Paulo Franco Lustosa*
O Brasil é o segundo país com a maior área de florestas no planeta, ficando atrás apenas da Rússia. Com 493,5 milhões de hectares – o que corresponde a 58% do seu território – cobertos por florestas naturais e plantadas1, 15% de todo o potencial global de captura de carbono por meios naturais está em território nacional2.
Diante desse cenário, seria razoável supor que existe uma gama extensa de projetos de carbono florestal em áreas públicas no país. No entanto, são poucos os precedentes que visam à exploração de crédito de carbono por meio da conservação (REDD+)3 ou da restauração (AR)4 de florestas públicas no país, sendo que nenhuma dessas experiências envolveu a delegação de serviços à iniciativa privada por meio do regime de concessão.
Em tese, a exploração de créditos de carbono em florestas públicas pode se dar sob diferentes modalidades de “concessões ambientais”, expressão ora empregada para designar as concessões destinadas à exploração (i) de produtos e serviços florestais por meio de manejo florestal sustentável, (ii) de atividades de visitação nas áreas de uso público e, ainda, (iii) de serviços ambientais de forma exclusiva.
Com o objetivo precípuo de destravar projetos de carbono florestal em áreas públicas, foi editada a MP (Medida Provisória) 1.151, em 26 de dezembro de 2022. De acordo com sua exposição de motivos, a MP visa “eliminar os entraves normativos para potencializar o instituto da concessão florestal”, uma vez que o “mercado de carbono é um instrumento que pode contribuir enormemente para a obtenção das metas climáticas brasileiras e gerar divisas para o nosso país”5.
Durante a tramitação da MP no Congresso, foram apresentadas 42 emendas ao seu texto original, das quais 40 restaram acolhidas, parcial ou integralmente, na forma do Projeto de Lei de Conversão 7, de 2023. Aprovado nas duas casas do Legislativo, o projeto foi submetido ao Chefe do Executivo, que, no dia 24 de maio de 2023, sancionou a proposta e promulgou a Lei 14.590.
A seguir serão destacadas as principais contribuições advindas do referido diploma legal para o desenvolvimento de créditos de carbono em florestas públicas. Antes, porém, convém traçar um breve panorama do cenário anterior ao advento da MP.
O panorama anterior ao advento da MP
As concessões florestais existem no direito brasileiro há mais de 17 anos, desde o advento da Lei 11.284, de 2 de março de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável (“LGFP”). Trata-se de uma modalidade especial de concessão, que tem por objetivo delegar a uma pessoa jurídica o direito de praticar o manejo florestal sustentável com vistas à exploração de produtos (madeireiros e não madeireiros) e serviços em florestas públicas.
O texto original da LGFP vedava a inserção, no objeto da concessão, da comercialização de créditos decorrentes da emissão evitada de carbono em florestas naturais (art. 16, §1º, VI). Tal vedação encontrava uma exceção no §2º do próprio art. 16, segundo o qual seria permitido incluir o direito de comercializar créditos de carbono nas hipóteses de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo. Ou seja, a lei admitia, a contrário sensu, apenas a exploração de créditos de carbono em florestas plantadas ou nos casos de reflorestamento, na forma de um regulamento que, diga-se de passagem, jamais foi editado.
Em razão dessas restrições, nenhuma concessão em florestas nacionais, de todas as 22 já celebradas pelo Serviço Florestal Brasileiro até a presente data, contemplou qualquer atividade relacionada à exploração de créditos de carbono, seja como objeto próprio da concessão florestal, seja como atividade geradora de receitas acessórias.
O quadro não é diferente em relação às concessões, em unidades de conservação federais, destinadas à exploração de atividades de visitação, previstas no art. 14-C da Lei 11.516/2007. Nesses casos, embora não haja vedação legal, a comercialização de créditos de carbono não vem sendo prevista nos contratos de concessão voltados à prestação dos serviços turísticos em parques nacionais promovidas pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Os avanços trazidos pela Lei 14.590/2023
A Lei 14.590/2023 trouxe importantes alterações na LGFP e na Lei 11.516/07 no que diz respeito à possibilidade de exploração de créditos de carbono no âmbito de concessões ambientais, entre outras inovações6.
