Roberto Rockmann*
O diretor de Planejamento do ONS (Operador Nacional do Sistema), Alexandre Zucarato, diz que as oscilações de preços no mercado livre de energia são reflexo de como o atendimento à demanda no início da noite começa a ficar mais desafiador. “O preço está mostrando que, em dia de calorão, não está mais grátis fazer essa ponta do final do dia”, afirma.
A ponta máxima do sistema elétrico é no meio da tarde, mas é atendida pela GD (Geração Distribuída) Solar. Por volta das 19 horas, quando o sol não está mais no céu e as instalações fotovoltaicas passam a consumir energia, a demanda instantânea impacta a mobilização dos recursos despachados, que geralmente são mais caros. “Por isso se vê o preço ter subida”, afirma. A pressão será crescente.
Em 28 de setembro, em uma forte onda de calor, o PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), que passou meses no piso de R$ 69,04/MWh, subiu para o teto de R$ 620,95/MW naquela data. Em 31 de outubro, o PLD Horário saiu de R$ 69,04 às 15 horas e oscilou entre R$ 168 a R$ 187 entre 16 horas e 21 horas. Nesta semana, o país vive sob uma nova onda de calor.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Agência INFRA – No PEN (Plano da Operação Energética 2023-2027), vocês apontam que a fonte solar, seja centralizada ou descentralizada, deve elevar a participação de 14% para 24% nesses cinco anos. Como fica o desafio do ONS em operar nesse quadro com crescimento de fontes variáveis?
Alexandre Zucarato – A questão da participação maior ou menor de uma fonte é reflexo da competitividade relativa entre as outras e as decisões que os agentes tomam no âmbito empresarial. Há alguns impactos que estamos endereçando e que envolvem não apenas a energia solar, mas a geração que não é conectada de forma síncrona ao sistema. O apagão de 15 de agosto deixou muito claro para todo mundo que, se o ONS trabalhar com informação não fidedigna, a nossa capacidade de prognóstico e ação preventiva ficam muito limitadas. A gente não consegue saber como é que o sistema vai funcionar.
Em particular em relação à GD (Geração Distribuída) solar, a gente já vinha há bastante tempo trabalhando para mitigar um fenômeno chamado de desconexão em cascata. Esses aparelhos [de GD solar] não têm os requisitos de rede básica. Então, a gente trabalhou junto com o Inmetro e a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) para que os novos inversores já sejam capazes, por obrigação, de suportar perturbações na rede até determinado ponto e não se desconectar no sistema.
A maior descentralização da matriz, com a GD, está mudando o atendimento à carga? Como?
Começamos nesse Plano da Operação Energética a fazer o uso do conceito de carga global, que mostra a carga bruta, ou seja, inclusive considerando aquela que é atendida pela GD. Isso é um avanço importante, porque até o plano anterior poderia se passar a impressão de que a carga não está crescendo e de que a ponta da carga também não. Basicamente, usar a carga global permite a gente perceber que existe uma ponta do meio da tarde que está cada vez mais alta.
Qual é o horário de ponta?
Entre duas e quatro da tarde está a ponta de carga global. Quando a gente fez a implantação do conceito de carga global, nós mudamos os nossos recordes. Então a nossa ponta, que acho que estava em 92 GW e ficou parada nesse patamar por uns cinco ou seis anos, subiu para 97,6 GW, recorde batido em 26 de setembro, às 14h31.
E como fica o atendimento da carga nesse horário da tarde?
A geração solar centralizada e a GD atendem a essa ponta da tarde e basicamente sobra para os recursos centralizados atenderem a conta da noite. Durante a semana, tem impactos que dependem da temperatura e de quão claro está o céu.
Dia de temperatura elevada, possivelmente o céu está claro, nesse caso, a solar está contribuindo bastante, essa ponta não aparece para os recursos centralizados. Em um dia nublado a temperatura não está tão puxada também. Nesse caso, se não tem contribuição da solar, também não tem uma carga tão puxada para atender a demanda do ar-condicionado. Quando temos um dia após uma frente fria, o céu limpa e a temperatura cai, a carga fica no chão. Se a gente pegar domingo, nós já temos carga ao longo do dia menor do que na madrugada.
