iNFRADebate: Portos como ecossistema de negócios — reflexões para o Brasil a partir das lições do professor Peter W. de Langen

Rafael Wallbach Schwind*

Entre os dias 4 e 6 de outubro, tivemos a honra de receber o professor Peter W. de Langen no XI Congresso de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro das Seccionais da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ocorrido em Curitiba (PR). Coube a ele fazer a conferência de abertura do evento a nosso convite como integrante da Comissão da OAB-PR responsável por esta edição do congresso.

O professor De Langen é uma autoridade de renome internacional no setor portuário. Foi corporate strategist na autoridade portuária de Roterdã, sua cidade natal, nos Países Baixos, por vários anos. Nesta função, esteve envolvido em projetos que foram fundamentais para aquele porto. Como consultor, trabalhou para diversas empresas e entidades governamentais do setor portuário. Desenvolveu projetos para o porto de Barcelona (Espanha), para a European Seaports Organization, para o Banco Mundial, para o Asian Development Bank, para as Nações Unidas e para a autoridade do canal do Panamá. Tem experiência com portos em mais de cinquenta países.

Além disso, De Langen tem uma vida acadêmica intensa. É part-time professor na Copenhagen Business School. Antes disso, foi professor de Cargo & Logistics na Eindhoven University of Technology e pesquisador e team leader na Erasmus University Rotterdam, onde obteve seu PhD em 2004. É também autor do livro Towards a Better Port Industry (Routledge, 2020, 286p.), que penso ser uma obra fundamental para quem trabalha com regulação portuária e direito portuário em geral.

Como era de se esperar, a exposição do professor De Langen provocou todos os presentes a refletir acerca do futuro dos portos no Brasil e sobre a regulação que empregamos em tão relevante setor.

É impossível resumir todas as ideias do professor De Langen em artigo tão breve. No entanto, penso que seja importante divulgar, ainda que de modo sintético, algumas de suas teses – notadamente aquelas que me parecem pertinentes à realidade brasileira.

Os portos como ecossistemas de negócios

Segundo De Langen, a premissa central da regulação portuária reside na constatação de que os portos são ecossistemas de negócios (business ecosystems).

O conceito de ecossistema de negócios foi desenvolvido por teóricos de gerenciamento estratégico. Eles argumentam que muitas empresas não competem sozinhas com outras empresas. Em vez disso, os ecossistemas de negócios é que competem entre si. Nesse sentido, a Microsoft não compete com a Apple de forma isolada; empresas que constituem o ecossistema de negócios do Windows é que competem com as que compõem o ecossistema de negócios do Mac OS/iOS. Da mesma forma, em vez de se considerar que há uma competição entre Boeing e Airbus como empresas isoladas, a perspectiva mais correta consiste em constatar que há uma concorrência entre os ecossistemas de negócios da América do Norte e da Europa na produção de aviões.

Os portos são um ecossistema de negócios justamente porque se trata de um cluster localizado, composto normalmente por um hub de transporte, um hub de serviços de logística com valor agregado, um complexo industrial, além de locais para turismo e lazer. A organização da interação desses quatro componentes define se o ecossistema portuário é mais ou menos eficiente.

A comparação mais evidente é com os aeroportos, que também reúnem atividades totalmente diferentes em um ecossistema de negócios, sendo que as receitas geradas são provenientes de um amplo leque de serviços. Em menor escala, é esclarecedor o exemplo dos shopping centers, que igualmente são um ecossistema de negócios em que a boa integração das atividades é decisiva.

Assim, em vez de se enxergar os portos como um núcleo de prestação de serviços relacionados ao transporte aquaviário, deve-se vê-los de modo um tanto diverso, como um ecossistema de negócios.

O desenvolvimento de um ecossistema portuário

Segundo os teóricos, algumas empresas ativamente desenvolvem um ecossistema de negócios. Tais companhias precisam de um determinado conjunto de capacidades e possuem um específico modelo de negócios.

De acordo com De Langen, é justamente isso o que deve acontecer com as autoridades portuárias. Elas devem ser consideradas companhias que desenvolvem ecossistemas de negócios. Nesse sentido, sua função principal consiste em propiciar condições destinadas a garantir que aquele porto específico continue sendo atrativo à iniciativa privada.