A principal novidade está na revogação expressa da vedação que existia no art. 16, §1º, VI, da LGFP, de modo que não mais subsiste impedimento legal para a outorga, ao concessionário, do direito de comercializar os créditos de carbono derivados da conservação de florestas naturais. Ademais, a nova redação do §2º do referido artigo estabelece que o contrato poderá prever a transferência de titularidade dos créditos de carbono do poder concedente ao concessionário, durante o período da concessão, bem como o direito de comercializar certificados representativos de créditos de carbono e serviços ambientais associados.
Tal previsão traz segurança jurídica a esses arranjos ao esclarecer que a titularidade originária dos créditos de carbono é do poder público e que este tem o poder de aliená-los ao concessionário, na forma disposta no edital de licitação da concessão. O referido dispositivo, no entanto, contém duas previsões que merecem destaque.
Em primeiro lugar, o §2º do art. 16 faz ressalva expressa, que não constou do texto original da MP, às “áreas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais”. Portanto, caso haja comunidade local dentro da unidade de manejo florestal, será necessário delimitar a área da concessão sobre a qual a concessionária estará autorizada a gerar créditos de carbono. É de se notar, ainda, que a nova redação do art. 30, IX, da LGFP assegura a participação da comunidade local na receita decorrente da comercialização de créditos de carbono ou de serviços ambientais, quando for o caso, nos termos do regulamento.
A garantia de compartilhamento de recursos com as comunidades locais, diga-se de passagem, tem previsão nos arts. 2 e 15(2) da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais. Tal norma internacional assegura uma repartição justa e equitativa dos benefícios gerados pelos projetos e iniciativas realizadas nas terras tradicionalmente ocupadas, ao estabelecer que “os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam”.
Outra observação importante sobre o §2º do art. 16 está no fato de que o novo texto faz referência a um regulamento, hoje inexistente. Assim, a tendência é que prevaleça o entendimento de que tal norma não é autoaplicável, ainda que seja defensável a tese de que o ato infralegal regulamentador, no caso, não seria condição para a eficácia da norma.
Por sua vez, a nova redação do §4º do art. 16 da LGFP também reforça a possibilidade de inclusão, no objeto da concessão florestal, da exploração de produtos e de serviços florestais não madeireiros, nos limites da respectiva unidade de manejo florestal. A redação final aprovada pelo Legislativo, no entanto, acabou por suprimir a lista exemplificativa de serviços que constou da MP, na qual se mencionavam os “serviços ambientais”, a “restauração florestal e reflorestamento de áreas degradadas”, bem como as “atividades de manejo voltadas à conservação da vegetação nativa ou ao desmatamento evitado”, entre outros.
Já o art. 20 da LGFP, com a nova redação dada pela Lei 14.590/2023, estabelece que o edital da concessão florestal conterá “as regras para que o concessionário possa explorar a comercialização de crédito por serviços ambientais, inclusive de carbono ou instrumentos congêneres, de acordo com regulamento” (inciso XVIII). O dispositivo deixa claro que cada contrato poderá regular as obrigações das partes relacionadas à exploração dos serviços ambientais, as condições para a comercialização dos créditos pela concessionária e, ainda, o compartilhamento das receitas advindas de tal atividade com o poder concedente.
Quanto às concessões voltadas à prestação de serviços turísticos, foi incluído o §5º no art. 14-C da Lei nº 11.516/2007, autorizando que o órgão gestor da unidade de conservação conceda, isolada ou conjuntamente, a exploração de certificados representativos de créditos de carbono e serviços ambientais associados, bem como de produtos e de serviços florestais não madeireiros, conforme regulamento. Ademais, foi criado o art. 14-D, segundo o qual “as concessões em unidades de conservação poderão contemplar em seu objeto o direito de desenvolver e comercializar créditos de carbono e serviços ambientais, conforme regulamento”.