Tem acontecido na maioria dos dias um desafio crescente de rampear a demanda que começa a surgir no início da tarde e que vai até o início da noite. Todo dia a gente precisa fazer essa rampa. Por quê? A ponta do início da tarde é atendida por GD, porque tem sol. Quando não tem mais sol, entre 19 horas e 20 horas, as instalações de GD não geram mais e passam a consumir enquanto as pessoas chegam em casa, a carga então tem de ser atendida por fontes centralizadas.
E como é que vocês estão fazendo? O operador precisa de mais flexibilidade?
Hoje essa flexibilidade está sendo explorada pelo parque hidrelétrico, que ainda tem flexibilidade disponível, assim a gente ainda consegue fazer essa rampa predominantemente com geração hidrelétrica.
Em momentos favoráveis, quando o vento está literalmente soprando a nosso favor, o perfil de geração eólica também ajuda. Há uma contribuição importante da geração eólica. Todavia, ela não controlável. Aí, se a gente pega uma semana de calorão em que a geração eólica não está contribuindo tanto, a ponta da carga líquida, às 19h00, já começa a ficar desafiadora para ser atendida. E os recursos grátis para atender essa ponta já começam a não estar mais lá.
No caso das hidrelétricas, por exemplo, essa dificuldade de atender essa ponta no início da noite pode ocorrer porque elas podem ter alguma restrição?
Pode ocorrer por esgotamento do recurso hidráulico, lembrando que a gente usa o recurso hidráulico para fazer a reserva operativa. Então, quando a gente começa a perder a reserva operativa, a gente despacha, por exemplo, recurso térmico para recompor a reserva operativa. Ou também por indisponibilidade, porque as hidrelétricas estão aproveitando para fazer manutenção.
Há uma indisponibilidade recente no sistema, que é a saída das usinas nucleares. Isso está sendo acompanhado?
A gente está sem Angra 1 e 2 nesse momento. O que acontece? Pode precisar de recurso adicional para o atendimento a essa ponta de carga. Recentemente, houve oscilação de preços no mercado livre, o que trouxe inquietação para agentes. O Modelo Dessem (um dos que calculam o preço da energia no mercado livre) viu esse quadro. Para nós, não é nada de inesperado o preço dar esse pico no final da tarde, começo da noite. Isso deu alvoroço no mercado, uns disseram que o preço estava maluco. Não. O PLD horário entregou exatamente aquilo para o que ele foi pensado.
Desde 2021, quando ele foi implementado, ele não tinha tido condições de mostrar seu impacto. Ele está mostrando agora, por meio do sinal de preço, que em dia de calorão não está mais grátis fazer essa ponta do final do dia. A ponta máxima do sistema é no meio da tarde, mas é atendida pela GD. Por volta das 19 horas, a demanda instantânea alta impacta a mobilização dos recursos despachados. Por isso se vê o preço ter subida.
O Modelo Dessem, um dos modelos computacionais que calculam a energia no mercado livre, passou então a capturar nas últimas semanas essa mudança no perfil de carga e o atendimento a ela?
Sim, a despeito de a gente ainda não ter conseguido representar restrições no parque hidráulico que não estão corretamente representadas no desenho. Isso ocorre por uma limitação de modelagem que está sendo trabalhada já há alguns ciclos para o seu aperfeiçoamento, para que o Dessem consiga enxergar com mais precisão a disponibilidade do dessa flexibilidade hidráulica. Ele ainda superestima a flexibilidade do parque hidráulico.
Isso precisa ser corrigido, não?
Claro, assim como a individualização das usinas no New Wave (modelo de planejamento e operação do sistema e foi criado pelo Cepel). Se o modelo não captura restrição, a gente precisa atuar no pós Dessem para corrigir essa geração hidráulica.
No PEN 2023-2027, vocês ressaltam a necessidade de que os atributos das fontes sejam precificados diante da complexidade da operação. Por quê?
