Thiago Caldeira*
“Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”. A frase de autoria incerta, mas comumente atribuída a Albert Einstein, nos remete ao histórico das últimas décadas no setor ferroviário brasileiro. Com a recente permissão trazida pela Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021, para investimentos ferroviários em regime de autorização, que prevê liberdade para empreender e assumir riscos, há manifestações levadas ao debate público no sentido de voltarmos às amarras e controles que impediram o desenvolvimento do setor. Revela-se, conforme veremos nesse artigo, uma “fé sem obras” na capacidade e onisciência do Poder Público para planejar, selecionar e regular projetos de ferrovias. Argumenta-se a seguir que as especificidades do setor, a comparação com outros setores e com outros países, e a economia política da regulação trazem evidências suficientes para que os atos legais e normativos recém-publicados, relacionados à desregulação e abertura do setor de ferrovias, sejam mantidos.
Historicamente o setor de ferrovias foi submetido a um emaranhado de normas que, para cada passo que o setor privado quisesse dar, exigia-se um conjunto de atos do poder público. Como exemplo, até recentemente os investimentos de ampliação de capacidade deveriam, em regra, ser aprovados previamente pelo poder concedente, o que poderia levar meses para avaliação e deliberação. Licenças ambientais, declarações de utilidade pública para servidão ou desapropriação, são muitos os atos que, acumulados, resultam em processo lento e frustrante para o investidor e para os usuários.
Muitos desses atos regulatórios, no entanto, são comuns a outros setores de infraestrutura, especialmente em serviços de interesse público, como nos setores de transportes e energia. O conhecido atraso no desenvolvimento do setor ferroviário brasileiro (ASSIS, 2017) em relação a outros modais de transporte informa que há algo de “especial” no setor.
Uma investigação na literatura (ASSIS, 2017) e nos dados oficiais disponíveis nos permite constatar que:
1) o montante investido com recursos públicos no modal ferroviário foi muito inferior à média de outros países; e
2) após a privatização da malha ferroviária existente, entre os anos de 1996 e 1998, a estruturação de novas concessões com o setor privado foi abandonada. Entre 1999 a 2021, longos 22 anos, o governo federal promoveu a licitação da outorga de apenas três concessões de ferrovias, sendo duas delas (Norte-Sul – Tramo Central e Fiol) de 2019 pra cá.
Em bom português: o poder público não fez e não deixou ninguém fazer. Não tendo recursos financeiros, interesse ou capacidade de organização e planejamento para implantar ferrovias, o setor público impediu o setor privado de executar projetos por sua conta e risco.
Esse impedimento decorre diretamente do instrumento adotado para acessar o direito de construção e operação de uma ferrovia. No regime de concessão, cabe ao poder público planejar qual o objeto da concessão, estimar o quanto vale a outorga (valuation) e promover o processo licitatório.
Ocorre que esse processo, sendo conduzido pela Administração Pública, não encontra convergência com a dinamicidade exigida pela economia. É que há um fosso entre a capacidade do poder público de planejar grandes projetos e executar processos licitatórios e a necessidade de rapidez e flexibilidade no atendimento da demanda econômica.
Cita-se o caso hipotético de um projeto ferroviário direcionado, em grande medida, ao atendimento de um empreendimento minerário. O titular da jazida tem o interesse quase que exclusivo na implantação da ferrovia. Esse interesse está relacionado à expectativa dos preços do minério a ser extraído, a qual pode mudar para pior em pouco tempo. Mesmo após a implantação da ferrovia, uma mudança nos preços pode levar à paralisação da produção da mina e, consequentemente, também da ferrovia. Como trazer toda a carga de privilégios administrativos, princípios do serviço adequado, entre outras disposições da legislação de concessões para uma ferrovia que se direciona mais ao interesse privado que público?
O projeto do trecho 1 da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste) se aproxima da descrição acima e ilustra bem por que o poder público deve abandonar o instrumento da concessão para projetos ferroviários. Os trabalhos para a concessão da ferrovia, entre Ilhéus e Caetité, na Bahia, tiveram início no ano de 2015 e o procedimento de leilão da outorga ocorreu em abril de 2021, com a assinatura do contrato em setembro de 2021.
