Mauricio Portugal Ribeiro*1
Foi indicado pelo novo presidente da República, governador ou prefeito para o cargo de chefe da área de desestatizações o empresário José Silva, reconhecido como grande empreendedor que fez uma fortuna de muitos milhões de dólares a partir do zero.
José Silva vendeu recentemente sua empresa e decidiu que agora se dedicará à sociedade. Empregará toda a sua experiência de gestor e empreendedor para a causa pública. Vai trazer a visão privada para aumentar a eficiência do estado na prestação de serviços públicos, por meio da estruturação de novas desestatizações. Privatizações de empresas, concessões e PPPs (parcerias público-privadas) são suas novas especialidades.
Esse tipo de coisa acontece muito nos Estados Unidos. Ex-empresários ou ex-banqueiros resolvem se dedicar ao governo no final da vida. É uma presunção razoável achar que isso funcionaria no Brasil.
Ao sentar-se na nova cadeira, José Silva logo anunciou as centenas de bilhões de reais que geraria por meio da privatização de empresas estatais, ou pela arrecadação de pagamentos de outorgas de novas concessões.
Ligou para um amigo investment banker e pediu para estimar os valores e os tempos necessários para vender todas aquelas estatais que pareciam inúteis. O amigo, honrado pela oportunidade, fez o seu melhor: sem muito discernimento sobre a confiabilidade dos dados disponíveis, aplicou sobre eles a sua experiência de venda de empresas privadas e chegou a valores e prazos.
Os quadros técnicos dos órgãos e entidades públicas com os quais José Silva interagia tentaram lhe alertar que aquelas estimativas não eram compatíveis com o ritmo ordinário no setor público para a contratação de estudos de viabilidade da desestatização, obtenção de aprovações, inclusive dos controladores externos, realização das consultas, audiências públicas e licitações, atividades indispensáveis para a venda de empresas estatais.
Mas parecia estranho a José Silva aqueles prazos tão longos. E ele tinha experiência em venda de empresas. Na dúvida, supôs que se tratava de posições enviesadas de agentes públicos, que nunca estiveram submetidos a uma gestão privada eficiente e que se acomodaram com esses prazos excessivamente longos de tomada de decisões, realização de estudos e contratações do setor público. Por tudo isso, manteve o anúncio público de bilhões de reais em privatizações que seriam realizadas em dois anos.
Em relação às concessões e PPPs, analisou pessoalmente a lista de projetos que existe no PPA (Plano Plurianual), coisa de cuja existência ele não sabia até muito recentemente. Não sabendo como funciona o governo, ele tomou a lista de mais de uma centena de projetos prevista no PPA como se fosse uma carteira de projetos e os valores de investimento lá previstos como a meta da sua gestão. Não checou se havia estudos contratados, não pensou nas opções para a contratação dos estudos de viabilidade. Não se deu conta de que, na prática, a previsão de projetos no PPA significa apenas que algum político pretende obter em algum momento recursos orçamentários para iniciar os estudos sobre aquele projeto. Não significa que o projeto faça sentido, ou que exista qualquer estudo sobre ele.
Ao longo do tempo, para tentar compensar as desestatizações que não realizou, passou a incluir nas suas contas desestatizações realizadas por outros órgãos ou entidades. Vendas de empresas estavam sendo realizadas pelas empresas estatais que, de alguma forma, lhe eram subordinadas (afinal de contas eram controladas pela administração direta), apesar de não haver nenhuma participação sua ou da sua equipe nisso. Mas, para o público em geral, esses números poderiam ser a ele creditados “legitimamente”.
Fez esforço também de incorporar ao seu departamento outras áreas que cuidavam de desestatizações no governo e que vinham realizando um bom trabalho. Com isso, politicamente apropriou-se novamente dos méritos de trabalhos dos quais não participou.
Consegue, assim, afirmar nas suas aparições públicas que fez diversas desestatizações. Mas, evidentemente, mesmo com toda essa ginástica, os números nem chegam perto da meta que estabeleceu para os dois primeiros anos da sua gestão.
Também fez um esforço histórico para mostrar que a sua administração tinha feito mais que todas as outras. Para isso, trouxe dados sobre as estatais criadas pelos governos passados que mais desestatizaram, para afirmar que as desestatizações feitas em outros governos foram compensadas pela criação de novas estatais. Evidentemente, não fez nenhum esforço de comparar adequadamente os valores das desestatizações realizadas no passado – considerando inflação, uma métrica para tratar a criação de empresas, sua dimensão etc., enfim o tratamento adequado dos números – porque isso certamente não beneficiaria a sua narrativa de sucesso.
E quando depois de meses percebeu que os prazos corretos para realizar as vendas de empresas estatais eram aqueles apontados pelos agentes públicos e não pelos amigos investment bankers, aí resolveu ir a público advogando que havia uma situação especial naquele contexto, de necessidade de venda das empresas, e que, por isso, o Poder Legislativo deveria criar uma espécie de “fast track”, de procedimento paralelo para ele realizar as desestatizações que “planejou”.
A esta altura o leitor já deve ter identificado o personagem José Silva com algum dos empresários reais que virou agente público responsável por processos de desestatização nos últimos anos.
Agora, vale fazer o exercício de comparar o desempenho desses ex-empresários com o de agentes públicos que tiveram oportunidade de ser treinados na ambiência do setor público, particularmente na área de desestatizações, e nela provaram capacidade de atingir metas e superar os obstáculos que lhes são intrínsecos. Entre os em atividade no setor público, podemos citar o ministro Tarcísio de Freitas e Martha Seillier, atualmente chefe do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos). Entre os que já saíram do governo, podemos citar, por exemplo, Adalberto Vasconcelos, que liderou a criação e a consolidação do PPI no governo federal. E, no âmbito estadual, Marco Aurélio Barcelos, que ainda há pouco deixou a Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana do Estado de Minas Gerais.
Todos esses são quadros formados e treinados no setor público e o seu desempenho como gestores públicos é o melhor testemunho de que, no Brasil, é preciso conhecer e saber pilotar a máquina pública para obter resultados relevantes, particularmente no mundo das desestatizações. Nesse sentido, talvez seja preciso imaginar que há um equívoco na importação da lógica comum nos Estados Unidos de supor que terão necessariamente sucesso no setor público pessoas que tiveram sucesso na iniciativa privada.
Outra hipótese é que as desestatizações no Brasil sejam tão complexas que para uma pessoa da iniciativa privada ter bom desempenho em posições nessa área seja necessário ter experiência anterior com desestatizações na iniciativa privada.
Os Josés Silva, se tiverem humildade, dar-se-ão conta em algum momento de que ser empreendedor ou empresário são atividades que requerem habilidades e conhecimentos diferentes daquelas de um gestor público responsável por um programa de desestatizações. Se quiserem dar alguma contribuição efetiva no mundo das desestatizações, precisarão de tempo para desenvolver uma série de expertises e habilidades que lhes permitam fazer a diferença.
Essa lição precisa ser aprendida por todos nós – com ou por meio dos Josés Silva. Ela precisa ser particularmente aprendida pelos nossos representantes no sistema político a quem cabe a escolha das pessoas responsáveis no setor público pelas desestatizações.