Maurício Portugal Ribeiro*
Não é novidade no Brasil órgãos de controle da Administração Pública desbordarem da sua atividade de análise da conformidade legal dos atos e adotarem decisões que adentram na esfera de competência do gestor público. Nos setores de infraestrutura, isso é responsável por atrasos na realização de investimentos que são essenciais para o desenvolvimento do país.
A mais recente manifestação dessa tendência é o parecer (“Parecer”) emitido pela 4ª Diretoria da SeinfraRodoviaAviação (“Seinfra”) sobre a modelagem da concessão da RIS – Rodovias de Integração do Sul, que abrange trechos das seguintes rodovias: BR-101/RS, BR-290/RS, BR-386/RS e BR-448/RS. Ele veio a público algumas semanas atrás com a publicação da análise da Agência Infra e posteriormente em reportagem do jornal o Estado de São Paulo. A RIS é a primeira concessão de rodovia federal modelada no Governo Temer. Os estudos submetidos à área técnica do TCU foram desenvolvidos por meio de Processo de Manifestação de Interesse conduzido pelo Ministério dos Transportes e pela EPL – Empresa de Planejamento e Logística, com participação da Secretaria do PPI – Programa de Parcerias de Investimentos e protocolada junto ao TCU pela ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres, que é o órgão competente para realizar a licitação.
O Parecer da unidade técnica sugere ao Plenário do TCU realizar 33 determinações à ANTT. Várias delas buscam restringir ou eliminar mecanismos que viabilizam a flexibilidade do contrato de concessão, como por exemplo: (1) suprimir ou restringir drasticamente a possibilidade de inclusão e exclusão de investimentos durante a vigência do contrato; (2) alterar o sistema de reequilíbrio econômico-financeiro utilizado para realização dessas exclusões e inclusões; (3) suprimir ou restringir drasticamente a possibilidade de aumento do prazo do contrato para reequilibra-lo pela inclusão de novos investimentos, e (4) suprimir a atribuição de risco de expansão de capacidade da rodovia ao poder público, que é um instrumento para permitir ao poder público escolher no futuro qual a melhor forma de fazer o investimento em expansão de capacidade na rodovia, o que é tipicamente utilizado em casos como o da RIS em que os estudos de demanda demostram que expansões de capacidade relevantes terão que ser feitas vários anos após a assinatura do contrato.
Pretendo centrar a minha análise do Parecer na narrativa que baseia as determinações sobre os temas acima elencados, não apenas porque a flexibilidade é essencial em contratos com duração de 20, 30 anos, mas, particularmente, pelos elementos infamantes contidos nessa narrativa, que aparentemente buscam justificar maior intrusão da Seinfra nas competências da ANTT.
Aliás, a lição de que contratos de concessão excessivamente rígidos conduzem a problemas de difícil solução já devia ter sido aprendida pelos técnicos do TCU. Um dos principais erros dos contratos de concessão de rodovias federais licitados ao longo do Governo Dilma foi a rigidez da exigência de investimentos em duplicação dessas rodovias nos primeiros 5 anos de contrato. O Governo, a ANTT e os concessionários continuam se esforçando para encontrar uma solução satisfatória para as consequências dessa rigidez contratual, de maneira a viabilizar a continuidade dos serviços que estará ameaçada em várias concessões se a reprogramação dos investimentos não for realizada.
A leitura do Parecer deixa claro que a Seinfra crê que a ANTT e os demais órgãos de Governo responsáveis pela modelagem das concessões estão capturados pelos concessionários. Na narrativa da Seinfra, a ANTT tolera o inadimplemento ou a exclusão de “obras baratas” (aquelas que estavam previstas no contrato originário e cujo preço foi, por isso, submetido a licitação) para substituí-las por “obras caras”, com preços supostamente muito acima do de mercado. E essas atividades, realizadas em suposto conluio entre a ANTT e os concessionários – apesar dos esforços do TCU no sentido contrário – resultam no aumento de ganhos dos concessionários. No caso da RIS, as “obras caras” seriam incluídas no contrato por meio de reequilíbrio pelo fluxo de caixa marginal, que é uma metodologia que precifica as obras usando o Novo SICRO, um sistema de preços desenvolvido pela FGV – Fundação Getúlio Vargas para o Governo.