No período de 6 anos, diferentes governos, estudos de viabilidade refeitos, audiências públicas, avaliação prévia pelo TCU (Tribunal de Contas da União), fases recursais após procedimento de leilão. Apenas após todos esses atos, o investidor interessado pôde iniciar os estudos e projetos para implantação da infraestrutura, com parâmetros definidos no contrato de concessão. Foram 6 anos de atraso na implantação da ferrovia, tendo o período registrado recordes no valor do minério de ferro que, mantido no subsolo, não gerou divisas e empregos para o país.
A estruturação comoditizada de projetos de concessão de ferrovias encontra grandes dificuldades, tendo em vista a diferença de características técnicas e econômicas de cada projeto e especialmente o conhecido desafio de viabilização econômico-financeira.
A alteração do regime de outorga para a autorização, trazida pela Medida Provisória nº 1.065/ 2021, escancarou a diferença entre o tempo do investidor e o tempo do poder público. Na data de 31/10/2021, apenas dois meses após a publicação da Medida Provisória, contam-se 23 autorizações solicitadas por 11 empresas. Quase todos os projetos pleiteados sequer estavam no planejamento de curto e médio prazo do governo federal para início dos trabalhos de licitação.
É nesse contexto que formadores de opinião do setor público (Ministério Público Federal e Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União) e setor privado (consultor Bernardo Figueiredo; advogado Lucas Navarro; consultores David Goldberg e Luiz Soggia) questionam o regramento previsto pelo governo federal para outorgar o direito de exploração caso haja mais de um interessado no trecho.
A Portaria nº 131, de 14 de outubro de 2021, do Ministério da Infraestrutura, estabeleceu que, caso haja mais de um pleito de autorização para mesma área de influência, será dada outorga a todos os requerentes (art. 9º), com exceção para o caso de incompatibilidade locacional. Verificada essa situação, seria dada prioridade ao primeiro pedido apresentado, sem prejuízo de se permitir adequações técnicas às demais propostas apresentadas.
As opiniões contrárias à norma do Ministério da Infraestrutura, em resumo, afirmam que:
- as ferrovias seriam monopólios naturais e, portanto, a avaliação de compatibilidade locacional deve incorporar a análise de viabilidade econômica da exploração do mercado por mais de um concorrente, impedindo o acesso à autorização por investidores concorrentes;
- a restrição de acesso à outorga exigiria a realização de processo seletivo para a escolha de um projeto, em contraste a sua entrega para quem solicitou primeiro.
Monopólios naturais e restrições de acesso ao mercado
Em relação ao primeiro argumento, fala-se que, sendo ferrovias empreendimentos dotados de custos médios decrescentes de escala (elevados custos fixos afundados), seria mais eficiente sua prestação por apenas uma empresa para um mercado de influência. Alega-se que, dessa forma, o custo para o usuário seria menor, caso não haja abuso do poder de mercado do monopolista. Também, sem o risco de competição predatória, o custo de crédito dos projetos seria menor, ajudando na viabilidade econômica.
Com base na teoria, no caso de dois pleitos de autorização de ferrovia para mesmo mercado de influência, deveria o governo escolher um dos projetos, o qual deteria o monopólio institucionalizado pelo poder público.
Apontamos a seguir uma série de falhas nesse raciocínio, que residem tanto no mau entendimento do conceito de monopólio natural e suas consequências, quanto na dificuldade de percepção das diferenças entre a teoria normativa, que prevê burocratas onipotentes e oniscientes e livres de interesses que não o interesse público, e a teoria política da regulação, que incorpora na análise a atuação estratégica de grupos de interesse, assimetria de informação, racionalidade limitada e vieses cognitivos (MUELLER, 2013).
Ferrovias são monopólios naturais que exigem exclusividade?
Muitos setores já receberam a classificação de monopólios naturais, a exemplo de portos (MEEHAN, 20121; TOVAR, TRUJILLO e JARA-DÍAZ, 2004), aeroportos (BEESLEY E LITTLECHILD, 1989), ferrovias (OCDE, 1993), telecomunicações (THIERER, 1994), assim como infraestruturas de rede: saneamento básico e redes de distribuição de energia elétrica e gás natural.
Tal classificação levou a que os monopólios fossem legitimados pelos governos de muitos países, justificando a atuação estatal exclusiva ou a delegação a uma única empresa por meio de um contrato oficial. Dessa forma, o poder público impedia a entrada de outros competidores no mercado2. Tal procedimento se mostra ainda hoje bastante evidente para certos setores, como rede de saneamento e distribuição de energia elétrica, tendo em vista a dificuldade física e estética de se permitir múltiplas empresas fornecendo as estruturas de postes, fios e tubulações pelas ruas das cidades.
