Zevi Kann*
Tarifas pagas pelo consumidor deveriam ser 40% mais baratas; falta de revisão tarifária atrapalha a competitividade do país
A reindustrialização do país é uma das propostas anunciadas pelo governo para os próximos anos – um objetivo que, se alcançado, trará vários benefícios pela capacidade que o setor industrial tem de gerar empregos de qualidade. Para isso, é preciso criar condições de competitividade que acelerem esse processo, e um dos entraves à reindustrialização é o custo da energia e a falta de infraestrutura.
No setor de gás natural, um dos desafios está no setor de transporte, um elo da cadeia absolutamente carente de investimentos. Com apenas 9.409 km de redes de transporte implantadas no Brasil, basicamente na região litorânea, e total inexistência de expansão desde 2010, muito precisa ser feito.
Diante de todo o potencial que se vislumbra com as novas possibilidades de oferta, do pré-sal e outras, é desejável que ocorra uma aceleração na construção de novas redes de transporte que permita pelo menos chegarmos a 20.000 km nos próximos 10 anos. No entanto, o que se verifica é um investimento pífio na expansão de gasodutos. As transportadoras integradas se acomodaram com taxas de retorno espantosas e inexistência de sinalização regulatória que incentive a expansão.
Em setores carentes de investimentos, a revisão tarifária periódica deveria considerar um plano de negócios regulatório com elevados investimentos obrigatórios, sendo que, no caso de sua ausência, o regulador aplicaria uma drástica redução tarifária. Esse tem sido o modelo adotado em estados com boas regulações, onde as redes de distribuição vêm crescendo significativamente nos últimos vinte anos. No elo do transporte, no entanto, parte expressiva do volume de gás movimentado pelos gasodutos de transporte no Brasil ainda não passou por revisão tarifária prevista pelo órgão regulador.
Essa ausência de revisão tarifária é preocupante. Uma das essências que justificam a regulação e a fiscalização de um monopólio natural sempre foi evitar o desequilíbrio de condições entre os diversos agentes, sobretudo entre fornecedores e consumidores – notadamente a parte mais vulnerável na relação de consumo. Assim, surgiram as agências reguladoras no Brasil na segunda metade dos anos 1990, a partir do PND (Plano Nacional de Desestatização), quando parte da economia brasileira gradualmente começava a sair das mãos do Estado para a iniciativa privada. Recuperar esse princípio parece oportuno em um momento que testemunhamos inequidades no setor de gás natural, em desfavor dos consumidores e do próprio mercado.
Um breve histórico: o critério para estabelecer tarifas para o setor é o de Receita Máxima Permitida, conforme prevê a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) em sua Resolução 15/2014. O artigo 19 dessa resolução é bastante explícito ao determinar que “as Tarifas de Transporte aplicáveis à prestação do Serviço de Transporte Firme aprovadas pela ANP serão revisadas periodicamente a cada 5 (cinco) anos, a contar da Data de Início do Serviço de Transporte”. Tal artigo acrescenta em seu primeiro inciso que o “processo de revisão periódica tem como objetivo a atualização e a adequação da metodologia e dos parâmetros utilizados para o cálculo da remuneração do investimento às condições macroeconômicas e de mercado prevalecentes no país” e em seu segundo inciso que a “ANP, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias antes da data-base para revisão, solicitará ao Transportador o encaminhamento da proposta de revisão das Tarifas de Transporte”.
Decorridos nove anos dessa resolução, apenas uma entre as transportadoras, a TBG (Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S/A) passou pelo processo de revisão de suas tarifas, concluído em 2020 e com redução de tarifas.
As demais nem mesmo iniciaram essas tratativas. Isso não ocorreu com as transportadoras NTS (Nova Transportadora do Sudeste S/A) e TAG (Transportadora Associada de Gás S/A), responsáveis por 70% do volume transportado no Brasil. Ambas foram 100% alienadas pela Petrobras em um processo de privatização que começou em 2017 e foi inteiramente concluído em 2021.
As tarifas atualmente vigentes foram estabelecidas no passado entre a Petrobras e suas subsidiárias, antes da regulação atual da ANP, sendo que a própria agência desconhece os critérios utilizados para estabelecer essas tarifas e suas Receitas Máximas Permitidas, que nunca foram revistas pela ANP, apesar do já mencionado artigo 19 da RANP 15/2014 e do próprio artigo 9° da Lei 14.134/2021, a Nova Lei do Gás.
Ano a ano, as duas transportadoras reajustam suas tarifas basicamente pelo IGPM-FGV, índice que na época mais severa da pandemia alcançou elevados patamares (23,14%, 17,78% e 5,45%, em 2020, 2021 e 2022, respectivamente), sem qualquer repasse de ganhos de eficiência previstos em boas regulações do setor.