A prova da ocorrência dessa conspiração trazida pela Seinfra é bastante superficial. Em relação aos inadimplementos contratuais, a Seinfra lista como evidência obras não realizadas nas concessões rodoviárias em operação, sem, contudo, distinguir a razão porque essas obras não foram executadas. Como é de conhecimento comum, obras podem deixar de ser executadas pelos mais diversos motivos, entre outros: (a) não obtenção das licenças pelo Poder Público ou pelo concessionário, (b) não emissão do decreto de declaração de utilidade pública para desapropriação, (c) não haver necessidade da obra, por exemplo, porque o crescimento de demanda esperado não se realizou, caso em que é comum a agência reguladora determinar o atraso da obra e reequilíbrio do contrato em favor do usuário, (d) ocorrência de eventos de caso fortuito ou força maior. Enfim, há diversas razões para que obras previstas em um contrato de concessão não sejam executadas no prazo esperado sem que haja nisso qualquer ilicitude ou irregularidade. Não há no Parecer qualquer dado que mostre que a inexecução das obras listadas foi irregular.
Além disso, para provar os supostos ganhos dos concessionários com esse “esquema”, o único dado apresentado pela Seinfra é o aumento do preço do pedágio acima da inflação. O aumento da tarifa acima da inflação sinaliza apenas que ocorreram eventos que geraram custos para o concessionário e que, pelo contrato de concessão ou por lei, o risco desses custos estava alocado ao poder concedente. Para compensar o concessionário por ter arcado com custos que são de responsabilidade do poder concedente, a agência reguladora aumenta a tarifa. Nessas circunstâncias, o concessionário só teria ganhos indevidos se (i) o evento causador do sobrecusto do concessionário não tiver se realizado; ou (ii) o mecanismo de compensação previsto no contrato fosse inadequado, ou indevidamente aplicado. Mas o Parecer simplesmente não faz essas análises.
Com o intuito de inviabilizar o uso dos mecanismos que dão flexibilidade ao contrato, a Seinfra ataca a utilização do fluxo de caixa marginal para inclusão de novos investimentos nos contratos e o Fator D como instrumento para exclusão dos investimentos.
O Parecer sustenta que o reequilíbrio por fluxo de caixa marginal é uma forma de regulação por custos e que, por isso, o seu uso seria proibido pela Lei Federal de Concessões. A Lei Federal de Concessões, contudo, expressa uma preferência (não uma exigência) pelo uso da regulação por preço de serviço (em lugar da regulação por custo). Fui certamente um dos poucos autores a escrever sobre essa preferência. Sustentei que sistemas de regulação por custo que garantam taxa de retorno ou margem para os concessionários deveriam ser eliminados em face desse dispositivo legal. Mas o reequilíbrio por fluxo de caixa marginal não garante isso. Não há repasse do custo efetivo das obras feitas pelo concessionário para o usuário. O preço das obras eventualmente incluídas no contrato é definido com base no sistema SICRO, cuja versão atual, como mencionei acima, foi elaborada pela FGV. Se as obras custarem mais que o definido pelo SICRO, o concessionário não pode pedir aumento de tarifa por essa razão.
Note-se que o TCU já se pronunciou no passado a favor do uso do fluxo de caixa marginal para reequilíbrio de contratos pela inclusão de novos investimentos. Sobre isso, vide a resposta do TCU à consulta TC 032.304/2012-9, de relatoria do Ministro José Mucio. Portanto, pode-se dizer que o TCU foi partícipe da decisão que levou à utilização do fluxo de caixa marginal no caso da RIS.
Vale observar que, se a tese da Seinfra de que a regulação por custos é ilícita for acolhida pelo Plenário do TCU, todo o trabalho de regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL na área de distribuição de energia deverá ser considerado ilícito. É que a ANEEL faz nesse setor uma regulação por incentivos baseada em custos. Aliás, a unidade técnica do TCU que acompanha a atividade da ANEEL nunca cogitou de considerar essa atividade ilícita em face da Lei Federal de Concessões.
Por fim, o que me parece mais grave no Parecer é que, ao adotar essa narrativa que os órgãos e entidades de Governo estão capturados, a Seinfra elimina qualquer possibilidade de discussão técnica com eles: tudo que for produzido por esses órgãos e entidades estará contaminado por essa captura e não será devidamente considerado pelos controladores. Essa desconfiança entre o controlador e a gestão tornará ainda mais difícil o país dar cabo dos investimentos federais em infraestrutura de transportes que são indispensáveis para o seu desenvolvimento.
O Ministro do TCU Bruno Dantas publicou recentemente um artigo falando do risco de, no controle de eficiência dos atos públicos, o controlador infantilizar a Administração Pública. O que se vê nesse caso é muito pior: é a eliminação pelo controlador do seu interlocutor pela desmoralização e difamação, sem qualquer lastro em evidências concretas.
Mas ainda há esperança: trata-se apenas de um parecer de uma unidade técnica que pode ser acolhido ou não pelos Ministros do TCU. E o Ministro Bruno Dantas será o relator do caso perante o plenário. Oxalá prevaleça a lucidez sobre as ilusões conspiratórias. E a autocontenção sobre o voluntarismo.