iNFRADebate: Renegociação de contratos – como fazer no caso dos contratos de concessão federal de rodovias e aeroportos em crise?

Mauricio Portugal Ribeiro*

A pergunta que eu gostaria de responder neste artigo[1] é: quais são os caminhos jurídicos e econômico-financeiros que podem ser adotados na renegociação dos contratos de concessão celebrados entre 2012 e 2014, que possam viabilizar a sua continuidade.

Essa pergunta é importante porque o resultado desses processos de renegociação deve ditar o que será usado de agora em diante para lidar com outros contratos em crise.

Desde 2016 que vários contratos federais de concessão de rodovias e aeroportos celebrados entre 2012 e 2014 entraram em crise em vista da assimetria entre o cenário em que foram modelados (crescimento acelerado do país) e a crise que os abateu no início da sua execução (2015 e 2016).

Em 2017, foi aprovada a lei de relicitação, que disciplinou o procedimento para a transferência dessas concessões para novos concessionários. A partir de então, vários desses concessionários aderiram aos processos de relicitação. Em 2023, o novo governo Lula anunciou que pretendia afastar esses contratos do regime de relicitação e renegociá-los, de maneira a viabilizar sua continuidade.

Nesse contexto, os Ministérios dos Transportes e o Ministério de Portos e Aeroportos protocolaram uma Consulta (que, de agora em diante, vou chamar de “Consulta”) ao TCU (Tribunal de Contas da União) sobre a possibilidade de o poder público revogar a sua adesão à relicitação em contratos de concessão de rodovias e aeroportos federais e sobre as balizas para a continuidade desses contratos após a revogação do regime de licitação.

Havia uma grande expectativa de que a resposta do TCU à Consulta (que vou chamar de agora em diante de “Resposta do TCU”) criasse uma espécie de “direito à renegociação de contratos”. Isso porque desde 2022, o ministro Bruno Dantas, presidente do TCU, tem se engajado em um movimento a favor do consensualismo como meio de solução de conflitos na administração pública.[2] A reboque dessa expectativa, teóricos do direito administrativo publicaram artigos sobre os fundamentos desse novo direito à renegociação de contratos.

Analisando a Resposta do TCU, percebi que, infelizmente, a busca do consensualismo não permeou essa resposta. A Resposta do TCU determina que a saída do regime de relicitação implique em uma retomada pura e simples do contrato originário, com sua distribuição de riscos e regras de reequilíbrio originárias, aplicando-se ao contrato originário rigorosamente as regras para tratamento de passivos e ativos regulatórios e os limites de alteração dos contratos que a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) sempre aplicaram a esses contratos.

Portanto, não me parece haver na Resposta do TCU qualquer abertura para que se crie um “direito à renegociação dos contratos”.

Além disso, a Reposta do TCU cria, digamos assim, uma nova assimetria: por um lado, determina que as agências tratem os passivos regulatórios destes contratos do modo como elas sempre trataram, sem nenhuma margem de flexibilização para além das que já são por elas adotadas. Por outro lado, em relação aos ativos regulatórios, o TCU determinou que é condição da retomada dos contratos originários a renúncia pelos concessionários de todo os seus ativos regulatórios (pleitos de reequilíbrio) que estão na esfera arbitral e judicial.

Ora, se esses contratos não eram viáveis da perspectiva econômico-financeira considerando o modo que a ANAC e a ANTT estavam tratando os seus ativos e passivos regulatórios – e, por isso, eles foram empurrados para o regime de relicitação – não me parece fazer sentido supor, como o fez o TCU, que eles se tornarão viáveis quando saídos do regime de relicitação se aplicarmos as mesmas regras que sempre foram aplicáveis para os seus passivos regulatórios, e acrescentarmos à esse contexto a exigência de que os concessionários renunciem a todos os seus pleitos de reequilíbrio, que se encontram na esfera arbitral e judicial.  

Por outro lado, é muito importante assinalar que a Resposta do TCU determinou que os estudos de vantajosidade e os aditivos que afastarão esses contratos do regime de relicitação (e retomarão a sua execução) sejam submetidos previamente à aprovação do TCU. Isso significa que o TCU poderá, na análise das propostas concretas de renegociação de cada contrato que lhe forem submetidas pelos ministérios ou agências reguladoras, flexibilizar os entendimentos que manifestou na Resposta do TCU.