Já para outros setores, a inviabilidade da prestação do serviço por mais de uma empresa nunca foi bem estabelecida, e o conceito de monopólio natural acabou submetido à luta política e de interesses na manutenção de exclusividade ao acesso a mercados (MOSCA, 2008; THIERER, 1994)3, servindo também ao propósito de redistribuição de riquezas entre a sociedade e empreendedores.
Recentemente, o mais eloquente exemplo do abuso do conceito de inviabilidade econômica de competição se aplica ao Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros – TRIP no Brasil, em que, mesmo com a previsão legal de regime de liberdade de acesso a mercados e a preços, com outorga por autorização (Lei nº 12.996, de 18 de junho de 2014), em um setor distante da classificação de monopólio natural, obstou-se o acesso a novos entrantes. Desde o início de 2021, as autorizações de novas outorgas encontram-se suspensas por decisão do Tribunal de Contas da União.
Desde a década de 70, e inicialmente nos EUA e Inglaterra, ocorre processo de desregulamentação dos mercados e contestação das premissas adotadas para diversos setores da economia. No setor de telecomunicações, o argumento de subaditividade dos custos, que justificava seu tratamento como monopólio natural, é posto de lado, em favor da liberdade de acesso e competição no mercado. Conforme Littlechild (1983), os esforços se voltaram para criar as condições para a competição:
“Competition is indisputably the most effective means – perhaps ultimately the only effective means – of protecting consumers against monopoly power. Regulation is essentially a means of preventing the worst excesses of monopoly; it is not a substitute for competition. It is a means of ‘holding the fort’ until competition arrives. Consequently, the main focus of attention has to be on securing the most promising conditions for competition to emerge […]”.
A mudança de percepção sobre os prós e contras da restrição à concorrência por vezes se relacionava a mudanças tecnológicas que afetavam um setor, e por vezes ao mero entendimento de que o benefício gerado pela possibilidade de novo entrante era superior ao benefício gerado pela prestação exclusiva (e supostamente mais eficiente) da empresa incumbente (FIANI, 2001).
No setor de aeroportos, até a década de 80, muitos consideravam o setor típico caso de monopólio natural, com baixo potencial competitivo (BEESLEY E LITTLECHILD, 1989). Essa percepção vem se alterando gradualmente, com vários trabalhos indicando que a competição entre aeroportos pode ser significante e benéfica (ACI, 1999; FORSYTH et al., 2010; apud RESENDE, FONSECA, e CALDEIRA, 2016). Em ferrovias, a literatura aponta que a competição intramodal e intermodal, com rodovias e hidrovias, pode refutar as premissas que qualificavam o setor como monopólio natural (PHILLIPS JR, 1962; BITZAN, 1999; SANCHEZ, 2000).
É que a avaliação das condições para enquadramento como monopólio natural exige complexo estudo econômico (SHARKEY, 1983). Um aspecto importante consiste em estimar até que ponto da curva de produção o custo médio é decrescente. A demanda do mercado pode ser tal que a necessidade de ampliação implique a duplicação da ferrovia, ou a expansão dos berços e canais do porto. Assim, para atender essa demanda marginal que impõe grande expansão de capacidade, não seria possível se falar em subaditividade dos custos, ou seja, não será possível afirmar que o atendimento do mercado por um ofertante resultará em custos menores que por dois ofertantes.
Tal raciocínio pode ser visualizado no gráfico abaixo, em que a linha azul demonstra a função de custo de uma firma individual, em comparação à função custo de duas empresas atuando no mercado (linha vermelha). Apenas até o nível de produção q* haveria subaditividade de custos.
Dadas todas as ponderações apresentadas, seria razoável propor que a Administração Pública busque as informações exatas de custos de investimento e operação para cada quantidade de produção, compondo uma curva de função de produção de cada projeto, para fins de restringir a oferta de infraestrutura? E adicionalmente, mesmo que o Poder Público consiga estabelecer todos os parâmetros, ainda seria necessário estimar os custos e riscos administrativos da regulação do monopólio criado pelo poder público, assim como os custos e riscos de procedimentos licitatórios. Nesse sentido, a mudança na legislação não significa que a Administração perderá seu papel de planejar e executar projetos de elevado interesse público, mas permitirá que ela realmente foque nas falhas de mercado, em que há desinteresse do setor privado na oferta de infraestrutura dotada de externalidades positivas (benefícios não internalizados no projeto).
