Roberto Rockmann*
Diretor de Planejamento do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) desde maio de 2020, Alexandre Zucarato afirma que os efeitos da “corrida de ouro” (pressa nos investimentos em renováveis para garantir os benefícios antes do seu fim) são visíveis na operação do sistema no norte de Minas Gerais, uma região importante por estar próxima a interligações entre o Sudeste e o Nordeste.
A nova capacidade de transmissão, licitada em leilão de junho e que atenderá a área, chegará em 2027 já esgotada, enquanto a geração antecipada está sendo feita com medidas paliativas, por meio de soluções de engenharia que permitem escoar com segurança até a transmissão estiver operacional.
“A solução de transmissão para 2027 é para viabilizar 10 GW (gigawatts). Até 2026, estamos com 11 GW de CUST [contratos de transmissão] assinados. O norte de Minas é o caso crítico da escassez de acesso. É um exemplo que mostra que o recurso está absurdamente escasso”, diz Zucarato, em entrevista à Agência iNFRA.
Leilões de margem de escoamento e leilão com reserva de potência que podem estimular a contratação de soluções de armazenamento deverão ser testados em 2023. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Agência INFRA – Você chegou ao ONS em maio de 2020 sob um contexto de corrida de ouro das renováveis, a ampliação do mercado livre, avanço da geração descentralizada e a mudança da lógica de contratação do mercado regulado para o livre. O leilão de margem de escoamento, que deve ter seu piloto realizado em 2023, aponta a mudança de paradigma?
Alexandre Zucarato – Quando se dependia de hidrelétrica e contrato no mercado regulado, os prazos se sincronizavam. Às vezes, a geração tinha um tempo mais longo que a transmissão [de construção]. Com o avanço das eólicas e solares, cujo prazo é mais curto e cuja competitividade independe da contratação do ambiente regulado, cria-se um impasse: a transmissão tem um ciclo de sete anos, enquanto a geração, de dois anos. Isso se soma ao processo de tomada de decisão descentralizada.
O cenário é permeado pelas corridas de ouro em busca de benefícios dados por legislações. Vale frisar que a questão brasileira não é isolada, outros países enfrentam dificuldade de acesso. A partir do momento em que o recurso fica escasso, fica difícil e economicamente ineficiente processar por fila. A alternativa é usar um processo competitivo. É uma mudança de paradigma.
A expectativa é de que esse piloto de leilão de escoamento seja lançado no próximo ano e que esse modelo possa se consolidar?
O Ministério de Minas e Energia está trabalhando para isso e para que as diretrizes sejam discutidas com todos os agentes.
Vocês trabalham em conjunto com a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) também em estudos para um leilão de contratação de reserva de potência que pode reunir soluções de armazenamento?
Sim, estamos apoiando. O leilão, que iria ser realizado neste ano com esse objetivo, foi postergado para 2023 para buscar alternativas e viabilizar diferentes tecnologias.
Seria o protótipo de um leilão de neutralidade tecnológica?
Acho que poderia ser colocado dessa forma. A gente sempre contratou a potência a partir de geração termelétrica. Se você me perguntar se não poderia usar na ponta bateria, usina reversível, hidrelétrica que tem espaço adicional que poderia receber mais máquina, eu te diria que parece que sim. Então por que não especificar o requisito desejado? As instituições estão alinhadas. Se a gente estabelece a tecnologia, pode se travar o desenvolvimento.
Esse leilão também cria um novo paradigma, certo?
O objetivo é especificar o requisito necessário e deixar a inovação propor as soluções. O desafio é estruturar isso para permitir possibilidades de armazenamento com termelétrica e aos poucos a gente ir avançando. Tem um desafio regulatório interessante, por exemplo, de como viabilizar a participação de hidrelétrica que poderia adicionar turbina em um espaço ocioso e como se faria a separação da potência do MRE (Mecanismo de Realocação de Energia). Tem uma complexidade a ser explorada.
Esse leilão pode ter soluções de renováveis com armazenamento?
Acho que devemos ver termelétricas competindo com soluções de armazenamento, que podem estar ou não embutidas com ativos de geração renovável.
Como está o desafio do planejamento da operação com a corrida de ouro? O norte de Minas Gerais é um exemplo desses desafios. Recentemente você até citou em evento público que havia medidas paliativas sendo adotadas por conta da dificuldade de acesso. Como é isso?
Essa questão do norte de Minas Gerais reflete os parques solares centralizados, de grande porte, que têm a ver com a corrida do acesso. Deixa contextualizar. Quando cheguei aqui em maio de 2020, a situação era de que não tinha mais capacidade de escoamento, olhando no futuro, para o norte de Minas.
