso tem proporcionado uma concentração maior de veículos na região e, com isso, está se formando um hub para a manutenção dos veículos.
“É uma alavanca de desenvolvimento extremamente importante para Goiás e todo o Centro-Oeste”, disse o prefeito sobre a ferrovia.
O maior desafio, no entanto, será fazer com que a ferrovia possa também ser utilizada para o transporte de mercadorias de maior valor agregado. Apesar de crescente, o transporte de mercadorias industrializadas ainda é incipiente nas ferrovias brasileiras, que têm nas cargas de minério e grãos os maiores volumes. Mesmo com essa concentração em cargas de baixo valor agregado e alto volume, a ferrovia só leva 20% de tudo o que é transportado no país, número bem abaixo da média de países de grande extensão territorial.
Veras, da Rumo, disse que tem participado de discussões sobre a industrialização da produção ao longo da ferrovia, que na avaliação dos clientes não seriam feitas sem a possibilidade da logística ferroviária.
Guilherme Penin lembrou que a Rumo já tem um terminal de contêineres em Imperatriz (MA), a ponta norte da ferrovia, para que seja implementada uma logística entre o norte e o sul de transporte com esse tipo de equipamento por meio da Brado, uma subsidiária para transporte de contêiner. A intenção é fazer a logística de contêineres da Zona Franca de Manaus (AM) por trem.
“O propósito é fazer a conexão contêiner entre São Paulo e Maranhão, passando por todas as regiões. Essa possibilidade é concreta. É a mesma ferrovia e isso só abre mais possibilidades de desenvolvimento econômico do país”, disse Penin.
As cidades
Ao longo da última década, na produção de reportagens sobre a Ferrovia Norte-Sul, visitei alguns trechos em Goiás. Em 2016, por exemplo, vários estavam abandonados, pouco tempo depois de o governo anunciar a conclusão até Anápolis (GO) da ferrovia. Os trilhos passam por locais ermos, distante dos centros das cidades e boa parte da população não tinha conhecimento sobre a ferrovia.
O secretário de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de Rio Verde, Denimárcio Borges, conta que a partir de 2017 começou a ir constantemente a Brasília para entender o que a ferrovia que começava de fato a ser implantada, após anos de promessas, levaria para a sua cidade. Ao sair das reuniões com representantes da Valec, ele conta que ficou assustado.
“Se a gente não fizesse nada, a gente literalmente só ia ver o trem passar”, contou o secretário.
A partir de então, o prefeito Paulo Vale determinou a construção de um programa para atrair empresas e levar para lá terminais ferroviários, que é onde os trens movimentam as cargas. A prefeitura cedeu áreas, criou incentivos para as empresas e os resultados vieram. Com os terminais em implantação na cidade, já são quase R$ 1 bilhão em investimentos, com a contagem em crescimento.
“Sem a ferrovia, era zero chance disso tudo acontecer”, conta o secretário, citando que o município passou a ser a líder em exportações em Goiás após a chegada da ferrovia.
Guilherme Penin, da Rumo, diz não haver mais dúvidas de que a visão de desenvolvimento dos criadores da ferrovia estava correta. Em relação a essa região no sudoeste de Goiás, ele disse que seu potencial econômico altíssimo já estava em desenvolvimento a despeito da carência de soluções logísticas de melhor qualidade. E vê o futuro muito semelhante ao que já ocorre no Mato Grosso.
“O Mato Grosso recebeu uma dezena de plantas de etanol de milho, fertilizantes, frigoríficos, algodão. Essa infraestrutura industrial é decorrente de uma alternativa ferroviária que permitiu os investimentos e diversificação econômica. Isso está começando em Goiás também”.
A fronteira agora é o Tocantins e o norte de Goiás. Thiago Dourado, o ex-secretário de Agricultura do Tocantins, conta que a ferrovia já transformou o estado em um hub de atração de carga agrícola de outros estados ao redor, como Bahia e Mato Grosso. O volume transportado pela VLI, segundo ele, é três vezes maior que toda a produção do estado.
A melhoria da operação da VLI ao longo do tempo, que reduziu o tempo de trânsito dos trens até o porto, tem feito com que mais cargas do oeste da Bahia escolham andar cerca de 450 quilômetros de caminhão até o Tocantins do que seguir para os portos no litoral via trem, contou Dourado.
“Quando tem a estrutura ferroviária, o custo efetivo do transporte acaba ficando mais barato”, relatou o ex-secretário.
Dourado projeta que a região mais ao sul do estado deverá ter um elemento adicional para ampliar a produtividade, que é a competição. De acordo com ele, até uma determinada área do Tocantins, o custo para ir para Santos ou para Itaqui é semelhante, o que deixa margem para uma melhor negociação entre as empresas.
Bento Lima, o ex-diretor da Valec, atualmente trabalha em um projeto que tem a Ferrovia Norte-Sul como fundamental, que é uma nova ferrovia privada no Maranhão, que leva até o TUP Alcântara (MA), um porto com calado profundo (25 metros) capaz de receber os maiores navios do mundo e que tem projeção para operar no início da próxima década.
De acordo com os cálculos da empresa Grão-Pará Multimodal, que nesse projeto se associou à DB, a estatal alemã de ferrovias, e à brasileira Sysfer, o uso desses grandes navios poderia levar a uma redução de US$ 15 a tonelada na logística de transporte de grãos do Centro-Oeste do Brasil para a Ásia. Para a mercadoria chegar até o TUP, segundo Bento, a Norte-Sul será essencial.