A gente tem que ter muito cuidado no uso do recurso estocado. Há um esforço de preservação dos estoques hídricos, seja para fins de atendimento do setor elétrico, mas também para fins de atendimento dos usos múltiplos das águas.
É um movimento que a ANA (Agência Nacional de Águas) vem fazendo, de certa forma, com o ONS, que são as regras operativas das bacias, que estabelecem gatilhos onde você tem limitações nas defluências à medida que o reservatório esvazia.
Isso impõe restrições onde você precisa fazer o uso mais parcimonioso dos reservatórios à medida que você faz uso deles. Ou seja, se o New Wave não for esperto o suficiente para dizer que o valor da água vai subindo à medida que você afunda no reservatório, para poupar o recurso energético armazenado pelos grandes reservatórios, uma restrição externa vai fazer seu trabalho.
Além da precificação de atributos, será preciso aprimorar o sistema de formação de preço para que o consumidor na ponta possa responder a momentos em que a operação se torna mais cara?
No Mercado Livre, o PLD governa essas coisas. Um bom PLD basicamente cria os sinais de preços necessários. No mercado cativo, sim, faz muito mais sentido você pensar em sistemas diferentes de tarifa ao consumidor final.
E aí tem o projeto de sandbox tarifário da ANEEL para discutir formas diferentes de tarifar o consumidor cativo. Agora, isso não atinge, por exemplo, aquelas coisas que vão aparecer depois da formação de preço, como serviços ancilares. Aliás, hoje, a principal questão de serviço ancilar na nossa pauta de maior urgência é o controle de reativos.
O que seria o controle de reativos?
É a famosa analogia da espuma do chope. Você tem a potência ativa, que é o chope, tem a espuma do chope, que é a potência reativa, necessária para o sistema funcionar corretamente. Bancos de reatores absorvem reativos, bancos de capacitores geram reativos para o sistema. Uma linha de transmissão altamente carregada se comporta como um reator. Pouco carregada se comporta como um capacitor. Na carga leve as linhas com menos carregamento começam a exportar potência reativa para o sistema, aí a tensão sobe. Precisamos absorver esse reativo em algum lugar.
Como você está aumentando o intercâmbio entre regiões e em alguns momentos do dia esse intercâmbio pode cair, podem-se ter mais oscilações? Por isso precisam desse controle?
O caso da perturbação de 15 de agosto é emblemático. Uma linha abriu, o fluxo foi para o caminho paralelo, que precisou de mais reativo para sustentar o fluxo. Nos nossos modelos, esse reativo vinha dos parques eólicos e solares da região. Só que na prática não vieram.
Aí você teve um colapso de tensão, porque, se você não supre o reativo, a tensão cai. Esse colapso de tensão gerou um efeito dominó. Então, hoje a gente tem, inclusive, em último recurso, lançado mão de abertura de linha de transmissão para fazer controle de reativo. Porque, quando você abre a linha de transmissão, se ela está pouco carregada, ela está exportando o reativo para o sistema.
Mas. ao fazer isso, a gente acaba, de certa forma, degradando a confiabilidade da rede, por diminuir os caminhos alternativos. Então, não é solução estrutural você controlar a tensão abrindo linha de transmissão. A gente está propondo com a ANEEL para explorar formas alternativas do fornecimento desse serviço ancilar em particular por meio de um sandbox. Esperamos testar isso no ano que vem.
MENSAGEM DO COLUNISTA
A coluna “Curto-Circuito” chega ao fim. De 16 de junho de 2021, quando a crise hídrica fez a palavra racionamento voltar ao noticiário, até essa segunda-feira foram mais de 150 textos. Retomei contatos, conheci novas pessoas e aprendi muito nesses pouco mais de dois anos e meio. Chegou a hora de descansar um pouco e refletir sobre o futuro. Obrigado a todos que ofereceram seu tempo para discutir e expor suas opiniões e também aos leitores, que tornaram a dinâmica muito mais rica. Agradeço à Leila Coimbra pelo espaço, pela liberdade, pelo respeito, pela paciência e nível de exigência.
Um abraço, Roberto Rockmann
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.