A minha visão é que existe, de fato, a tendência de o TCU flexibilizar suas posições na análise dos aditivos específicos. Isso porque a SecexConsenso, área cuja criação foi promovida pelo ministro Bruno Dantas para solucionar as “controvérsias” existentes na administração pública, é a área que deve emitir o parecer técnico a subsidiar o TCU na análise desses aditivos. A utilidade e legitimidade institucional da SecexConsenso nesse caso depende de ela ser capaz de encontrar acordos que viabilizem a continuidade desses contratos. Por isso, me parece que ela tem incentivos para flexibilizar as condições que foram estabelecidas pela Resposta ao TCU.

Note-se que, no processo da Consulta, a área técnica cujo parecer subsidiou o plenário do TCU foi a Auditoria Especializada em Infraestrutura Rodoviária e de Aviação Civil, área técnica que tem, digamos assim, na prática, definido os parâmetros de atuação da ANTT e da ANAC em relação a esses contratos. 

Portanto, a mudança de área técnica da Auditoria Especializada em Infraestrutura Rodoviária e de Aviação Civil para a SecexConsenso, em minha opinião, deve implicar em uma maior flexibilidade do TCU na avaliação dos aditivos que estabelecem as regras de saída da relicitação e retomada dos contratos. É possível que a atuação da SecexConsenso de fato faça surgir um direito à renegociação dos contratos ou regras para tratamento dos contratos em crise.

Após a Resposta do TCU, o Ministério dos Transportes emitiu a Portaria 848/2023, que regulamenta as renegociações dos contratos de concessão de rodovias. Na leitura da portaria, encontram-se sinais do que o ministério pretende fazer em relação a esses contratos, sinais esses que são objeto de discussão a seguir.

Antes de passar à análise do tema, acho importante deixar claro que sou advogado em processos arbitrais de concessionárias, que aderiram a processos de relicitação.

Caminhos possíveis para a solução do problema desses contratos
Creio haver dois caminhos metodológicos para viabilizar a continuidade dos contratos que deixarão o regime de relicitação, conforme explicarei a seguir.

A continuidade dos contratos como uma renovação
Aparentemente, considerando as regras da Portaria 848/2023, o Ministério dos Transportes e a ANTT pretendem tratar a continuidade dos contratos a saírem dos processos de relicitação como se fosse uma renovação de um contrato de concessão. A portaria fala em readaptação e otimização desses contratos. Mas, o tratamento metodológico dado para a modelagem da continuidade da concessão é como se fosse uma renovação de contrato.

Nas renovações de contratos, o poder concedente ou agência reguladora elabora geralmente um aditivo que atualiza completamente o contrato em curso, como se estivesse modelando um novo contrato para o novo período de concessão.

No âmbito da União, a experiência recente em torno disso foi no setor de ferrovias. E me parece que o modelo que está sendo seguido é semelhante ao que se fez nas renovações de contrato nesse setor.

Para a modelagem do aditivo que renova o contrato – aditivo esse, que, no presente caso, estabelecerá as condições para continuidade dos contratos – a agência reguladora ou poder concedente elabora estudos de viabilidade do novo período contratual (que pela portaria pode ser mais extenso do que o previsto no contrato originário), considerando todos os custos, operacionais e de investimentos, receitas do novo período, e taxa de rentabilidade que seria aplicável a um novo contrato.

Em relação aos débitos e créditos regulatórios resultantes do período anterior, nas renovações de contrato, geralmente a sua liquidação e pagamento é considerada nos estudos de viabilidade da renovação. Olhando a portaria, não consegui ter clareza sobre como esse tema será tratado pelo Ministério dos Transportes.

O que me parece claro é que o Ministério dos Transportes pretende tanto quanto possível manter ou ampliar os investimentos a serem realizados nessas rodovias nos próximos anos, de maneira que os resultados positivos dessas renegociações sejam usufruídos o quanto antes para os usuários.

Usando esses dados, calcula-se a nova tarifa considerando as receitas, investimentos e custos operacionais do novo período e a taxa de rentabilidade que seria utilizada para o estudo de viabilidade de um novo contrato de concessão naquele setor.

É importante notar que quando se segue essa metodologia para a renovação de contratos é possível reconfigurar completamente as obrigações dos contratos para o novo período, criando ou suprimindo obrigações de desempenho que estavam nos contratos originários, e modificando, assim a distribuição de riscos e o equilíbrio econômico-financeiro originário do contrato.

A Resposta do TCU e a portaria, contudo, falam em manutenção da distribuição de riscos e do equilíbrio econômico-financeiro originário. Na minha apuração, não consegui ter clareza como essas exigências da portaria e da Resposta ao TCU serão conciliadas com o tratamento da continuidade dos contratos como uma renovação.

