Paulo Resende*
Três décadas atrás, o sistema ferroviário nacional apresentava um prejuízo de US$ 1 milhão por dia, com 80% de sua infraestrutura sem condições de uso e 85% de suas locomotivas e vagões obsoletos. Transferido para a gestão da iniciativa privada através de concessões, testemunhou-se uma lenta, mas contínua, recomposição da participação ferroviária na matriz de transporte, passando de 10% nos anos 2000, para os atuais cerca de 20%, se considerado o minério de ferro. Desde então esse modelo de gestão tem trazido vários benefícios para a eficiência logística em vários setores; mas ele também provoca distúrbios na relação com o poder público, sobretudo em ambiente de repactuações das concessões, e ainda mais tendo-se a oportunidade de alguma arrecadação não planejada.
Concomitantemente, o desenvolvimento da infraestrutura logística do Brasil voltou ao centro dos debates, agora impulsionado pelo anúncio do Novo PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) cujo contexto envolve as renovações das concessões ferroviárias – sendo que uma das mais aguardadas delas, a da FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), deverá ter andamento em breve. Quando vistos em conjunto, esses dois momentos podem descortinar um maior equilíbrio da matriz de transportes, tema que, embora urgente, caminhou muito lentamente desde que foram feitas as concessões ferroviárias na década de 1990. Obviamente, houve aumento significativo do volume de cargas transportadas sobre trilhos, mas o modal rodoviário ainda é esmagadoramente mais utilizado no país. Forma-se, assim, um ambiente no qual, mais do que falar sobre o aumento da malha ferroviária no Brasil, é preciso discutir qual o papel estratégico que se espera das ferrovias.
A resposta para a questão do papel estratégico que o Brasil espera de suas ferrovias está na compreensão da importância da relação infraestrutura/produtividade, onde se advoga que os investimentos em infraestrutura de transportes devem se alinhar às características integradoras de eixos econômicos, assentados em cinco vetores principais: a racionalização da atividade logística nas diversas regiões, com ordenamento do território a partir dos potenciais de produção e consumo; o fomento à multimodalidade, com o aproveitando máximo das vantagens de cada modal de transporte, valorizando as estruturas e redes atuais; a promoção de ganhos socioambientais, com a utilização das vantagens microrregionais e com redução dos impactos na emissão de poluentes; a busca permanente do desenvolvimento econômico regional, com geração de empregos e de criação de riqueza; e o aumento da competitividade das empresas e das regiões, onde o transporte sai de uma condição periférica para se constituir em elemento fundamental de manutenção da competitividade sustentada no longo prazo.
Nesse contexto, se a intenção parte de uma visão de mercado ampliada para gerar o aumento do portfólio de cargas transportadas por trens no Brasil, é preciso criar condições para que esse papel seja exercido. Do contrário, o ônus da atividade recairá apenas sobre a operadora ferroviária, que não terá como manter a sustentabilidade do seu negócio. Afinal, se a oferta de infraestrutura não corresponde ao sistema de atividades econômicas e dinâmicas de circulação de bens de determinada região, não há como o negócio prosperar. De forma ilustrada, seria como exigir que a Vale, em seu clássico modelo mina-ferrovia-porto, passasse a transportar contêineres entre seus fluxos de minério e derivados. Obviamente, isto seria um imenso despropósito, destruindo completamente o conceito de alinhamento entre as características do modal e o centro gerador de receitas que está diretamente relacionado com a natureza das cargas. Para ferrovias, a economia de escala e de distância são fundamentais para a formação da eficiência logística através do indicador de TKU (toneladas-quilômetros-úteis).
Também é preciso ter em mente que as ferrovias são instrumentos de ligação entre polos produtores e pontos de importação e de exportação de mercadorias. Ou seja, o sistema ferroviário tem que se desenvolver tendo em mente a integração com sistemas portuários. Hoje, o Brasil possui regiões com portos de alta capacidade, mas que estão se isolando cada vez mais, como é o caso de Aratu, localizado na Bahia. No Brasil e no mundo, para se justificar uma operação portuária de vulto, é preciso haver conexões com ferrovias e rodovias, pelo simples fato de que portos não são entidades que geram e consomem cargas. Aqui se aplica o conceito de coordenação e integração das cadeias de suprimentos e cadeias produtivas por macrorregião, fortalecendo arranjos produtivos de conectividade entre os corredores logísticos nacionais.
No entanto, e muito distante dos conceitos mundialmente aplicados, sobretudo em países de grande competência logística, o que se está vendo nas discussões de renovações antecipadas das concessões ferroviárias é um conjunto de visões estreitas, não estratégicas e, talvez, de curtíssimo prazo. Considerando os processos em curso, como a FCA, ou as já concluídas, como as da Rumo e MRS, as ferrovias vêm sendo tratadas equivocadamente como fontes de receita pública, onde a decisão de renovar ou não a concessão está atrelada aos valores de outorga ou à revisão do WACC, o custo médio ponderado do capital, entre outros conceitos financeiros ou contábeis. Ou seja, uma discussão muito distante do ambiente propício para o atingimento da racionalização da atividade logística pelo ordenamento do território a partir dos potenciais de produção e consumo, da redução dos custos operacionais, com geração de empregos e criação de riquezas, e do aumento da competitividade das empresas.
As renovações, inclusive, abrem oportunidade para um novo aproveitamento de trechos atualmente não operacionalizados pelas concessionárias. Essa possibilidade também faz parte de uma visão mais estratégica sobre as ferrovias. Isso porque dificilmente os Estados por onde passam trechos que já foram ou serão devolvidos ou não terão a concessão renovada irão dispor de recursos para tocar projetos ferroviário, que, como é de conhecimento geral, requerem a movimentação de grandes quantias. Caberia, então, ao governo criar um fundo de investimento no orçamento público para a gestão destes recursos, atuando como fomentador do desenvolvimento do Brasil pela utilização da infraestrutura de transportes como indutora do crescimento.
Olhares estratégicos precisam se voltar para evidências científicas como a vantagem comparativa de ferrovias e hidrovias que, em uma distância acima de 400 km para cargas de menor valor agregado e peso bruto mais alto, possuem capacidade de diluição de custos fixos através dos custos variáveis. Caminhões que alimentam pátios de transbordo ferroviário têm a perspectiva de ganhos cinco vezes maior do que caminhões que transportam algumas mercadorias em grandes distâncias. Fretes ferroviários em distâncias acima de 700 km têm a possibilidade de apresentar custos de transportes 30% abaixo dos rodoviários, somente pela possibilidade de consolidação de cargas. Finalmente, em uma perna logística composta de trechos rodoviários, transbordo, e trechos ferroviários com embarque portuário de longa distância, possui perspectivas de redução de fretes logísticos multimodais no Brasil é até 20% em relação aos hoje praticados. Isso significa US$ 3 bilhões em economia, comparado aos movimentos atuais.
Estamos diante de um cenário que abre grandes oportunidades, seja para as concessionárias envolvidas, para o governo, para a população e para todo o setor produtivo brasileiro. Vencer nossos gargalos logísticos significa destravar a economia e inserir o país definitivamente como grande potência exportadora e produtora de riquezas. Momentos cruciais como este têm de ser conduzido por critérios técnicos e visão estratégica da nossa cadeia logística, a fim de que os bons resultados possam ser colhidos.