Sonegação não pesa apenas no fiscal, mas em toda sociedade

Marcelo Araújo*

Nesta virada de ano e de governo, entre as muitas notícias e atos, chama a atenção mais uma vez o destaque dispensado à prorrogação da isenção, ou não, dos impostos sobre combustíveis. O mesmo dilema de sempre divide os responsáveis pela política e pela economia de qualquer governo: se estendida a isenção, reduz-se a arrecadação aumentando o já contratado déficit fiscal; se não, os preços aumentam impactando a inflação com grande desgaste político. 

Como já abordado aqui em artigos anteriores (Política de preços de combustíveis: entendendo o dilema – Agência iNFRA (agenciainfra.com), trata-se de falso dilema com soluções estruturantes possíveis. Mas na questão fiscal em si, não podemos esquecer ainda de uma dimensão crítica, de alto impacto e com todas as variáveis a nosso alcance: o combate efetivo à sonegação e à fraude. 

Muito oportuna a divulgação recente pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) do anuário 2018-2022 sobre mercados ilícitos no estado de São Paulo. O estudo contabiliza no período prejuízos de R$ 114 bilhões em sonegação, contrabando, roubos, adulteração e falsificação em nove setores da economia. O maior valor anual da série foi em 2021, com R$ 24 bilhões, e é esperado algo próximo a R$ 26 bilhões em 2022, seguindo em pleno crescimento. Como comparação, todos os recursos destinados à segurança pública no orçamento de 2023 do estado, que será o maior da história, somam R$ 27 bilhões e poderiam ser quase totalmente financiados pelo combate a esse mercado irregular. 

Mercados ilícitos representam transferência ilegal de recursos dentro da sociedade. Ademais, a atração de agentes inidôneos e operadores ilegais para o mercado está diretamente associada ao crescimento da violência criminal, danos à saúde e ao meio ambiente, perda de postos de trabalho formais e perda substancial de arrecadação pelo erário.  

Não é um privilégio do setor de combustíveis a competição predatória e os malfeitos dos fraudadores e sonegadores. Mercados como tabaco, alimentos e bebidas, vestuário e até mesmo medicamentos, são perigosamente afetados. Mas, como se estimou em R$ 25 bilhões a prorrogação da isenção dos impostos sobre combustíveis, aqui a comparação é ainda mais nefasta aos cofres federais e estaduais. 

A FGV (Fundação Getulio Vargas) estima em todo o país R$ 14 bilhões anuais em perdas tributárias por sonegação e devedores contumazes e em R$ 15 bilhões as perdas operacionais com roubos e fraudes neste mercado. Os R$ 29 bilhões dessa soma de irregularidades se recuperados, facilmente cobririam o custo dessa prorrogação das isenções.

Segundo a FGV Energia, zerar a sonegação resultaria em redução de perdas de aproximadamente R$ 178 bilhões em 10 anos, ou de R$ 96,2 bilhões no caso de uma redução de 50%, considerando as projeções de crescimento médio de 2,5% ao ano para a economia, a partir de 2022.  Ainda segundo a FGV, apenas 1% dos recursos sonegados voltam aos cofres públicos.

Padecemos de maior coordenação entre os agentes públicos do Executivo e Legislativo federais e estaduais, juntamente com os agentes privados, para que as diversas iniciativas alcancem a eficácia desejada. É necessária uma abordagem mais holística, compreendendo quatro dimensões-chave: tributária, legal, fiscalização e comunicação. 

Na frente tributária, urge completarmos a simplificação tributária. A Lei 192/2022 e o recém-publicado Convênio CONFAZ 199/2022, que entra em vigor em 1º de abril de 2023, formarão um verdadeiro divisor de águas com a implementação da tributação monofásica, com alíquota única em todo o Brasil e específica por litro para combustíveis.  

Fecham-se inúmeras portas para malfeitos e reduz-se o custo de apuração, arrecadação e principalmente de fiscalização. Ao passo que aguardamos a celebração de convênio similar para a gasolina, resta ainda encontrar uma solução para o etanol hidratado. Este que, apesar de ser o combustível mais sonegado e fraudado, acabou ficando fora da Lei 192/22. 

Na dimensão legal, a principal iniciativa é o Projeto de Lei Complementar 164/2022, apresentado ao fim do ano pelo então senador Jean Paul Prates (PT-RN), hoje indicado para presidência da Petrobras, e que reúne avanços e debates que vêm desde o antigo PL 284 de 2017, caracterizando criminalmente devedores que se utilizam por anos e anos dos artifícios de não recolhimento de impostos, liminares, intermináveis discussões judiciais, refis e anistias, visando ganhar vantagem competitiva ou enriquecimento ilícito. 

O PL 164 distingue esses devedores contumazes do devedor eventual e traz diretrizes para que regimes especiais de tributação sejam estabelecidos, o que traria instrumentos para combater esse ilícito. 

Outra iniciativa legislativa relevante é o PL 8.455/2017, cujo texto inicial foi de autoria da ex-senadora e hoje ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, que foca no furto e roubo de combustíveis em dutos e instalações. Além do óbvio custo para a sociedade, esses roubos trazem um risco gigantesco para as comunidades dada a elevada periculosidade desses produtos se não adequadamente manuseados.

A fiscalização é outra frente crítica. Receitas federal e estaduais, ministério públicos e Procons estaduais, polícias rodoviária e federal, agências ANP, ANTT e ANTAQ e os ministérios da área econômica, infraestrutura e energia são os principais agentes públicos envolvidos. As grandes empresas do setor de produção e distribuição de combustíveis, com o apoio de diversas entidades setoriais como IBP, Abicom, Fecombustíveis, Sincopetro, Fiesp, Firjam, Inmetro, FGV, entre outras, criaram o ICL (Instituto Combustível Legal), com o objetivo de apoiar essas múltiplas autoridades com inteligência de mercado, conhecimento do campo e suporte legal. 

O projeto RACOM, Radar de Combustíveis, pretende seguir o fluxo físico e financeiro das operações com combustíveis no Brasil e assim identificar as fragilidades potenciais e os desvios que geram as principais irregularidades. 

Mas todas essas frentes de pouco adiantarão se persistir no Brasil uma cultura de aceitação tácita da sonegação e da fraude, talvez uma das grandes mazelas que impedem nosso desenvolvimento como sociedade e como país. Como muitos não pagam, os consumidores acabam por não se envolver e se responsabilizarem por comprar de forma mais consciente.

Assim, os arrecadadores terminam por aumentar a carga sobre os poucos que conseguem fiscalizar. É a chamada seleção adversa, onde se premia os agentes que agem contra as regras e pune os que as cumprem. É um círculo vicioso do qual precisamos nos libertar.

Daí a necessidade de se completar a abordagem das frentes anteriores, com uma ampla campanha de educação e comunicação que, se abraçada pelo Estado, não há dúvida que a comunidade empresarial irá aderir em massa. Os ganhos são inúmeros: redução dos custos de distribuição, melhoria das condições de fiscalização remota, aumento da arrecadação, bem como a eliminação dos riscos ambientais, sociais e econômicos.

Um novo ano, um novo governo, velhos desafios. É hora de tentar também uma nova abordagem. O Brasil pede e o Brasil pode. Cultura de sonegação e fraude não combina com crescimento e desenvolvimento. 

*Marcelo Araújo é diretor-executivo corporativo e de Participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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