Nesse método, a vantajosidade da renovação vis a vis a realização de nova licitação é aferida não apenas qualitativamente, mas também quantitativamente.

Do ponto de vista qualitativo, a agência ou o poder concedente usarão como critérios para julgar a vantagem da renovação, entre outros, a velocidade com que os concessionários atuais realizarão investimentos para melhoria dos serviços quando comparado a novos concessionários; a possibilidade de amortização das dívidas regulatórias do período anterior por meio da continuidade do contrato (comparando-se isso à necessidade de discussão da indenização por investimentos não amortizados do concessionário anterior, no caso de nova licitação).

Da perspectiva quantitativa, o teste que se faz é verificar se a tarifa/outorga da renovação é menor/maior que a que se espera obter em uma licitação de um novo contrato.[3]

Aparentemente, foi esse caminho que o Ministério dos Transportes adotou em relação aos três contratos cujas propostas de aditivos para a continuidade da sua execução foram protocoladas junto à SecexConsenso.

Todavia, parece-me que, quando o TCU apreciou a consulta, a área técnica, o MPTCU (Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União) e os ministros não tinham esse modelo em mente.

A análise do TCU se verteu sobre a possibilidade de retomada dos contratos originários (há várias referências a isso ao longo do acórdão e dos votos), mantendo-se a distribuição de riscos e o equilíbrio econômico-financeiro originário. O tratamento da retomada como uma renovação do contrato não foi apreciado pelo TCU. Por isso, é difícil saber qual será a reação do TCU a essa proposta.

Como já mencionei, o fato de a SecexConsenso ser a responsável pela emissão do parecer técnico que vai subsidiar a análise do TCU dos aditivos aos contratos cria incentivos para que ela encontre algum caminho que viabilize a continuidade desses contratos, o que só é possível com a flexibilização das posições constantes da Resposta do TCU.

De qualquer modo, se, de fato, o Ministério dos Transportes tiver adotado essa linha, em minha opinião trata-se de uma boa solução para o problema, estendendo para os contratos em crise o cabedal metodológico (jurídico e econômico-financeiro) usado para as renovações de contrato.

Note-se, por fim, que esse tratamento da renegociação dos contratos como renovação é algo que pode ser aplicado a qualquer contrato em situação de crise, de maneira que, se, de fato, esse caminho de solução dos problemas dos contratos prosperar, estaremos diante do surgimento de uma nova forma de lidar com os contratos em crise. A ver.

O tratamento da continuidade do contrato com revisão das decisões sobre reequilíbrios
A outra possibilidade seria retornar à execução dos contratos originários, mantendo os seus indicadores de serviço, obrigações de investimento e de pagamento originárias, sua distribuição de riscos e parâmetros originários que constituem o seu equilíbrio econômico-financeiro. Aparentemente, era essa a ideia que o TCU tinha em vista quando analisou a consulta.

Como já mencionei, se esse retorno for feito sem mais, nos moldes previstos na Resposta do TCU, esses contratos simplesmente não serão viáveis da perspectiva econômico-financeira. Afinal de contas, os pedidos de relicitação decorrem exatamente da inviabilidade de continuidade desses contratos seguindo os contornos iniciais.

Por isso, a única forma de tornar a continuidade desses contratos viável com o retorno aos contratos originários é se promover uma revisão ampla das decisões sobre os ativos regulatórios desses concessionários. Há sinais de que, em vista da combinação entre apagão das canetas e lavajatismo, a ANTT e ANAC não apreciaram devidamente os pleitos de reequilíbrio desses concessionários.

É sobre isso que falarei a seguir.

O apagão das canetas e de lavajatismo influenciaram as decisões de pleitos de reequilíbrio desses contratos e a revisão das decisões do poder público adotadas
Desde 2016 que os especialistas em infraestrutura sabem que a execução dos contratos de concessão de rodovias e aeroportos celebrados entre 2012 e 2014 se tornou inviável em vista da assimetria entre o cenário no qual foram modelados e o da sua execução, e, por isso, em qualquer lugar do mundo, eles deveriam ter sido renegociados.

De 2016 até aqui, houve propostas para reequilibrar e renegociar esses contratos. Mas essas propostas foram ignoradas[4], sobretudo por consequência da combinação entre apagão das canetas e o ambiente lavajatista.

O apagão das canetas foi criado pelo temor de agentes públicos de tomarem decisões em face do manejo pelo TCU da ameaça de uso (e do uso) do seu poder de punir agentes públicos. O apagão das canetas já existia antes da operação Lava-Jato.