Em certas situações, isso se fará por meio de investimentos públicos nas infraestruturas portuárias. Em outros casos, será por meio da atração de investimentos privados. São vários os caminhos possíveis. Mas em todas as situações, o objetivo central residirá na ampliação da atratividade do porto.

Risco no desenvolvimento dos portos

Segundo De Langen, um grande risco no desenvolvimento dos portos consiste em presumir que o futuro será uma derivação linear do presente – desconsiderando que os ecossistemas são mutáveis por fatores endógenos e exógenos.

Por exemplo, não se pode simplesmente presumir (1) que a relação ótima entre extensão de berço de atracação e extensão de área de armazenagem será sempre a mesma, (2) que as indústrias que cresceram no passado continuarão crescendo no futuro, (3) que a energia produzida continuará sendo majoritariamente proveniente de fontes fósseis, (4) que as atividades portuárias existentes nunca serão encerradas, (5) que certas cargas nunca serão conteinerizadas, (6) que os stakeholders continuarão apoiando o desenvolvimento do porto, (7) que caminhões continuarão sendo ambientalmente danosos, (8) que a produtividade na movimentação de cargas continuará sendo a mesma.

Presunções como estas decorrem de mapas mentais, que são atalhos cognitivos utilizados pelas pessoas para encontrar sentido diante de informações complexas. Dá-se um sentido a certos aspectos do que é observado, mas ignoram-se outros que parecem irrelevantes ou contraintuitivos. Com isso, promove-se uma simplificação seletiva da realidade, que desconsidera a complexidade e reduz a capacidade de enxergar mudanças (inclusive radicais) que se aproximam.

Essas ideias, aliás, foram muito bem expostas pelo professor Marcos Nóbrega na conferência que encerrou o segundo dia do mesmo congresso.

Desenvolvimento dos portos como uma atividade comercial por natureza

Partindo da premissa de que os portos são um ecossistema de negócios e que não se deve simplesmente projetar o futuro como uma continuidade linear do presente, De Langen defende que o desenvolvimento dos portos é uma atividade comercial por natureza.

Numa perspectiva tradicional, o desenvolvimento dos portos consiste basicamente em prover infraestruturas portuárias, o que seria necessariamente uma responsabilidade governamental, executada por uma autoridade portuária inserida na estrutura do Estado.

Já segundo a perspectiva de que o desenvolvimento dos portos é uma atividade comercial por natureza, ainda que haja espaço para o envolvimento governamental com portos, essa natureza comercial exige uma estrutura de governança focada em operações comerciais efetivas.

Segundo ele, dois fundamentos sustentam a natureza comercial do desenvolvimento portuário.

Primeiro, os portos competem pela atração de linhas de navegação, volumes de carga e investimentos nos seus complexos. Mais do que isso, muitos portos inserem-se em hinterlândias contestáveis, o que significa que eles concorrem com outros portos diretamente pela atração de navios e cargas. E competem com outros centros industriais e logísticos pela atração de investimentos. As áreas dos portos e os serviços são disponibilizados para usuários dos portos, e os valores cobrados podem refletir o seu valor comercial.

Segundo, os portos são clusters. O desenvolvimento dos portos consiste em mais do que simplesmente assinar contratos de arrendamento ou de concessão. Para o arrendamento de estruturas portuárias, a criação de sinergias entre as empresas é crucial para a atratividade dos portos. O desenvolvimento portuário envolve inclusive o desenvolvimento de infraestruturas digitais, sistemas de uso comum e infraestruturas físicas igualmente acessíveis. Logo, o desenvolvimento dos portos envolve um conhecimento profundo do ecossistema portuário, das infraestruturas atuais e futuras, e dos serviços necessários às empresas inseridas nesse ecossistema.

Nesse contexto, é necessário que haja uma visão comercial do desenvolvimento portuário. Decisões meramente baseadas em aspectos políticos e que não encontram fundamento no mercado tendem a ser escolhas equivocadas e com elevado potencial de causar prejuízos ao próprio Estado.

