Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Três professores das áreas de direito e economia decidiram buscar um caminho teórico para algo que vem afligindo o setor de infraestrutura nos últimos anos no Brasil: o reequilíbrio dos contratos de longo prazo de parceria entre poder público e iniciativa privada.
Na teoria, contratos assinados com a expectativa de que vão performar como o previsto em seus estudos iniciais. Na prática, a realidade batendo à porta com mudanças sociais, econômicas e políticas, novas demandas e todo tipo de pressão que, por vezes, até impossibilitam a continuidade da parceria prevista para 20, 30 ou mais anos.
“O direito administrativo nega a flexibilidade. Nega que as coisas mudam, que as coisas têm que ser revistas. Nosso trabalho olha para a questão de quando se deve mudar”, disse o Frederico Turolla, que junto com Marcos Nobre e Rafael Veras escreveram “Contratação incompleta de projetos de infraestrutura”, working paper que será divulgado na próxima quarta-feira (19) em evento no PSP Hub, com mais informações neste link.
“O direito administrativo parece carecer de uma estrutura para analisar situações concretas de maneira mais potente. Os reequilíbrios estão acontecendo de uma forma desvinculada da realidade. Usam-se princípios errados para se olhar a realidade”, apontou Turolla.
Eles contam que para exemplificar o que está acontecendo com os contratos de parceria de longo prazo no país recorreram à história do navegador Amir Klink. Segundo eles, ao fazer seu projeto para atravessar o Atlântico solitariamente, Klink chegou com a informação aos engenheiros de que queria um barco que não virasse, por ser essa a causa de todas as tentativas frustradas anteriores.
Os engenheiros convenceram o navegador de que ele estava errado. Era impossível criar um barco que não virasse nessa travessia e que a escolha dele seria por um barco que, ao ser virado pelas ondas e tempestades do Atlântico, pudesse ser desvirado pelo navegador. Esse exemplo virou um teorema para os contratos de parcerias, chamado Teorema do Barquinho Klink.
“Em havendo incentivo para desvirar o barco, haverá mais incentivo para atravessar o oceano”, brincou Turolla, dizendo que não há como “o barco” dos contratos de 30 anos não virar. “A única forma de você ter incentivo para entrar num ambiente supercomplicado é ter incentivo para desvirar o barco.”
“A realidade se impõe”
De acordo com os autores, o trabalho pretende “buscar contribuir com a construção de uma espécie de Teoria Geral dos Contratos Incompletos de Longo Prazo em países emergentes” e é uma reflexão acadêmica, teórica, sem entrar em caso concreto.
Os autores, no entanto, conhecem a realidade dos contratos de parceria do Brasil com profundidade e dizem que o que os motivou a buscar esse approach teórico é a falta de um arcabouço que dê sustentação para decisões que acabam sendo tomadas “quando a realidade se impõe”, ou seja, os reequilíbrios e repactuações dos contratos.
“A realidade se impõe. A interpretação de manuais de 30 anos atrás do direito administrativo intui que não é possível [reequilibrar]. O que todo mundo sabe que é necessário não tinha um approach teórico que ficasse de pé e possibilitasse esse tipo de coisa”, disse Marcos Nobre.
Marcos Nobre critica duramente um dos principais pilares teóricos que sustenta teses que impedem processos de reequilíbrio dos contratos. Segundo ele, a interpretação dada ao termo “mantidas as condições da proposta” está errada.
“Ela não quer dizer isso que dizem. A fonte é o contrato, a preservação do valor econômico do contrato, que é mais importante do que sobrepor regras rígidas, sem aderência com a realidade”, lembrou Nobre.
Arcabouço teórico
Os autores caracterizam o contrato de parceria como incompleto, complexo, resiliente e flexível. No trabalho, eles produzem teoricamente dois ambientes, um teoricamente ótimo, que seria a base usada para os contratos de parceria que vêm sendo feitos, em maioria; e outro com as imperfeições do mundo, como assimetria informacional, oferta limitada de seguros, mercados não maduros, monopólios e outros problemas.
“O paradigma ideal dos contratos de parceria não dá conta das imperfeições do mundo real”, comentam os autores numa apresentação sobre o texto.