Em minha opinião, no setor de infraestrutura, o caso emblemático para a consolidação do apagão das canetas é a abertura de processo contra os funcionários públicos que participaram do aditivo ao contrato de concessão da Concer para a construção da Nova Subida da Serra.

O aditivo foi assinado em 2012, e, apesar de não haver qualquer evidência de corrupção ou benefício pessoal, todos os envolvidos na sua celebração – o Ministro dos Transportes, os diretores da ANTT, até funcionários de “chão de fábrica” da ANTT – foram submetidos a processos investigativos junto ao TCU e sofreram por anos com o risco de que recomendações de aplicação de penalidades, realizadas pela área técnica do TCU[5], sem motivo plausível, prosperassem junto ao plenário da corte.

Já o lavajatismo se baseou na suposição de que a corrupção permeava todas as relações público-privadas do país, particularmente no setor de infraestrutura, e que deveria ser combatida a qualquer custo, mesmo em detrimento dos princípios e regras legais mais elementares do Estado de Direito. O lavajatismo aprofundou a postura punitiva dos órgãos de controle e, dessa forma, reforçou o apagão das canetas.

O apagão das canetas e o lavajatismo impediram não apenas que as propostas de renegociação desses contratos fossem adequadamente analisadas. Eles impediram também que os pedidos de reequilíbrio fossem devidamente apreciados.

Seria muita ingenuidade supor que o ambiente de apagão de canetas e de lavajatismo não distorceram a avaliação dos pleitos de reequilíbrio realizados por essas concessionárias, particularmente considerando que várias delas eram controladas por grupos econômicos que estavam envolvidos em algumas das descobertas da operação Lava-Jato.

Como já afirmei várias vezes no passado, direitos a reequilíbrio foram suprimidos, adiados e reduzidos. A exigência de tratamento isonômico – tão citada na Resposta do TCU – entre esses concessionários e os demais concessionários requer a revisão das decisões adotadas nesses processos administrativos de reequilíbrio e eventualmente a realização de acordos nos processos arbitrais.

Apenas para dar um exemplo de decisão de pleito de reequilíbrio influenciada pelo ambiente de apagão das canetas e lavajatismo, vale a pena mencionar o pleito de reequilíbrio das concessionárias de rodovia federal pela variação do custo dos insumos asfálticos havida entre 2014 e 2016. O custo desses insumos teve uma variação imprevista e de impactos extraordinários e tornou muito mais cara para as concessionárias a execução da sua obrigação de duplicação das rodovias.

Nem mesmo a ANTT nega que variação desse custo foi imprevisível e que o seu impacto sobre as concessionárias foi extraordinário.

Em 2017, quando foi apreciado o pleito de reequilíbrio das concessionárias, o primeiro parecer da procuradoria geral da ANTT disse que havia direito a reequilíbrio pela variação de custo dos insumos asfálticos.

A seguir, o então procurador-geral da ANTT avocou o caso e deu um parecer dizendo que, mesmo que haja variação imprevisível e extraordinária do custo dos insumos asfálticos não haveria direito a reequilíbrio, pois, no seu entendimento, o risco dessa variação seria dos concessionários. Evidentemente que esse entendimento era contrário não só às leis sobre o tema, mas também ao que estava disposto nos contratos. Mas, ele foi seguido pela diretoria da ANTT.

Não por acaso, posteriormente à essa decisão da ANTT, a partir da licitação da BR-153, na Etapa IV das concessões rodoviárias federais, a ANTT inseriu nos contratos regra que diz explicitamente que é risco dos concessionários as ocorrências imprevisíveis e extraordinárias relacionadas aos riscos a eles atribuídos.[6]

Aludo a isso para enfatizar que, antes dessa modificação, os contratos não tinham regra que desse base ao entendimento adotado pela ANTT de atribuir às concessionárias o risco de variação imprevisível e de impactos extraordinários dos custos de insumos. Aliás, em qualquer caso, a atribuição ao concessionário dos riscos de eventos imprevisíveis e de impactos extraordinários é de questionável validade em face do artigo 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993, que ainda estava vigente na época da licitação da concessão da BR 153.

Voltando a discussão sobre a revisão dos pleitos de reequilíbrio dessas concessionárias, parece-me relevante notar que o poder judiciário tem revisado processos criminais, delações premiadas e acordos de leniência celebrados por pessoas e empresas submetidas às ilicitudes da atuação da operação Lava-Jato. Daí que me parece natural que pleitos de reequilíbrio decididos na mesma época também possam ser revisados.

