David Goldberg e Luiz Soggia*
O marco regulatório do setor ferroviário brasileiro está passando por ampla reformulação: após anos de discussão, uma nova Lei foi destravada no Congresso Nacional; Leis estaduais estão sendo reformuladas e atualizadas; e a normatização infralegal tem sido elaborada com celeridade – com destaque à Portaria 131/2021 do Minfra (Ministério da Infraestrutura), cujo conteúdo gerou muitos artigos e discussões ao longo da última semana.
Os objetivos desta ampla revisão regulatória são evidentes: fomentar a expansão e modernização da malha; aumentar a participação do modal na matriz de transportes; aumentar a competição no modal; e reduzir custos aos usuários. Há, de fato, um consenso entre os diferentes agentes da sociedade de que o arcabouço regulatório anterior era anacrônico e incompleto, resultando em falta de transparência e segurança jurídica, excesso de burocracia e, principalmente, falta de ferramentas e incentivos ao desenvolvimento de nova infraestrutura.
Este artigo procura aprofundar a discussão acerca de um ponto específico (e implícito) do novo marco: a visão de que a renúncia total do Poder Público à função de coordenador de barreiras de entrada no setor maximizaria investimentos e a entrada de novos players e, em decorrência, permitiria a expansão da malha e redução de custos logísticos. Como será discutido, entendemos que há situações em que o exercício desta função evitaria efeitos contrários aos objetivos almejados, e trataremos o caso específico da autorização de projetos coincidentes.
A função da regulação em monopólios naturais é maximizar benefícios gerados à sociedade
Inicialmente, pretende-se trazer um breve debate conceitual acerca da organização econômica de monopólios naturais, para na sequência tentar racionalizar a lógica da nova regulação proposta.
Setores que apresentam uma combinação de investimentos duráveis e fixos, e grandes economias de escala, tornam o monopólio a forma mais eficiente de organizar a produção. A ação reguladora deve traduzir a eficiência do monopolista em ganhos à sociedade. Por outro lado, a ação do Estado nem sempre consegue produzir os ganhos almejados, devido a fatores como assimetrias de informação ou a existência de custos de transação (que, por exemplo, tornam lentos processos associados às concessões ferroviárias).
A escolha de um modelo regulatório passa, portanto, pela compreensão das eficiências e custos decorrentes de sua aplicação em um determinado ambiente. Nesse sentido, a lógica de que uma retirada praticamente absoluta do Estado na organização do setor ferroviário geraria benefícios parece estar amparada em alguns pressupostos:
- As funções de Estado necessárias ao bom funcionamento desta barreira de entrada – ferramentas efetivas de planejamento, celeridade processual, capacidade de estruturação e análise de projetos etc. – não são exercidas de forma minimamente eficiente, inviabilizando um modelo que defina um papel relevante para o Estado nesta coordenação do mercado, inclusive na promoção de competição “pelo mercado” via procedimento licitatório, mecanismo usual para transferir eficiência do monopolista à sociedade em monopólios naturais1;
- Os custos decorrentes da ausência do Estado na coordenação do monopólio seriam inferiores aos benefícios auferidos (na forma de investimentos, redução de fretes etc.);
- Quedas substanciais em barreiras de entrada trouxeram bons resultados em outros setores, como portos e telefonia, com amplos ganhos à sociedade, a despeito dos conflitos gerados pela convivência assimétrica de modelos de exploração distintos (conflitos estes, ressalte-se, que o Minfra busca mitigar no novo marco com as previsões de reequilíbrio às concessionárias afetadas e de adaptação de modelo de exploração nestes casos).
A ampla abertura do setor ferroviário, alcançada com a MP (Medida Provisória) 1.065/2021 (e com a aprovação do PLS 261/2018), é dotada de méritos e tem sido discutida em diversos meios, não sendo o foco deste artigo.
Não obstante, há casos em que os pressupostos que baseiam esses méritos devem ser desafiados: nem sempre é óbvio que mais infraestrutura (ou a facilitação de mais infraestrutura) se traduza em maiores benefícios líquidos. Um desses casos é o de ferrovias coincidentes (def.: ferrovias que compartilham as mesmas regiões por rotas similares, sejam seus projetos mutuamente excludentes ou não do ponto de vista de traçado), em que dois ou mais projetos podem se prejudicar mutuamente, levados adiante ou não, gerando prejuízos líquidos para as partes interessadas.
Os custos/ ineficiências da renúncia do Governo na coordenação de projetos de ferrovias coincidentes podem superar (e muito) os potenciais benefícios
O ponto em discussão específico deste artigo se refere ao art. 9º da Portaria Minfra 131/2021: “Caso ocorra mais de um requerimento de autorização ferroviária para a mesma área de influência, será dada outorga a todos os requerentes em caso de compatibilidade locacional à implantação concomitante dos empreendimentos e desde que não se apresente outro motivo técnico-operacional relevante…”2. Em outras palavras, apenas motivos técnicos e operacionais poderiam ser alegados para não outorgar autorizações a dois projetos ferroviários coincidentes.