Segundo Nobre, a intenção com o trabalho, que foi citado recentemente pelo ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Benjamin Zymler ao comentar o voto do relator da consulta dos ministérios ao órgão para saber se o governo pode desistir dos processos de relicitação, é ajudar com um arcabouço teórico para que seja possível aos gestores e controladores ter argumentos para apoiar as decisões em favor do reequilíbrio.
Nobre diz que a maioria sabe que o melhor é a repactuação, mas tem medo de executar por não haver base teórica que sustente suas avaliações, o que para ele levou ao chamado “apagão das canetas”.
“Esse artigo é um approach teórico para acender as canetas. Para que a administração possa seguir em frente”, disse Nobre.
Risco reverso
Rafael Veras combate ainda uma outra associação comum feita pelos defensores da manutenção das propostas, a de que mudanças ao longo do contrato retiram o interesse de players mais sérios das parcerias de longo prazo do país, pois eles não teriam a capacidade de negociar ex-post mudanças nos contratos, como os ditos players “menos sérios”.
Para ele, o que ocorre hoje é um risco reverso. Ou seja, os melhores players podem não ser selecionados para parcerias porque sabem que não há um sistema que possa dar segurança aos contratos na hora da renegociação ex-post, colocando apenas parceiros que aceitam ex-ante riscos elevados e desconhecidos.
“Defendemos que o que você tem é uma seleção adversa. Você troca o oportunismo ex-post da renegociação por um oportunismo ex-ante da contratação. Isso não faz sentido. Se você estabelece um sistema de incentivos para a conduta de revisão, você tem como minimizar essas condutas oportunistas apontadas”, disse Veras.
Os autores defendem que em determinado momento é melhor para os players cooperar do que litigar, contanto que haja balizas doutrinárias para que isso possa acontecer. Para eles, é necessária a construção de um ambiente adequado, o que está evoluindo no país.
Grau de flexibilidade
Eles citam como exemplo a introdução do artigo 26 da Lindb (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que permite aos órgãos públicos firmarem acordos com particulares, a Lei de Relicitação (13.448/2017) e a experiência do TCU ao criar a secretaria de resolução consensual, iniciada neste ano.
Turolla diz ser mais necessário discutir não apenas as questões de reequilíbrio, mas o grau de flexibilidade que um contrato de parceria deve ter. E que seria “leviano e inconsequente” falar em mais ou menos flexibilidade para os contratos de parceria no país, que, segundo ele, têm um padrão de baixa flexibilidade atualmente. Para ele, as condições previstas nos 30 anos de contrato têm que ser válidas enquanto não houver mudanças estruturais.
“O que não pode é, não havendo mudança estrutural alguma, você mudar a alocação de riscos”, defendeu Turolla, doutor em Economia e sócio da Pezco Economics. “Depois da pandemia, você vai manter a alocação de riscos de antes? Isso enseja mudança. Mas uma mudança consequente e responsável.”
“Disputa de hermenêutica”
Veras afirmou que o trabalho propõe contratos com janelas para que, em casos de eventos não previstos, seja possível ter margem para uma discussão no âmbito do contrato entre as partes, sem necessidade de ir ao Judiciário ou arbitragens. Para ele, quando acontece um evento não previsto na matriz de risco, esse comportamento vai gerar uma redução dos custos de transação.
“O setor de infraestrutura virou uma disputa de hermenêutica entre risco ordinário do concessionário e risco extraordinário do poder público. O que propomos é que há zonas cinzentas que já podem ser pré-estabelecidas como necessárias a uma renegociação”, disse Veras, recentemente doutorado em Direito e sócio da Braz, Coelho, Campos, Veras, Lessa e Bueno .
Custo alto para todos
Outra preocupação dos autores é com a chegada de novas tecnologias, que criam ainda mais necessidade de que os contratos possam ser adaptáveis. Como o oceano a ser atravessado, o fato é que ninguém consegue prever o futuro 30 anos antes, avaliam. Para eles, é mais fácil buscar bons parceiros se eles têm certeza de que, se o barco virar, não vai afundar.
“No final do dia, num contrato de longo prazo, é melhor ficar do que sair. O custo de sair dessa relação é muito alto para todo mundo, para o poder público, o concessionário e a população usuária do serviço público”, disse Nobre, doutor em Direito, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e conselheiro do Tribunal de Contas de Pernambuco.