Essas revisões são possíveis da perspectiva jurídica, em primeiro lugar, porque não há decadência do poder de autotutela da administração pública no caso de decisões cujo efeito seria beneficiar os administrados, nesse caso os concessionários, reparando um tratamento inadequado desses eventos de desequilíbrio e a quebra da isonomia que isso representa em relação aos demais concessionários.

Além disso, não há prescrição desses direitos a reequilíbrio uma vez que as decisões administrativas sobre esses direitos foram questionadas no âmbito arbitral ou judicial e não há ainda decisões definitivas sobre esses questionamentos. Na grande maioria dos casos, essas revisões realizadas na esfera administrativa teriam por efeito a celebração de acordos nas arbitragens em curso, nas quais esses direitos de reequilíbrio estão sendo discutidos.

Portanto, o ambiente de apagão das canetas e lavajatista não só impediu a renegociação dos contratos de concessão, como também impediu o seu reequilíbrio. O exemplo acima traz um caso em que foi negado direito a reequilíbrio. Há outros vários em que foram usados algum estratagema para negar, adiar ou reduzir os valores do reequilíbrio.

O ocaso desses contratos é, portanto, fruto não apenas da omissão das agências reguladoras e do poder concedente em renegociar os contratos, mas também em realizar oportunamente os reequilíbrios desses contratos. Por isso, parece oportuna a revisão dos desequilíbrios desses contratos.

Não ignoro, por outro lado, as dificuldades e resistências que a ideia de revisão de decisões passadas sobre reequilíbrio de contratos levantará. Agentes públicos se sentem geralmente expostos com a revisão de suas decisões e ninguém quer criar esse tipo de precedente no âmbito das agências reguladoras. Mas, se a estratégia da “continuidade como renovação”, adotada pelo Ministério dos Transportes, não prosperar, a revisão das decisões dos pleitos de reequilíbrio, com realização de acordos na via judicial e arbitral, seria uma outra forma de cumprir as exigências do TCU e assegurar a continuidade desses contratos.

Pleitos a serem revisados
Como propus a revisão de decisões de pleitos de reequilíbrio realizados pelas concessionárias de rodovias e aeroportos, acho importante listar alguns desses pleitos.

Para que esse artigo não fique excessivamente longo, não vou apontar nesse momento o que considero como falhas cometidas na decisão de cada um desses pleitos, mesmo porque isso está apontado nos processos arbitrais que discutem esses pleitos, processos esses que são públicos e que podem ser acessados pelos interessados.

Segue uma lista de ocorrências que geraram pleitos de reequilíbrio dessas concessionárias:

I. Queda de demanda imprevisível e de impactos extraordinários;
II. Emissão parcelada de licenças que deveriam ser emitidas na íntegra;
III. Não realização ou atraso na realização de obras do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) e Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária) a serem realizadas nas concessões;
IV. Mudança das condições de financiamento prometidas pelos BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Banco do Brasil e Caixa;
V. Atraso no início da cobrança de pedágio;
VI. Atraso na emissão das declarações de utilidade pública;
VII. Entrega dos ativos em condições abaixo das prometidas, por exemplo, CREMAs (Contratos de Restauração e Manutenção de Rodovias) não executados ou executados nas rodovias, falta de condições para obter as licenças dos bombeiros nos aeroportos, ou transferência para as concessionárias de aeroportos de áreas menores que as previstas nos contratos de concessão.

A necessidade de compensação pelos subsídios no financiamento
Dentre as discussões dos pleitos de reequilíbrio desses contratos, dois deles tem maior relevância. O primeiro é o que diz respeito ao financiamento subsidiado.

Na época da estruturação desses contatos de concessão, o BNDES era o principal fornecedor de crédito para projetos de infraestrutura e, naturalmente, as condições que ele oferecia balizava o cenário base[7] desenvolvido para determinação no preço licitatório[8] (tarifa-teto, ou pagamento mínimo pela outorga).

Ocorre que em razão da política de financiamento subsidiado aprovada pelo governo da época para essas concessões de rodovias e aeroportos, as condições de crédito ofertadas pelo BNDES não podiam ser alcançadas por nenhum outro fornecedor no mercado.

Ao utilizar essas condições de crédito para elaboração do cenário base, em especial o KD (Custo de Capital de Fonte Externa) na formação do WACC (Custo Médio de Capital Ponderado), condicionou-se a viabilidade econômico-financeira desses projetos à obtenção do financiamento do BNDES.

Em outras palavras, a TIR (Taxa Interna de Retorno) de projeto prevista no cenário base só era compatível com WACC de concessionários que tivessem sua operação financiada pelo BNDES estritamente naquelas condições.

