Felipe Freire da Costa*
Sempre que a agenda pública de desestatizações avança sobre nichos de atividade em que o Estado exerce um papel de relevância, retomam-se as ponderações sobre o alcance do conceito de serviço público.
Uma atividade delegada em regime de autorização, enfim, deixa de ser um serviço público, ou, pior, um serviço público não poderia ser delegado por meio de autorização? Essa é uma discussão ultrapassada, ao meu juízo.
Sem entrar no mérito desse debate, entendo que mais relevante do que o nomen juris é o olhar sobre a natureza dos institutos, o aprofundamento no porquê de suas escolhas, e, mais do que isso, compreender em que medida o Estado deve se reposicionar ante seu novo papel, para que se alcance o fim público esperado com a mudança realizada.
O caso concreto é em que medida a alteração do regime de delegação dos serviços de TRIP (transporte rodoviário interestadual de passageiros), que passaram a ser outorgados mediante autorização, por meio da Lei nº 12.996/2014, influencia no funcionamento desse mercado e no papel reservado ao Estado?
De pronto respondo à questão: muito!
Ao imprimir uma inflexão normativa dessa envergadura, o legislador não apenas modificou o instrumento de outorga, com suas feições legais e doutrinárias, como também reposicionou essa atividade quanto ao grau de influência do Estado.
A autorização se posiciona próximo à fronteira entre os sistemas de direito público e privado. Ainda assim, o Estado possui um papel relevante, muito embora seu peso sobre a atividade sujeita ao novo regime seja reduzido.
Ocorre que esse reposicionamento do papel do Estado nem sempre é muito bem assimilado, e talvez o TRIP seja o exemplo mais evidente.
Em algum grau isso decorre do fato de que, diferentemente do que dispôs a Constituição Federal, e as normas que regiam o setor, o mercado de TRIP nunca se submeteu a um autêntico regime de permissão, se aproximando mais de uma espécie de autorização qualificada, regida em um instrumento contratual com prazo definido e controle tarifário, por meio de uma regulação econômica por custo setorial médio.
Em 50 anos de regulação setorial, não existem evidências de que o setor tenha sido submetido a algum grau de concorrência pelo mercado, e muito menos que exista uma efetiva concorrência no mercado, sempre sobre o beneplácito estatal.
O fato é que a partir desta quarta-feira (19) o setor passará por sua maior mudança nesse meio século em que esteve sujeito a alguma forma de regulação, quando será submetido a um regime de liberdade tarifária.
Estaríamos diante da oportunidade histórica de submeter o TRIP a um autêntico ambiente de livre e aberta competição – em completa sintonia com as características positivadas em lei ao regime de autorização, art. 43 da Lei nº 10.233/2001 – não fosse a relutância da agência em reconhecer a desnecessidade do excesso de regulação do Estado sobre esse mercado, e das empresas incumbentes em se afastarem desse abrigo regulatório.
Curiosamente os que defendem a automutilação regulatória da agência – renúncia à competência de regular –, suscitando a obediência a políticas públicas inexistentes e instruções normativas inaplicáveis, que limitariam o espaço de atuação do ente regulador, são os mesmos que, a despeito da inflexão normativa trazida pela Lei nº 12.996/2014, advogam pela manutenção do protagonismo estatal e do elevado grau de discricionariedade administrativa na dinâmica do setor.
“Políticas públicas” por “políticas públicas”, alinho-me àquela fixada recentemente pelo presidente da República, em “tweet” no qual comenta a possibilidade de privatização dos Correios: “Serviços melhores e mais baratos só podem existir com menos Estado e mais concorrência, via iniciativa privada”.
Ao mesmo tempo em que o país e os usuários do setor colhem os frutos positivos da liberdade tarifária (Portaria nº 248/2001, do Ministério da Fazenda) e da abertura do mercado de aviação civil (§ 1º do art. 48 da Lei nº 11.182/2005), bem como do incremento dos investimentos no setor portuário, proporcionados pela Lei nº 12.815/2013 (Lei dos Portos) – para ficar apenas no setor de transportes –, ambos submetidos a um regime de autorização, foge à compreensão o porquê de tamanha resistência regulatória a que os ventos da modernidade cheguem ao mercado de transporte rodoviário interestadual de passageiros.
Essas mudanças propiciaram que, desde 2001, o setor de aviação civil visse crescer sua participação modal na matriz de transporte interestadual de passageiros, de menos de 30% para quase 70%**, ao mesmo tempo em que yield (valor médio pago por quilômetro) medido pela Anac registrou redução real de 70%. No setor portuário não é diferente. Em 5 anos de vigência da nova legislação a participação dos TUP (Terminais de Uso Privado) na movimentação de cargas já alcançou 2/3 do volume total, com previsão de investimentos na casa de dezenas de bilhões de reais.
Enquanto isso, o ente responsável pela regulação setorial de TRIP, mesmo após a edição recente da MPV nº 881/2019, conhecida MP da Liberdade Econômica, reitera o entendimento contrário ao comando legal que prega o setor funcionando em um ambiente de livre e aberta competição.
Em completa dissonância com pressupostos elementares do direito concorrencial e de regulação econômica, e baseado em alegações estilizadas de qualidade duvidosa, defende-se um modelo que garantiria uma taxa de ocupação nos ônibus (relação entre o total de assentos ocupados pelos assentos ofertados), reservando uma rentabilidade mínima às empresas operadoras de uma determinada ligação.
A adoção generalizada do IAP (índice de aproveitamento), equivalente ao load factor do setor de aviação civil, permitiria à agência – na visão dos poucos de que defendem essa ideia – equilibrar os mercados, possibilitando a viabilidade econômico-operacional dos atuais operadores.
Evidentemente a proposta não teria o condão de proteger as empresas, papel que não caberia ao ente regulador, e sim de salvaguardar os usuários do serviço dos riscos que a “concorrência ruinosa” poderia trazer a eles, na medida que afetaria as atuais autorizatárias do setor.
Sendo esse o entendimento prevalente quanto ao alcance do regime de autorização – não existe uma agência reguladora de TRIP e outra de infraestrutura ferroviária, estamos a falar do mesmo ente regulador –, quais seriam as chances de sucesso do ousado PLS nº 261/2018, que propõe a prestação de serviço de transporte ferroviário por meio de autorização, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP) e encampado pelo Governo Federal***? Ouso dizer que seriam mínimas!
Na medida em que a agência reguladora entende que deve resguardar os usuários do serviço dos efeitos negativos de um excesso de concorrência, não tardará a aparecer quem defenda manter o controle tarifário e proteger os usuários das consequências perversas da tarifa livre. Afinal, devem pensar, ninguém melhor do que o Estado para definir quanto uma empresa deve cobrar e quanto os usuários devem pagar para acessar um determinado serviço.
A questão que fica é: quem vai proteger os usuários dessa forma de pensar regulação?
Quem sabe o Ministério da Infraestrutura possa jogar luz nessa questão. Bastaria se posicionar sobre as frágeis bases da argumentação da agência, amparadas na validade de diretrizes pretéritas do Ministério dos Transportes que conclamariam pela garantia de equilíbrio econômico-financeiro das empresas de ônibus – em um regime de autorização! – e sobre a utilização do IAP como critério para limitar o ingresso de novos operadores.