Entretanto, como é típico de setores de infraestrutura, a implantação de ferrovias envolve investimentos significativos em desapropriações, infraestrutura e superestrutura de via permanente e material rodante3. Os encargos fixos são elevados e os negócios possuem custos unitários médios decrescentes com a demanda. Duas ferrovias com traçados similares que atendem as mesmas regiões de influência não coexistem no mundo real por serem monopólios naturais.
Reside nestas situações o nosso alerta ao presente marco infralegal associado ao modelo de autorização ferroviária. Em sua redação atual, receamos o seguinte efeito:
- Na prática, ferrovias coincidentes não serão implantadas sem uma escala mínima eficiente, mas a autorização de seus projetos irá gerar custos evitáveis
O regime de autorização exacerba o risco de investimentos ferroviários, pois caso estas sofram competição de novos entrantes após terem desenvolvido o mercado, não terão direito a qualquer compensação pelo investimento incorrido e, eventualmente, não amortizado. A possibilidade de expropriação de valor ex-post desestimula a realização de investimentos ex-ante. Esse risco é amplificado em regiões com diversos interessados na exploração do mercado, como nos casos em tela.
Ao optar por não avaliar se projetos coincidentes propiciariam a ambos uma escala mínima eficiente, o Governo aposta que o mercado fará melhor julgamento sobre quais projetos devem prosperar. Receamos que, na prática, isso cause imobilismo pelo risco excessivo, ainda que em casos específicos os interesses particulares possam superar estas barreiras e fazer os projetos avançarem.
Nos casos em que projetos de ferrovias coincidentes sem escala mínima eficiente sejam iniciados, um deles deverá ser descontinuado quando se constatar que o capital empregado não será remunerado, favorecendo o outro. Os custos econômicos excedentes (incluindo prazos mais longos) poderiam ter sido evitados se houvesse uma seleção a priori do projeto mais eficiente (sob algum critério) – ainda que este processo de seleção também envolva custos e tempo processual.
O mesmo ocorre na autorização de um projeto coincidente a uma concessão em operação, situação que, pelo texto da MP 1.065/2021, daria (corretamente) causa ao reequilíbrio. Em teoria, o reequilíbrio compensará o ganho de eficiência proporcionado pela nova ferrovia (seja eficiência operacional ou regulatória). Haverá de fato uma transferência de valor do Governo aos usuários, e estes impactos deveriam, prudentemente, serem avaliados previamente à autorização da nova via.
Ademais, ao cabo do processo se disporá de duas ferrovias com menor escala, reduzindo a eficiência média do sistema. Deveria ser também fruto de avaliação se não valeria a pena, de alguma forma, aplicar o valor que seria gasto no reequilíbrio para aumentar a eficiência das concessões existentes, favorecendo ganhos de escala.
Ilustramos a questão com um caso hipotético.
Segundo os estudos disponibilizados na Audiência Pública conduzida pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres)4, o Capex de desenvolvimento da EF-170 – Ferrogrão é de R$8,4bi na data-base out/18, ou R$10,7bi em valores atuais (atualizado por INCC). Segundo o modelo financeiro disponibilizado, a TIR do projeto antes de outorga5 é de 11,06%, cobrando-se, entre outros, tarifas médias de transporte de R$87,3/1.000 TKU para soja e R$73,0/1.000 TKU para milho entre terminais de Sinop e Miritituba. Segundo o Estudo de Demanda, p. 103, os fretes ferroviários seriam de cerca de R$100/t para ambos os produtos. A ferrovia seria competitiva porque os fretes rodoviários seriam significativamente superiores: por exemplo, R$172/t entre Sinop e Miritituba.
Houvesse uma segunda ferrovia, EF-170B, paralela e idêntica à EF-170, dividindo igualmente os volumes e o Capex de material rodante, a TIR de cada projeto seria de 5,69%. Para restituir a remuneração ao capital de 11,06%, seria preciso majorar os fretes cobrados em 64% e não perder demanda. Todavia, ao aumentar os fretes a área de captação diminui, o que por sua vez requeria novos aumentos de fretes. As ferrovias não seriam, enfim, viáveis economicamente.
Caso, prevendo tal inviabilidade, ambos os projetos iniciem, a tendência é que um deles seja em algum instante descontinuado. Suponho que isso ocorra no início, após despendido “apenas” 10% do Capex, por exemplo, ainda assim estaríamos falando de um investimento em excesso, sem geração de benefícios, superior a R$1 bi.
Embora não se disponha de EVTEA para reprodução do exercício acima, presumimos que o caso da FICO 2, entre Água Boa/MT e Lucas do Rio Verde/MT, objeto de dois pedidos de autorização, seja similar. A eleição de um dos projetos – o mais eficiente – seria benéfico ante a hipótese de autorizar ambos.