Assim, sob a ótica econômica, esses contratos de concessão são, na verdade, contratos de PPP (Parceria Público-Privada) disfarçados de contratos de concessão. É que eles não são viáveis sem as condições de financiamento extremamente subsidiadas que foram disponibilizadas para a licitação. A contraprestação pública nesses contratos de concessão se realizava por meio do financiamento subsidiado. Sem esse financiamento, as propostas feitas nas licitações são simplesmente inviáveis.

A supressão do financiamento subsidiado foi realizada em um momento em que os funcionários do BNDES estavam sujeitos aos desvarios da operação Lava-Jato. Vários (estou falando de algo próximo a 300 funcionários) foram investigados e sofreram busca e apreensão em suas casas e em seus escritórios, declaração de indisponibilidade de bens, e/ou condução coercitiva (com todo espetáculo midiático realizado na época em torno disso) sem que houvesse nenhuma evidência de corrupção.

Aliás, é fato notório que as suspeitas sobre o BNDES e sobre seus funcionários – inclusive a suspeita sobre o que foi apelidado de “caixa-preta do BNDES” – se mostraram até aqui completamente infundadas. Pois bem, foi na época em que os funcionários do BNDES foram assediados e estavam acossados pela atuação da operação Lava Jato que esses financiamentos foram discutidos e terminaram sendo negados e depois suprimidos.

Portanto, sob a ótica econômica, a supressão do financiamento impossibilitou que a TIR de projeto fosse compatível com WACC de qualquer operador. Ainda que não houvesse nenhum desequilíbrio contratual e que todas as premissas do cenário base se materializassem, o retorno obtido pelos concessionários na operação do projeto seria insuficiente para custear seu serviço de dívida.

Apesar dos efeitos econômicos, a ANTT e ANAC tem entendido que o risco de mudanças nas condições de financiamento pelo BNDES é do concessionário, ignorando regras legais e contratuais sobre o tema.  

É preciso revisar o entendimento das agências sobre o risco de financiamento para que a continuidade desses contratos seja viável da perspectiva econômico-financeira.

Como tratar a supressão dos financiamentos subsidiados prometidos para os contratos de concessão celebrados entre 2012 e 2014
A minha sugestão é que, caso avance o processo de revisão das decisões sobre o reequilíbrio desses contratos, se reconheça o subsídio implícito nos financiamentos prometidos para esses contratos de concessão e que esses valores sejam considerados ativos regulatórios dos concessionários.

É perfeitamente possível desenvolver metodologia para calcular a dimensão da “contraprestação” prometida pelo poder público por meio do financiamento subsidiado. Basta calcular a diferença entre o financiamento a mercado na época da licitação e o financiamento subsidiado prometido pelos bancos públicos.

Em termos econômico-financeiros, é possível: (a) recalcular qual seria o WACC na ausência do crédito fornecido pelo BNDES; (b) definir a tarifa-teto que decorrer disso; e (c) e, assim, calcular a “contraprestação” implícita.

Por fim, é importante notar que a “contraprestação” prometida pelo poder público por meio do financiamento subsidiado independe de quem deu causa ao atraso ou supressão do financiamento. É que se trata de uma compensação por uma condição financeira disponibilizada para a licitação.

O subsídio implícito no financiamento foi um instrumento de política pública para tornar o projeto viável. Sem esse subsídio, as propostas finais de tarifa de pedágio nas licitações de rodovias teriam sido bem mais altas, e, muito provavelmente, as licitações seriam vazias, porque os valores das propostas estariam acima do preço-teto previsto na licitação. E, no caso dos valores das propostas de pagamento de outorga nas licitações de aeroportos, eles teriam sido mais baixos do que os que foram ofertados.

Portanto, compensar os concessionários pela perda desses valores que estavam implícitos nos financiamentos subsidiados que balizaram a elaboração das suas propostas é reconhecer as limitações contidas no cenário base criado por ações do próprio poder concedente.

Obrigações de duplicação no caso das rodovias
O segundo tema de maior relevância dentre as discussões dos pleitos de reequilíbrio no caso dos contratos de concessão de rodovias federais celebrados entre 2012 e 2014 é a obrigação de os concessionários realizarem investimentos para a duplicação das rodovias.

É consenso entre os técnicos do setor que a maior parte dessas duplicações é desnecessária. A sua exigência foi incluída no contrato sem bases técnicas. Por isso, seria importante que, no processo de alteração desses contratos para assegurar a sua continuidade, essas obrigações de duplicação fossem adaptadas para as projeções atuais da demanda das rodovias.