“É a Ferrovia Norte-Sul que vai alimentar esse projeto”, disse Bento Lima.
Os desafios
São três décadas de implementação de um trecho ferroviário relativamente pequeno para padrões internacionais, mas os desafios ainda não acabaram. Guilherme Penin, o diretor da Rumo, lembra como exemplo que a região do Tocantins ainda precisa de uma melhoria de qualidade de suas estradas, para que os caminhões possam chegar com menor custos aos terminais ferroviários.
“Se a carga está a 100 quilômetros acima do terminal, ela precisa de uma boa rodovia para chegar”, explicou Penin.
O ex-secretário de Agricultura do Tocantins diz que a inconstância institucional no estado e no governo Federal causam problemas para a logística. Ele conta uma situação que os agricultores passam, que tem relação com o tamanho permitido das máquinas para serem transportadas em caminhão nas rodovias. O tamanho máximo na rodovia federal é um e na estadual é outro. Segundo ele, muitos agricultores ficam com máquinas paradas quando tentam fazer esse transporte.
“Parece um problema pequeno, mas o agricultor tem 10 dias para plantar. Se a máquina ficou parada na estrada nesse período, você prejudica a produção do ano todo”, explica Thiago Dourado.
A Ferrovia Norte-Sul foi projetada com estimativa de transportar mais de 60 milhões de toneladas de carga ao ano, de acordo com números da Valec. Para chegar a esse volume, é necessário que os portos estejam capacitados para receber a carga. Em Santos, por exemplo, é preciso que as obras para ampliar a ferrovia interna do porto à capacidade de movimentar cargas por trem sigam no cronograma, o que segundo Penin está ocorrendo.
Além disso, é essencial que outras ferrovias se conectem à Norte-Sul e a mais relevante delas é a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste). Projetada para atingir a área de maior produção de grãos no país, a região do Mato Grosso ao redor de Lucas do Rio Verde, essa ferrovia começou a ser construída no ano passado, num modelo inédito denominado investimento cruzado.
Para ter antecipadamente renovado o contrato da EFVM (Estrada de Ferro Vitória a Minas), a mineradora Vale teve que se comprometer a entregar pronto o trecho da Fico entre as cidades de Mara Rosa (GO) e Água Boa (MT).
O prazo de cinco anos para ela entregar a via operacional começou a contar no mês passado, quando a Infra S.A entregou a primeira parte do licenciamento ambiental da ferrovia. Após o início da Fico, está em estudo fazer a concessão de um corredor que teria esse trecho em construção, mais a extensão da Fico até Lucas do Rio Verde (Fico II) e mais dois trechos da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste Leste), entre o Tocantins e a Bahia. Esse grande corredor, que pode ter mais de 2,5 mil quilômetros, terminaria em Ilhéus (BA).
Bernardo Figueiredo vê com ceticismo essa solução que o governo estuda atualmente. Para ele, o risco para quem entrar será muito grande porque a distância a ser percorrida para se chegar ao porto pelo corredor Fico-Fiol é muito maior que a dos outros dois corredores (Norte-Sul ao norte e ao sul). E o novo concessionário terá que fazer investimentos e disputar com dois concorrentes que já têm investimentos feitos.
“Os investimentos na Ferrovia Norte-Sul não estarão consolidados e você vai criar um terceiro para concorrer?”, questionou Bernardo. “A gente investe em corredores de grãos, que é 13% do transporte do país, mas não está olhando para outros mercados que são 100% dependentes do mercado de rodoviário, que é a carga geral, o combustível. O ideal seria investir nos trechos que hoje estão abandonados no país [cerca de 2/3 dos 31 mil quilômetros de malha ferroviária]”.
Bento Lima vê o corredor leste oeste como uma alternativa para dar mais uma saída logística para o Brasil, mas alerta para a falta de regras sobre o direito de passagem, o que poderá ser um problema para essa futura concessionária, na avaliação dele. A conexão da Fiol I se dará na Malha Central, trecho administrado pela Rumo. Para ir para o norte, a concessionária terá que negociar com a Rumo e com a VLI o direito de passagem. Para o sul, a negociação será com a Rumo.
E há possibilidade, a depender do desenho da concessão Fico-Fiol, que o trecho da Fiol que se conectará à Ferrovia Norte-Sul seja na parte da ferrovia que é administrada pela VLI. Ou seja, o futuro concessionário poderá ter que negociar direito de passagem com uma ou com as duas concessionárias para levar sua carga do Mato Grosso à Bahia. Além de não ter o acesso ao porto de Ilhéus, já que o trecho I da Fiol, de Caetité a Ilhéus, já foi licitado pelo governo passado e teve como vencedora a mineradora Bamin.
“É muito difícil regular o direito de passagem. É um desafio não superado do país. Ao invés de criar competição, você cria briga entre os concessionários, que um quer matar o outro. Ao invés do benefício da redução de custo ficar com o produtor, fica com o concessionário”, alertou Bento.
O diretor da Rumo Guilherme Penin não vê o direito de passagem como um impeditivo para a continuidade do desenvolvimento das ferrovias nacionais.
“A utilização da malha de uma [concessionária] por outra é corriqueira no cenário ferroviário do Brasil. Direito de passagem acontece todos os dias”, afirmou Penin.