Uma das justificativas para não examinar as tarifas destas transportadoras é a alegação de que é preciso manter as receitas garantidas nos termos do artigo 44 da Lei 14.134/2021 e que tais contratos foram firmados antes da regulação da ANP para o setor, definida em 2014, e que, portanto, a ANP só poderia atuar nos vencimentos dos contratos, sendo que uma parte deles começa a vencer em 2025 e a maioria somente na década de 2030.
Mas essa tese é inconsistente. A revisão tarifária é um dos pilares da regulação das concessões e permite que as tarifas reflitam a amortização parcial ou total de ativos que receberam investimentos há mais tempo – no caso, boa parte dos aludidos gasodutos de transporte foi construída na primeira década dos anos 2000.
Diferentemente da regulação do setor de distribuição de gás – no qual não há receita garantida, existe competição com outros energéticos e compromissos de investimentos pactuados com o poder concedente –, o setor de transporte de gás no Brasil tem funcionado como meros geradores de caixa, ou seja, decorre de uma fonte de receitas garantidas, com lucros crescentes, sem compromissos de investimento e sem competidores.
Senão, vejamos. As transportadoras têm receita assegurada com contratos legados, em parte até 2025 e em grande parte até 2030, com remuneração garantida e pela já mencionada Nova Lei do Gás. Os volumes garantidos de remuneração são muito superiores, até duas ou mais vezes aos efetivamente transportados anualmente, o que penaliza de fato todos os consumidores. Existe garantia de pagamento pela capacidade correspondente a 80% dos volumes contratados, independentemente do volume, de fato, transportado.
A NTS, por exemplo, recebe por volume correspondente a 158,2 milhões de metros cúbicos diários em cinco contratos com a Petrobras; em 2021 transportou, efetivamente, algo próximo de 45,5 milhões de metros cúbicos diários (28,8% do contratado). A TAG recebe por volume de 73,6 milhões de metros cúbicos diários em função de contratos com a Petrobras e transportou em média em 2021 somente 38,7 milhões de metros cúbicos diários (52,6% do contratado). Não há clareza nem previsibilidade de informações sobre a disponibilização de volumes firmes a serem descontratados pela Petrobras, dificultando a programação para novos agentes atuarem no mercado.
Não por acaso, os resultados financeiros divulgados pelas duas transportadoras têm sido excepcionais. Os demonstrativos financeiros disponíveis indicam que, em 2021, a TAG (primeira transportadora a ser 100% alienada pela Petrobras) obteve R$ 7,1 bilhões em receita líquida, com EBITDA (lucro antes de juros, impostos depreciação e amortização) de R$ 6 bilhões, o que corresponde a uma margem de 85% sobre a receita líquida (16% de incremento ante 2020), com lucro líquido de R$ 1,9 bilhão e R$ 2,1 bilhões de dividendos distribuídos para os acionistas. No mesmo ano, a NTS obteve um EBITDA de R$ 5,2 bilhões (crescimento de 22,2% em comparação com 2020), o que permitiu a distribuição de dividendos e juros sobre capital aos acionistas de R$ 2,7 bilhões. Sua receita operacional líquida foi de R$5,8 bilhões, o que significa que praticamente 90% da receita vira resultado.
É legítimo que as transportadoras desejem o rápido retorno de seus aportes quando da alienação desses ativos pela Petrobras, mas é forçoso reconhecer que, sem investimentos em projetos de expansão – ainda que facilitados pela Nova Lei do Gás ao instituir o regime de autorização –, esses negócios tornaram-se meramente geradores de caixa para os acionistas, sem que resultem em desenvolvimento estratégico para o país. Não bastam planos mirabolantes no papel, o mercado não precisa de publicização, mas de investimentos urgentes e reais na sua carente malha de transporte. E nesse estado letárgico as transportadoras buscam obter ativos já implantados pelas distribuidoras em vez de desenvolver os próprios, alegando eventual perda de receita. A migração de ativos de distribuição para a atividade de transporte, certamente, contribuiria para o aumento da tarifa dos usuários finais de gás canalizado.
Em um setor tão vital como o de infraestrutura, não só a indústria vem pagando 40% acima do que deveria na tarifa de transporte, em vista de existirem ativos já amortizados, mas, como vimos, o consumidor está pagando mais do que o volume efetivamente transportado nos dutos, o que mina a competitividade desse energético. A remuneração do investidor no setor de transporte é importante, mas a essência da privatização está na capacidade de investimento e de execução de projetos com a qualidade e a celeridade que o país precisa. Só assim se gera empregos, desenvolvimento e receitas novas.
É preciso enfrentar essa questão. O governo está buscando corretamente promover a reindustrialização do país, e o transporte de gás está indo na direção contrária, tirando a competitividade de um energético de transição limpo, eficiente e seguro.
Sugerimos uma urgente discussão no âmbito regulatório, resguardando a segurança jurídica, evidentemente, mas também com visão de mercado, modelo tarifário e preservando o interesse da sociedade.