A não realização dessas duplicações é responsável pela maior parte do passivo regulatório dessas concessionárias de rodovias. O Fator D (mecanismo previsto nesses contratos para reequilíbrio automático pelo atraso na realização de investimentos) e as multas decorrentes desse inadimplemento constituem a maior parte desse passivo, sendo que o passivo pela incidência do Fator D é bem maior que o passivo decorrente das multas.

Portanto, em um desejável cenário de renegociação desses contratos é essencial a modificação dessas obrigações de investimento. A minha percepção é que é muito difícil a retomada dos contratos originários sem que isso seja tratado.

Essas obrigações de investimento em duplicação, juntamente com a supressão do financiamento dos bancos públicos nas condições que foram oferecidas antes da licitação, são as causas centrais dos problemas enfrentados por esses contratos de concessão de rodovias.

Conclusão
A Resposta do TCU supôs que seria possível, da perspectiva econômico-financeira, a retomada sem mais dos contratos originários, mantendo-se as regras e práticas que lhe foram aplicadas até aqui, com renúncia dos pleitos de reequilíbrio que estão em discussão em arbitragens ou perante o poder judiciário, e manutenção do valor presente dos passivos regulatórios.

Contudo, claramente, a continuidade desses contratos não será viável da perspectiva econômico-financeira se essas determinações do TCU forem seguidas à risca. Por isso, o presente artigo buscou mapear os caminhos para viabilizar a continuidade desses contratos.

Há dois caminhos metodológicos da perspectiva jurídica e econômico-financeira para a retomada da execução dos contratos saídos do regime de relicitação.

O primeiro caminho seria tratar a retomada como uma renovação do contrato, com possibilidade de remodelar completamente as regras sobre obrigações de investimento, indicadores de serviço, distribuição de riscos e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. No âmbito da União, o exemplo mais próximo é o da renovação dos contratos de concessão de ferrovias.

Nesse caso, a vantajosidade da continuidade da execução do contrato vis a vis o cenário de relicitação é dado pela comparação entre aspectos qualitativos e quantitativos. Entre os aspectos qualitativos, pode-se, entre outros, usar, como critérios de comparação entre o cenário de continuidade de contrato e o cenário de relictação, a velocidade para retomada dos investimentos e cumprimento dos indicadores de serviço, e a possibilidade de amortização dos investimentos já realizados no mesmo contrato.

Em relação aos aspectos quantitativos, a vantajosidade é dada pela comparação entre a tarifa resultante do estudo de viabilidade da renovação e a tarifa resultante do estudo de viabilidade de um novo contrato que resultaria da relicitação. Aparentemente, o Ministério dos Transportes está tratando a retomada dos contratos usando a metodologia que geralmente é adotada para a renovação de contratos.

Se a ideia de tratar a retomada dos contratos como renovação prosperar, estaremos diante de uma nova e boa forma de tratamento de contratos em crise.

Note-se que o TCU, ao analisar as condições para a retomada dos contratos, claramente não divisou a hipótese de tratar essa retomada como uma renovação do contrato. Como a sua decisão não tratou desse tema, é difícil saber como o TCU se posicionará em relação a essa metodologia.

Por outro lado, parece-me que há chances da ideia de tratar a retomada do contrato como renovação prosperar perante o TCU. Isso porque – enquanto a Resposta ao TCU foi subsidiada pela Auditoria Especializada em Infraestrutura Rodoviária e de Aviação Civil – a análise pelo TCU de cada aditivo para a retomada dos contratos será subsidiada pela SecexConsenso.

A SecexConsenso tem grande incentivo para encontrar uma forma de tornar a continuidade desses contratos viável da perspectiva econômico-financeira. Isso porque a sua utilidade e legitimidade institucional depende disso.

O segundo caminho metodológico para viabilizar a retomada da execução desses contratos seria tratar a retomada a partir de uma ampla revisão dos ativos e passivos regulatórios dessas concessionárias, particularmente dos pleitos de reequilíbrio, que foram apreciados na esfera administrativa nos anos de 2016 a 2019, sob o pálio do apagão das canetas e do lavajatismo.

Essa metodologia enfrentaria certamente resistência dos agentes públicos, pois implicaria em rever decisões administrativas passadas. De qualquer modo, é importante notar que não me parece haver dúvida que a ambiência de apagão das canetas e lavajatismo impediu que os pleitos de reequilíbrio dessas concessionárias fossem adequadamente apreciados e que elas tivessem tratamento isonômico em relação a outras concessionárias.