Estávamos ainda na fase de informação de acesso, o documento preliminar em todo o processo de viabilidade da conexão do empreendimento. Um processo mais simples em que cada usina é avaliada individualmente. Com a informação do acesso, você vai ao ministério para obter a outorga e depois volta para pegar o parecer de acesso, que dá as condições terminativas do processo e que já corre em paralelo com outros empreendimentos e permite que em 90 dias seja assinado o CUST (Contrato de Uso do Sistema de Transmissão).
Em 2020, em relação à informação de acesso, já não havia mais capacidade de escoamento no norte de Minas para o horizonte pedido. Tivemos de fazer retenção das informações. Fizemos uma triangulação com o ministério e a EPE.
Criou-se uma solução estrutural para a região, que foi o leilão de transmissão de junho, que licitou linhas com mais de R$ 10 bilhões de investimento para reforçar aquela área.
Normalmente, a gente só considera no âmbito de estudos de acesso, soluções que já estão encaminhadas ou leiloadas, mas a situação era tão grave que, quando a EPE divulgou o primeiro relatório do estudo estrutural, nós incorporamos esses ativos do relatório e liberamos as informações de acesso que estavam retidas. E o ministério, preocupado, alertou que só seria feito o leilão se houvesse demanda suficiente para o acesso, materializada por contratos assinados.
Fez-se um pré-requisito para o leilão, então…
Se houvesse R$ 10 bilhões em investimentos, teria de ter uma demanda de 10 GW para serem escoados, para que não houvesse ociosidade. Antes de o leilão ocorrer, a gente já tinha batido isso. Esses acessos são pedidos antes da entrega dos ativos de transmissão, que é de 2027 e que foi a solução estrutural para o norte de Minas Gerais.
Só que aparece alguém batendo à porta aqui e dizendo que quer entrar em 2026. O que fazemos? Aí entra a medida paliativa. Quando o ONS enxerga uma solução estrutural no futuro, emitimos o parecer de acesso usando de várias técnicas de engenharia enquanto a solução definitiva não entra. Fazemos um Sistema Especial de Proteção, que é uma ponte para tentar escoar com alguma antecedência a geração. Aí se ele se esgota busca-se outra alternativa. Se for na carga pesada do verão, pode-se reduzir o tempo de programação dela e pode reduzir a geração.
As linhas de transmissão que entrarão em operação em 2027 terão quase capacidade esgotada?
A solução de transmissão para 2027 é para viabilizar 10 GW. Até 2026, estamos com 11 GW de CUST assinada. Então tudo que foi possível acomodar em geração comparado com a data da solução estrutural nós fizemos. Mas se chegou a um momento em que a solução estrutural de R$ 10 bilhões licitada em junho já está esgotada.
Quando ela entrar em operação daqui a cinco anos, iremos desativar as medidas operativas e eventuais restrições de escoamento que estão estabelecidas nos pareceres de acesso e com CUSTs assinados. Isso é um exemplo que mostra que o recurso está absurdamente escasso.
Então vai precisar se buscar uma nova solução para aquela região?
O estudo da transmissão é feito para atender à carga. A transmissão não é expandida para atender à geração. Como não se sabe se essa geração vai se expandir no norte de Minas Gerais mesmo ou no sul da Bahia ou outra localidade, um dos pontos a se ver é onde tem margem de escoamento. O processo competitivo pode ajudar nisso. O leilão de margem pode ajudar onde se pode acomodar e qual o preço que o investidor pode dispor e como a conta irá fechar para todas as pontas.
O norte de Minas explicita o desafio que a corrida de ouro trouxe, não?
É o caso crítico da escassez de acesso. O norte de Minas é onde está a interligação Nordeste e Sudeste. Não tem capacidade de escoamento nessa região no horizonte. A nova capacidade de transmissão chegará em 2027 esgotada, e a geração antecipada sendo feita com medidas paliativas, soluções de engenharia que permitem escoar com segurança até a medida estrutural.
Qual será a saída para a expansão da transmissão em Minas Gerais?
Discutem-se leilões para o ano que vem, podem ser R$ 50 bilhões em investimentos. Eles podem reforçar a interligação Sudeste e Nordeste e a ligação Norte-Sul. Um sistema de bipolo está em projeto e outro também poderá ser apresentado, que deverão ampliar o escoamento em mais de 28 GW.
Como alguns desses empreendimentos têm impacto sobre o norte de Minas e o sul da Bahia, eles podem abrir margem para a região e criar uma solução estrutural. Nós ainda não avaliamos porque nosso horizonte de estudos no Plano de Ampliações e Reforços [PAR] nas Instalações de Transmissão é de cinco anos. Estamos estudando agora 2023 a 2027. Essas obras a serem licitadas no próximo ano seriam além de 2028.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.