Dadas todas as dificuldades de se restringir o acesso ao mercado e posterior regulação necessária para evitar abuso de poder de monopólio, em diversos setores, inclusive no Brasil, se permite a liberdade de entrada (o acesso a outorgas públicas) em atividades que podem ter, no mercado de influência, pontos da curva de produção em que se verifica subaditividade de custos. Em outras palavras, aceita-se que possa ocorrer algum grau de ineficiência na prestação do serviço, tendo em vista que os custos e riscos da intervenção pública são muito altos, e os benefícios do livre mercado são evidentes.
É o que se verifica, por exemplo, na liberdade de empreender em TUPs (portos de uso privado) no Brasil, ampliado pela Lei 12.815/2013. Não se discute, em portos, se um novo TUP inviabilizará economicamente outro TUP. Ignora-se atualmente a possibilidade de haver subaditividade de custos, privilegiando a dinamicidade dos investidores, que se esmeram em buscar a demanda, destravar obstáculos, propor soluções. De 2019 até hoje, houve 99 autorizações dadas para novos TUPs. O controverso episódio recente (espera-se que isolado), de negativa de autorização para empreendimento portuário para fins de proteção de mercado e garantia da viabilidade econômica de um arrendamento público (ver aqui), sob frágeis argumentos de “interesse público”, reafirma, na nossa visão, a assertividade da prática até então adotada de permitir livremente a competição entre infraestruturas portuárias.
Em ferrovias, o exemplo do modelo norte-americano é bastante revelador da capacidade do setor privado em lidar com as liberdades de acesso a mercados. Após a abertura e desregulamentação do mercado na década de 80, por meio do Staggers Rail Act, há farta literatura apontando os benefícios em termos de novos projetos e investimentos, ganhos de produtividade e aumento da produção (CAVES, CHRISTENSEN e SWANSON; 2010).
Ademais, ao contrário das preocupações atualmente no Brasil relacionadas a possível “excesso de competição no mercado”, a desregulamentação nos EUA resultou em maior concentração de mercado, em razão de fusões e aquisições e devolução de trechos sem viabilidade (PRATER, 2012). Ou seja, não se mostrou necessário um tutor governamental para controlar o acesso ao mercado e protegê-lo de si mesmo.
A título de exemplo do quanto estamos longe da oferta possível de infraestrutura ferroviária, cita-se o estado de Illinois, na principal região agrícola dos EUA e que produz cerca de 70 milhões de toneladas de soja e milho anualmente. O estado é servido por mais de 11.000 km de ferrovias e mais de 40 empresas de transporte ferroviário, sendo muitas linhas paralelas e com o mesmo par de origem-destino. Como comparação, o estado do Mato Grosso, que produz 69 milhões de toneladas anuais de milho e soja, tem acesso ao terminal de uma única ferrovia, na fronteira sul do estado, em Rondonópolis.
A inviabilidade locacional e a outorga a quem pediu primeiro
Os argumentos acima apresentados nos permitem concluir que não se vislumbra o interesse público em impedir o acesso a uma autorização de ferrovias sob o argumento de inviabilidade da prestação eficiente do serviço por mais de um operador.
Afastada essa possibilidade, passa-se a outro ponto levado ao debate público, que diz respeito ao procedimento para entrega da autorização, no caso de se configurar inviabilidade locacional. Ou seja, caso dois projetos sejam apresentados para idêntico traçado, configurando sobreposição geográfica.
Abre-se parênteses para citar situação ocorrida no setor minerário, em que o acesso às outorgas de direitos de exploração minerária que retornavam ao poder público era dado a quem solicitava primeiro. O episódio pitoresco de velocistas contratados para correr da portaria do DNPM até a seção de protocolo do órgão público, após a abertura dos portões pela manhã, é exemplo de triste política pública (vídeo disponível aqui).