Além disso, é cediço que, na esfera judicial, decisões muito mais graves como condenações criminais, a celebração de acordos de leniência, delações premiadas, e a imposição de multas realizada na ambiência do lavajatismo estão sendo revistas.

Não há obstáculo da perspectiva jurídica para que seja feito uma ampla revisão das decisões de pleitos de reequilíbrio. Não há nesse caso nem decadência da pretensão de autotutela da administração pública, nem a prescrição do direito a reequilíbrio.

Nessa linha, é particularmente importante enfrentar os limites da distribuição de risco de financiamento desses projetos e reconhecer a “contraprestação” contida nas condições de financiamento que balizaram o cenário base e as propostas dos licitantes. E como resultado, tratar o subsídio implícito nos financiamentos prometidos para esses contratos como valores que se caracterizam como ativos regulatórios dos concessionários.

O TCU também não divisou esse segundo caminho metodológico, de maneira que seria difícil também antecipar a sua posição sobre isso.


[1] O autor gostaria de agradecer a Felipe Sande e Rodrigo De Losso pela leitura de versões anteriores desse artigo e pelas contribuições de conteúdo e forma, que melhoraram substancialmente o texto. Os erros evidentemente são de exclusiva responsabilidade do autor.

[2] Esse movimento já teve alguns frutos. Entre outros a criação da SecexConsenso, secretaria do TCU voltada para solução consensual de divergências da administração pública. E, em relação ao setor de infraestrutura, esse movimento permitiu a realização de aditivo ao contrato da CRO (Concessionária da Rota do Oeste), concessionária da BR 163-MT, que era controlada pelo grupo Odebrecht, que reprogramou as suas obrigações de investimento e deu um tratamento que eu chamaria de benéfico aos seus passivos regulatórios, condicionada essa reprogramação à venda do seu controle à MTPAR, empresa estatal, controlada pelo Estado de Mato Grosso. O tema ainda não foi objeto de estudos. Não há ainda qualquer artigo que analise em detalhes a decisão do TCU sobre o aditivo da CRO – mas, aparentemente, a flexibilidade que o TCU demonstrou no caso da CRO estava atrelada ao fato de que os eventuais benefícios decorrentes de um tratamento privilegiado dos seus passivos regulatórios seriam auferidos por um ente público, controlado pelo Estado do Mato Grosso.
Parece-me correta a postura do ministro Bruno Dantas e do TCU em priorizar o consensualismo na solução dos problemas em torno da atuação da administração pública. Mas é preciso não esquecer que boa parte dos problemas que estão chegando à SecexConsenso são problemas que se resolveriam fora dela não fosse o temor dos agentes públicos do manejo pelo TCU do seu poder punitivo. Em outras palavras, a SecexConsenso é um meio de se buscar a benção do TCU para a solução de problemas que só não se resolveram antes pelo temor que os agentes públicos têm do próprio tribunal.
De qualquer modo, como já afirmei outras vezes, mesmo com atraso de anos, é louvável que um presidente do TCU promova o consensualismo e tente usá-lo para dar solução aos problemas.

[3] Comparando-as aos valores-teto de tarifa ou valor mínimo de outorga a ser usado no caso de uma nova licitação e uma expectativa de desconto esperado no certame licitatório.

[4] Vide o documento produzido pela ANTT chamado “Diagnósticos e alternativas frente à queda de desempenho das concessões rodoviárias federais”, que propunha, em 2018, um caminho para a solução dos problemas decorrentes desses contratos. Esse documento foi encaminhado em setembro de 2018 pelo então diretor-geral da ANTT, Jorge Bastos, ao TCU, ao Congresso Nacional e aos órgãos de classe no setor de rodovias.

[5] Nesse caso, a Auditoria Especializada em Infraestrutura Rodoviária e de Aviação Civil, que na época tinha um nome diferente.

[6] Vide o Pareceres 1.176/2016/PF-ANTT/PGF/AGU, de 09/06/2016, e o Parecer 1.365/2016/2015/PF-ANTT/PGF/AGU, de 11/07/2016.

[7] Denomina-se “cenário base” o resultado das modelagens técnica e econômico-financeira elaboradas pela concedente, cuja finalidade é a determinação de preço teto licitatório.

[8] Denomina-se “preço licitatório” os parâmetros de tarifa máxima, outorga mínima ou contraprestação máxima a serem utilizados no processo licitatório.

*Mauricio Portugal Ribeiro é sócio da Portugal Ribeiro Advogados, especializado na estruturação, nos aspectos regulatórios e no equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessões comuns e PPPs. É também professor da pós-graduação da Faculdade de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas), São Paulo (SP).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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