Note-se que De Langen deixa bem claro que não há problema algum com a existência de autoridades portuárias estatais. A questão é que a governança deve ser centrada em aumentar a efetividade das operações e a atratividade dos portos. Em outras palavras: deve ser uma governança voltada a aspectos comerciais, ainda que preocupada com questões de interesse geral, como concorrência suficiente, acesso ao mercado, segurança náutica, proteção do meio ambiente, continuidade das operações portuárias, treinamento, educação e inovação.

Das autoridades portuárias às companhias de desenvolvimento portuário

Apesar da atitude necessariamente comercial que cabe às autoridades portuárias, continua-se utilizando a denominação “autoridade portuária” – embora muitas delas não adotem mais o termo “autoridade” ao se referirem a si próprias, como acontece com o porto de Barcelona.

O termo “autoridade” é normalmente utilizado pelas agências e outras entidades criadas pelo Estado para o desempenho de funções que envolvem poder de polícia – como acontece com autoridades ambientais ou fiscais. Entretanto, nenhuma dessas autoridades desenvolve serviços comerciais em ambientes competitivos. Algumas delas podem cobrar taxas por serviços (de inspeção, por exemplo), mas todas operam com base em poderes formalmente delegados e com base em regras que forçam os stakeholders a aderir à autoridade delas.

Em contraposição, as autoridades portuárias operam em ambientes concorrenciais e têm autoridade limitada. Não podem definir os negócios desempenhados pelas empresas que operam no porto, por exemplo, nem onde e de que forma elas podem investir. Tampouco cabe a elas regular preços. Mesmo as tarifas cobradas pelas autoridades portuárias decorrem de um trade-off entre ampliação imediata da arrecadação versus competitividade do porto.

Dadas essas características, segundo De Langen, o termo “autoridade portuária” deveria ser substituído por “companhia de desenvolvimento portuário” ou CDP (port development companies ou PDC). Não se trata evidentemente de uma simples alteração de designação, e sim de uma modificação de postura e de compreensão do papel das “autoridades portuárias” no desenvolvimento dos portos.

Lições para o Brasil

As lições acima são muito relevantes à gestão dos portos no Brasil.

A concepção dos portos como ecossistemas de negócios permite uma visão holística dos portos. Mais do que falar em quantidade de cargas movimentadas, deve-se priorizar uma visão segundo a qual os portos são ecossistemas de empresas diversas, mas dotadas de sinergia para ampliar a eficiência portuária. O desenvolvimento dos portos deve priorizar justamente essas sinergias.

Nesse contexto, o direito brasileiro precisa superar uma visão antiquada dos contratos de concessão e de arrendamento portuário. Esses contratos precisam comportar alterações frequentes (e muitas vezes radicais) de modo a proporcionar atratividade e continuidade de investimentos. Os mecanismos de alteração contratual devem ser maleáveis e rápidos. Os processos de contratação precisam ser mais simples e céleres. O Brasil não pode demorar tanto para dizer “sim” aos investimentos privados nos portos. Os custos de transação decorrentes dessas longas discussões são enormes.

Não há cabimento, por exemplo, na realização de longuíssimos processos de discussão sobre estudos de viabilidade, muito menos quando eles se baseiam em previsões que são mera derivação estatística do presente. Num contexto repleto de mudanças e suscetível inclusive a variações do mercado externo, deve-se ter contratos resilientes, que comportam mudanças inclusive bastante radicais, sem que se enxergue nisso uma “violação ao instrumento convocatório”.

As autoridades portuárias, nesse contexto, precisam se ver como parceiras das empresas que operam no porto. Devem respeitar a margem de liberdade no exercício da política comercial que cabe aos operadores portuários. Devem observar inclusive a margem de liberdade para definição dos investimentos que serão efetivados pelos particulares. Por fim, a regulação dos portos deve buscar procedimentos de contratação mais simples e rápidos. Uma parte considerável dos portos brasileiros está inoperante ou opera com base em contratos de transição precários. A rigor, todas essas áreas deveriam ser ostensivamente disponibilizadas à iniciativa privada para que sejam realizadas ofertas espontâneas pelo mercado.

*Rafael Wallbach Schwind é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) e sócio de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Sociedade de Advogados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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