- Projetos coincidentes que tenham escala mínima eficiente podem ser implantados, mas impondo custos superiores aos benefícios gerados
Projetos coincidentes, envolvendo trechos ferroviários curtos e de alto volume, podem ser viáveis, porém trata-se de alocação subótima de recursos. Dobrar investimentos pode parecer uma boa notícia em um primeiro momento, mas as tarifas mínimas que tornam os trechos viáveis seriam majoradas. O investimento no segundo trecho está empregado de forma improdutiva.
Como contraexemplo, cita-se o caso da Fips (Ferrovia de Integração do Porto de Santos), cujo modelo está em avaliação atualmente pelo Tribunal de Contas da União (com previsão de implantação em 2022):
- O trecho ferroviário de acesso ao Porto de Santos (denominado Portofer) requer um mínimo de R$ 1,8 bilhão em obras para adequar capacidade à demanda (45Mt em 2020 para 86Mt em 2040) e contribuir para a harmonia da relação entre Porto e Cidade (viadutos para eliminar cruzamentos rodoferroviários, pátios e pera para melhorar capacidade de recepção dos terminais e construção de passarelas);
- Trata-se de um sistema de desvio ferroviário complexo: nela convergem seis concessões distintas, com múltiplos pontos de entrada e de saída atendendo cerca de 30 terminais;
- O arranjo contratual vigente possuía pouca segurança jurídica para viabilizar investimentos;
O modelo concebido pelo Governo foi uma cessão do ativo através de chamada pública, permitindo a participação de diferentes interessados6, comportando alto volume de investimentos e minorando custos operacionais, exemplificando a importância do papel do Estado na coordenação do mercado e racionalização e otimização do projeto a ser implantado.
Conclusão
Investimentos ferroviários possuem alto grau de risco pelo volume de investimentos e sujeição a demandas cíclicas. Países bem-sucedidos em superar tais desafios e que conseguiram desenvolver plenamente sua malha ferroviária contam com uma caixa de ferramentas regulatória moderna e adequada às suas necessidades específicas, ou então com um alto nível de subsídios do governo (em geral, contam com ambos).
O marco regulatório brasileiro pré-existente não endereçava as particularidades do setor, e de fato pedia por uma atualização do arcabouço regulatório, voltada principalmente a destravar investimentos, mas também modernizar as formas de relação entre Poder Público e entes privados.
O estágio de estruturação deste novo marco ainda é inicial e requer amadurecimentos – por exemplo, como será possível exercer enforcement em um contrato de autorização ferroviário (e.g. necessidade de investimentos adicionais em capacidade e/ou conflitos urbanos). Nesse sentido, este artigo buscou contribuir no tema específico de autorizações para projetos de ferrovias coincidentes, e entendemos que o caminho regulatório mais adequado seria racionalizar o papel do Estado como coordenador da barreira de entrada, sem impor um processo demorado e altos custos ao próprio Governo. Este ponto ótimo desejado, note-se, pode ser alcançado pela própria normatização infralegal.
Para discussão e meramente sugestivo: uma solução de processo seletivo + normatização que (i) defina critérios capazes de selecionar agentes mais eficientes e transfira a eficiência (do monopólio natural) à sociedade; (ii) determine um processo célere; e (iii) determine prazos e penalidades ao privado que não está efetivamente interessado em empreender; pode ser um caminho a ser delineado.
Como exposto acima, quando houver dois projetos incompatíveis por questões geométricas ou econômicas (caso tal critério venha a ser adotado em complementação da Portaria 131/2021), seria também necessário definir o(s) critério(s) de seleção. A Portaria, em seu art. 9º, § 1º, aponta que “verificando-se a incompatibilidade locacional ou outro motivo técnico-operacional relevante que impossibilite a implantação concomitante de autorizações citadas no caput, será priorizada a outorga de autorização de acordo com a ordem de apresentação da documentação completa“.
Sem adentrar nos aspectos jurídicos, que fogem à nossa competência, parece haver critérios capazes de selecionar projetos mais eficientes, que gerariam maior valor à sociedade. Entre os exemplos de possíveis critérios poderia se citar: maior oferta econômica, maior eficiência operacional (considerando indicadores como velocidade média de tráfego, por exemplo), menor impacto ambiental, entre outros. Note-se que projetos mais bem estudados e fundamentados podem demorar mais a serem desenvolvidos e apresentados ao Poder Público do que outros feitos com menor esmero, porém mais rapidamente: o critério atual privilegia estes últimos ao invés dos primeiros.
Por fim, poderia vir do setor portuário inspiração para a adoção de critérios mais técnicos na seleção de pedidos de autorização mutualmente excludentes. A Resolução Normativa 20/2018 da ANTAQ, em seu artigo 21º, estabelece: “Art. 21º. O Processo Seletivo Público adotará como critério de julgamento das propostas técnicas, de forma isolada ou combinada: I – a maior capacidade de movimentação; II – o menor preço; III – o menor tempo de movimentação de carga; e IV – outro critério estabelecido no instrumento convocatório”. O fato de que a ANTAQ prevê ciclos de alinhamento entre projetos originalmente mutualmente excludentes demonstra que “ordem de chegada” não está no rol de possibilidades contempladas por aquela Agência.