iNFRADebate: O regime de autorização não é a panaceia do setor ferroviário

Jairo Misson Cordeiro*

Investimentos em ferrovias não se improvisam. A implantação de uma nova linha férrea representa um significativo custo afundado sem possibilidade de redestinação, cercado de incertezas de toda ordem e com retorno apenas no longo prazo. O universo de investidores dispostos a dar esse passo, por si só, já é bastante limitado, praticamente restrito às empresas produtoras e/ou transportadoras de commodities em volumes elevados. Essa situação é ainda mais complicada se não houver nenhum tipo de patrocínio ou garantia estatal, quando os prêmios de risco devem ser ainda maiores.

Dificilmente a migração do regime de “concessão” para “autorização” na exploração de ferrovias irá produzir o mesmo boom que se verificou no setor portuário a partir da edição da Lei dos Portos de 2013, sem que sejam enfrentados outros grandes desafios que travam a expansão dos trilhos no país. Basta lembrar que a implantação de um TUP (terminal de uso privado) é mais simples, pode ser faseada e apresenta possibilidade de paybacks mais rápidos, em comparação com a construção de uma nova via férrea. E, não se pode esquecer, os meios de transporte marítimo não têm um substituto que seja economicamente viável, ao contrário do comboio ferroviário que, na grande maioria dos casos, pode ser trocado por uma frota de caminhões. Ainda que a movimentação de cargas pesadas em grandes distâncias nas rodovias seja desaconselhável sob vários aspectos – econômico, ambiental, de segurança –, quando as incertezas futuras começam a pesar, a escolha pelo caminhão sempre fica mais fácil. 

Ainda que o mecanismo de autorização possa viabilizar a construção de shortlines (ramais alimentadores dos troncos já existentes), provavelmente esse dispositivo teria um alcance circunscrito às concessionárias que já estão instaladas ou às transportadoras que a elas se associarem. Deve-se lembrar que, na atualidade, apesar da legislação e da regulação não vedarem, a mera previsão jurídica não tem sido suficiente para atrair operadores independentes para o sistema. Portanto, se hoje não há empresas, desvinculadas das concessionárias, que estejam dispostas a assumir o risco de adquirir locomotivas e vagões para trafegarem por meio de direito de passagem na malha ferroviária, afigura-se pouco provável que a simples previsão de autorização para construção de linhas seria suficiente para atrair novos players ao mercado ferroviário brasileiro. 

Um dos principais problemas que o modal ferroviário enfrenta no Brasil é a defasagem da sua regulação, que é primariamente atribuída à ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). Medidas regulamentadoras simples que hoje não existem no país, como classificar as vias conforme suas características construtivas e estabelecer requisitos de performance de acordo com o porte das operadoras, teriam potencial de trazer benefícios muito maiores para o setor do que alterações legislativas complexas. 

Alguns poucos temas básicos – estratificação das empresas, regras de acesso e de compartilhamento da malha, definição de corredores de escoamento, diretrizes para a competição intramodal –, são fundamentais para a reativação de ferrovias que hoje estão abandonadas e para a capilarização do sistema. Entretanto, é fácil constatar que nos últimos vinte anos a regulação das ferrovias não teve quase nenhum avanço. É sintomático que o regulamento que baliza o transporte ferroviário vige inalterado desde 1996, quando a concepção das malhas ainda era outra. Esse “abandono” se deve, em grande medida, ao fato de a agência estar permanentemente ocupada de outros assuntos – diga-se de passagem também importantes – referentes ao setor rodoviário.

Na natureza, quando um animal precisa alimentar vários filhotes famintos e há um limite para atender a todas as demandas, escolhas difíceis precisam ser feitas. Em geral, aquelas crias que choram mais alto ou com mais frequência acabam sendo priorizadas e recebendo mais atenção. Dado que a matriz de transporte no Brasil encontra-se majoritariamente assentada em rodovias, é natural que os lobbies que gravitam sobre esse modal – que vão desde a indústria automobilística, passando pelas concessionárias de estradas de rodagem, empresas de ônibus, transportadoras de cargas rodoviárias, associações de usuários e abarcam até os motociclistas –, ocuparão muito mais espaço nos corredores da ANTT do que os poucos representantes do setor ferroviário. Devido ao fato de ser pulverizado por todo o país, e também por ser socialmente mais sensível, naturalmente o transporte sobre pneus irá dominar a agenda.

Logo, manter os dois modais (rodoviário e ferroviário) sendo tratados na mesma agência reguladora significa dedicar para as estradas de ferro um nível de atenção – na melhor das hipóteses – secundário. 

Essa situação não tem passado despercebida para os estados que compõem a Federação. Ao não encontrarem, no nível da União, a quem levar iniciativas de desenvolvimento das malhas regionais e com quem discuti-las, estão partindo para a estruturação de secretarias e agências próprias. Minas Gerais, Mato Grosso, São Paulo e Pará já se encontram mais adiantados, tocando projetos autóctones de expansão ferroviária. Pernambuco também está sendo “empurrado” para esse time, e possivelmente Santa Catarina e Maranhão irão aderir à ideia em breve. Esse movimento pode acelerar a expansão do setor, mas também pode gerar dificuldades de integração das malhas no futuro, tanto física (largura da bitola, capacidade de suporte da via, gabarito de túneis etc.), quanto jurídico-regulatória (direito de passagem, regras de compartilhamento, responsabilidade em caso de acidentes etc.).

O país dispõe de profissionais qualificados em temas de engenharia ferroviária, logística e regulação para compor uma entidade que consolide uma Autoridade Nacional de transporte sobre trilhos, que possa permanentemente se dedicar ao que de mais avançado existe no cenário internacional, em aspectos técnicos, regulatórios e mercadológicos, e adaptar à realidade brasileira. Quem imagina que a estruturação dessa entidade iria onerar sobremaneira os cofres públicos, deve verificar o quanto se investe anualmente com a contratação de consultorias para o setor ferroviário. Na maioria das vezes, quando esses trabalhos chegam a termo, os problemas a que visavam atacar já são outros ou, quando surgem boas ideias, não há quem as leve para frente, pois as demandas do setor rodoviário são mais numerosas e urgentes.

Concluindo, não é só o título no cabeçalho do contrato que irá atrair investidores para o mercado ferroviário, mas também a segurança de que, caso apareça mais à frente alguma questão técnica ou regulatória que eventualmente precise ser discutida, os pleitos serão tratados com a devida prioridade por agentes voltados para o desenvolvimento do transporte terrestre sobre trilhos.

*Jairo Misson Cordeiro é engenheiro civil com especialização em controle e governança da regulação de infraestrutura e auditor do Tribunal de Contas da União. O artigo expressa uma opinião pessoal, não necessariamente representa o posicionamento do TCU ou de seus integrantes.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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