Já o art. 5º da nova lei contém autorização genérica e ampla para que as concessões em unidades de conservação, terras públicas e bens dos entes federativos (federal, estaduais ou municipais) possam contemplar, em seu objeto, o direito de desenvolver e de comercializar projetos de pagamento por serviços ambientais e créditos de carbono, conforme regulamento. Como se nota, tal autorização não está adstrita às concessões florestais ou de uso público, o que reforça a segurança jurídica de um modelo de concessão que tenha por objeto exclusivamente a prestação de serviços ambientais.
Dada a existência de controvérsia acerca da necessidade de edição de autorização legislativa para a concessão de serviços públicos no Brasil7, pode-se afirmar que a Lei 14.590/2023 conferiu segurança jurídica à criação de concessões destinadas apenas à geração de créditos de carbono, sem envolver o manejo florestal ou a gestão do ativo para fins de visitação. Com isso, afasta-se o risco de questionamento similar ao que se materializou, no passado, com as concessões em unidades de conservação voltadas à prestação de serviços turísticos8.
De acordo com o art. 6º da nova lei, os contratos de concessão florestal vigentes em 25 de maio de 2023 poderão adequar-se às novas disposições desde que com a concordância expressa do poder concedente e do concessionário, conforme regulamento. Com isso, a norma prestigiou a autonomia negocial das partes, excluindo acertadamente as outras condicionantes que constaram do texto original da MP, as quais exigiam, além do consenso, que fossem preservadas as obrigações financeiras perante a União e mantidas as obrigações de eventuais investimentos estabelecidos em contrato de concessão.
Apesar dos avanços apontados, a lei perdeu a oportunidade de tratar explicitamente de tema espinhoso envolvendo projetos de geração de créditos de carbono em florestas públicas: a possibilidade jurídica de se reconhecer adicionalidade capaz de justificar a emissão dos créditos em áreas que já são objeto de proteção especial por força da legislação ambiental. Sem entrar no mérito de discussões sobre a metodologia das avaliações das entidades certificadoras, a questão que se coloca, sob o prisma jurídico, é se seria possível reconhecer que a preservação e a restauração de florestas públicas geram adicionalidade, mesmo em se sabendo que tais atividades constituem verdadeira obrigação do poder público (art. 225, §1º, I, CF/88).
Nesse sentido, a fim de dar maior respaldo à adicionalidade de tais projetos, a nova lei poderia ter complementado a previsão já existente no art. 41, §4º, do Código Florestal, que reconhece, de forma expressa, que as atividades de manutenção das Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito configuram adicionalidade para fins de mercados nacionais e internacionais de reduções de emissões certificadas de gases de efeito estufa. Não obstante, a autorização para inclusão dos serviços ambientais no objeto das concessões ambientais acaba por reconhecer, ainda que de forma implícita, a adicionalidade de tais atividades.
Conclusão
A despeito do elevado potencial de geração de créditos de carbono em florestas no Brasil, não há registro de atividades envolvendo a exploração desses créditos no histórico das concessões florestais federais, tampouco das concessões destinadas à exploração dos serviços de visitação nas áreas de uso público de parques nacionais. Todavia, as alterações promovidas pela Lei 14.590/2023 no arcabouço normativo aplicável às concessões ambientais podem mudar essa realidade.
Além de afastar a vedação legal que existia para a outorga, nas concessões florestais, do direito de comercializar os créditos de carbono derivados da conservação de florestas naturais, a nova lei conferiu segurança jurídica à criação de um modelo de delegação que tenha por objeto exclusivamente a prestação de serviços ambientais em florestas públicas.
Pode-se concluir, portanto, que hoje existe base legal inequívoca que permite a geração de créditos de carbono nas concessões ambientais, seja no objeto contratual, seja na forma de receitas acessórias. Com isso, a nova lei reforçou a segurança necessária para que as concessionárias possam auferir receitas por meio da prestação de serviços ambientais, aumentando, assim, a viabilidade econômico-financeira, a financiabilidade e a atratividade dessas concessões.