Fábio Tieppo*, Matheus Aquino** e Priscila Wilhelm***
No Brasil, dos cerca de 75 mil quilômetros de rodovias federais, aproximadamente 86,5% – ou seja, quase 65 mil quilômetros – são mantidos pelo Poder Público1. Em que pese o notório sucateamento de grande parte da malha viária não concedida, o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), órgão responsável pela manutenção dessas estradas, possui recursos limitados e insuficientes para fazer frente aos investimentos necessários. Por isso, ainda é necessário o desenho de incentivos eficientes para atrair investimentos privados.
Os desafios para a concessão dos trechos mantidos pelo Poder Público
Desde a década de 90 já foram realizadas quatro etapas de concessões de rodovias federais. Os trechos concedidos até agora são os mais importantes, que possuem um significativo volume de tráfego e, consequentemente, um maior potencial de arrecadação.
Por sua vez, os trechos que não foram contemplados e que ainda estão sob a gestão do DNIT, embora ainda careçam de investimentos substanciais, dispõem de um volume de tráfego menor. Essa relação de reduzido fluxo de veículos e grande necessidade de investimentos dificulta a concessão de tais trechos, pois a rentabilidade dos projetos pode se mostrar pouco atraente para o investidor privado. Frente a esse quadro, devem ser discutidos modelos alternativos que auxiliem a expansão de investimentos nessas rodovias.
O modelo “filé com osso”
Com o objetivo de apresentar recomendações para o setor, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) publicou uma nota técnica2 intitulada “Melhores práticas em concessões rodoviárias”, na qual discute 12 temas relevantes, dentre eles o incentivo a investimentos privados e a desoneração do orçamento público. Uma das recomendações para rodovias “menos atraentes” é a utilização de um modelo de concessão com subsídios cruzados, também conhecido como modelo “filé com osso”.
O racional proposto consiste em licitar em um mesmo bloco rodovias atrativas e outras com pouco retorno potencial, tendo em vista o fluxo de veículos. Como consequência, os usuários da rodovia mais atrativa (com maior fluxo) pagariam uma tarifa maior em relação a um modelo sem esse mecanismo, e parte desses recursos seria usada como investimento para as rodovias menos atrativas (menor fluxo). Assim, uma porcentagem da tarifa arrecadada na rodovia mais atrativa subsidiaria os investimentos em rodovias menos rentáveis.
Subsídios cruzados – não existe almoço grátis
Subsídio cruzado é um mecanismo usado com frequência no desenho dos contratos de serviços públicos. Há exemplos da sua aplicação, no Brasil, em setores como o de telecomunicações, energia elétrica e saneamento. No caso do saneamento, por exemplo, para fazer frente a investimentos em diversas regiões de um município, alguns usuários pagam tarifas mais elevadas que o necessário para cobrir os próprios custos, gerando receita suficiente para permitir o investimento em outras regiões. Desse modo, em localidades que demandam maiores investimentos, o valor pago pelo usuário torna-se inferior ao seu custo de atendimento.
Tal situação é semelhante ao caso dos cinemas e da “meia entrada” – os clientes que compram a “inteira” acabam pagando um ticket maior do que o fariam se tal mecanismo não existisse. Isto é, a conta total é a mesma, mas para que alguns paguem menos, outros pagam mais. É o que decorre da máxima de que “não existe almoço grátis” – alguém sempre vai pagar a conta.
Aplicado ao setor de rodovias, o modelo “filé com osso” implicaria a mudança do grupo onerado pelas obras nas estradas. Em outras palavras, sob a gestão do DNIT, as obras são realizadas pela União e pagas pelo contribuinte, portanto o custo é pago por toda a sociedade, inclusive aqueles que não usufruem desses trechos.
Em rodovias concedidas atualmente, os investimentos realizados são financiados pelos próprios usuários da rodovia em questão. Na presença de subsídios cruzados, porém, os usuários do trecho de maior volume pagariam por parte das benfeitorias na rodovia menos viável.
Consequências do modelo proposto pela ANTT
Embora os usuários das rodovias de maior fluxo tenham que pagar mais, algumas justificativas econômicas podem embasar a adoção de subsídios cruzados. No jargão econômico, pode-se dizer que as alterações das condições de rodovias que hoje são geridas pelo DNIT irão gerar externalidades para toda a economia.
Os efeitos e suas magnitudes dependerão de cada caso, mas, em geral, a realização de investimentos em estradas hoje precarizadas pode, por exemplo, reduzir o risco de acidentes, que geram uma sobrecarga no sistema público de saúde, o qual é financiado por todos os contribuintes. A melhora na segurança e qualidade das estradas pode beneficiar os usuários e tornar mais atrativas rotas paralelas que atualmente possuem fluxos reduzidos. Além disso, estradas com maior qualidade fazem com que os veículos que nelas transitam gastem menos combustível e, consequentemente, emitam menos poluentes.
Por outro lado, podem existir externalidades negativas. Como a tarifa de pedágio praticada nas rodovias de maior movimento aumentará, o frete de transporte rodoviário dessas vias também será impactado, gerando um efeito na cadeia produtiva. Tal externalidade deve ser sopesada com os eventuais benefícios e os efeitos deverão ser analisados caso a caso.
O exemplo do Rio Grande do Sul
Há ainda um fator político relevante na decisão de adotar subsídios cruzados. O grupo onerado pelo mecanismo pode oferecer resistência diante dos preços mais altos. Nesse sentido, o próprio setor de rodovias apresenta exemplos desse comportamento.
Na década de 90, o governo do Rio Grande do Sul adotou o referido modelo “filé com osso” para as concessões rodoviárias sob sua gestão. Ele estabelecia prazos de concessão relativamente curtos (15 anos) e previa a criação de “polos” que dividiam a região do estado, incluindo no mesmo grupo trechos com tráfego elevado e outros pouco atrativos. Como resultado, as propostas ganhadoras naturalmente apresentaram altas tarifas de pedágio.
Em um primeiro momento foi constatada insatisfação geral por parte dos usuários. Posteriormente, grande parte dessas concessões enfrentaram problemas que acarretaram demandas judicializadas, os quais, em alguns casos, se estendem até hoje. Por fim, o encerramento de algumas praças foi celebrado com direito a “buzinaço” em ato que contou com a participação do então governador do estado.
O dilema do Poder Público
Assim como qualquer outra política pública, a adoção do modelo “filé com osso” implica tradeoffs que impactam diversos grupos de interesse. É necessário que a sua aplicação, nos casos concretos, seja feita considerando um planejamento adequado, com base em estudos sólidos e transparentes, também contando com a participação da sociedade, sob pena de gerar futuras resistências que poderão comprometer a execução do contrato nos moldes desejados.
Nas palavras de William J. Miller, ex-congressista norte-americano, “não existem rodovias grátis no mundo, há apenas diferentes modos de pagá-las”.