Mas honrando a máxima de que “nada está tão ruim que não possa piorar”, decidiu-se em meados da década de 2010 abandonar o procedimento “Usain Bolt” e estabelecer um processo seletivo com base em critérios técnicos: melhor conhecimento da jazida e do potencial produtivo (Portaria DNPM nº 155/2016). O processo seletivo pressupõe instrução processual complexa, com designação de comissão de seleção, avaliação de recursos e atos para publicidade e transparência. Em vista da incapacidade de pessoal para executar dezenas de milhares de processos (de cascalho para construção civil a jazida de ouro), todos os pedidos foram acumulando, tendo alcançado no ano de 2020 o estoque de mais de 40.000 títulos minerários bloqueados nas mãos do órgão público. Apenas recentemente inaugurou-se procedimento eletrônico e bastante simplificado (sem exigência de garantias, sem programa de investimentos e valor inicial igual a zero) para distribuição das outorgas4.
Fechados os parênteses, fazemos referência às regras para pedidos de autorização para TUP (Decreto 8.033/2013) e aeroportos (Decreto nº 7.871/2012). Primeiro, não há qualquer menção, nos documentos, à possibilidade de inviabilidade econômica na coexistência próxima de dois ativos portuários ou aeroportuários. Segundo, em ambos os documentos há exigência, para a outorga de autorização, que o solicitante tenha a titularidade ou outro direito real de uso equivalente do terreno que pretende implantar a infraestrutura.
Assim, havendo o atendimento a essa exigência, a possível controvérsia a respeito de inviabilidade locacional parece se restringir ao “parecer favorável da autoridade marítima”, no caso de portos, e à consulta ao “Departamento de Controle do Espaço Aéreo do Comando da Aeronáutica sobre a viabilidade da autorização”, no caso de aeroportos.
O que se depreende é que, devido ao pleito de autorização já estar instruído com titularidade ou direito real de uso sobre o imóvel que receberá a infraestrutura, é remota a possibilidade de processo seletivo em caso de conflito locacional que, por algum motivo, seja apontado pelas autoridades. Nesse sentido, no histórico de autorizações de TUPs não identificamos um caso sequer em que houve processo seletivo para escolha de um empreendimento.
Em verdade, o acesso ao direito de construir o porto ou o aeroporto naquele terreno já ocorreu na corrida anterior: quem comprou primeiro o terreno terá direito a pleitear sobre ele. É o caso, por exemplo, do projeto de aeroporto autorizado denominado NASP (Novo Aeroporto de São Paulo).
Retornando ao modal ferroviário, seria descabido exigir a titularidade ou direito real de uso sobre os imóveis nos quais a infraestrutura será construída, tendo em vista a extensão do empreendimento. Essa característica do setor pressupõe que, apenas após a autorização, caberá ao investidor promover projetos e estudos para buscar a obtenção da posse sobre os imóveis. Assim, podendo coexistir fisicamente infraestruturas ferroviárias de diferentes titularidades a poucos metros uma da outra, não há razão para pressupor inviabilidade locacional e as autorizações poderiam ser apresentadas a quem solicitar.
Nesse entendimento, não há que se falar em processo seletivo para outorga de direitos que não são excludentes (a obtenção de um não obsta a solicitação de outro5), assim como em aeroportos autorizados (o Decreto sequer menciona processo seletivo) e em TUP (nunca houve processo seletivo, apesar de o Decreto o mencionar), e também para outorga para empresa de transporte aéreo, transporte rodoviário interestadual de passageiros, empreendimentos de geração de energia, entre outros.
Também importa ressaltar que a promoção de processo seletivo toda vez que mais de um pleitear mesmo trecho de ferrovia traria a situação absurda de facilitar a sabotagem aos projetos de concorrentes. Bastaria apresentar um pedido para que o processo de autorização apresentado anteriormente fosse interrompido, caminhando para um processo seletivo moroso e burocrático, dado o histórico institucional brasileiro. Também, no intuito de proteger supostos ganhos de eficiência da exclusividade na prestação do serviço, caberia impedir a competição intermodal, decorrente de uma pavimentação de rodovia, por exemplo?
Já em 1971 George Stigler (nobel de Economia de 1982), publicou o artigo “The theory of economic regulation”, em que demonstrou que os agentes privados muitas vezes demandam a intervenção pública, para conseguirem controlar a entrada de novos competidores. Também Milton e Rose Friedman (FRIEDMAN e FRIEDMAN, 1990) descreveram como os órgãos reguladores nos EUA atuaram por décadas para proteger as empresas ferroviárias da competição com os caminhoneiros, e os caminhoneiros da competição com as ferrovias. Os texto são do século passado, mas são atuais.