Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Um projeto complexo, com estruturação inédita para o setor de rodovias, realizado num momento econômico pouco favorável, indicava resultados iguais ou até piores que os vistos no país nesse setor nos últimos anos: baixa ou nenhuma competição pelo ativo.
Mas o leilão do Rodoanel Norte de São Paulo, realizado no mês passado pelo governo do estado, seguiu por um caminho diferente e apresentou forte disputa entre quatro grupos empresariais, o que proporcionou ofertas agressivas, em duas etapas de disputa, trazendo uma nova empresa para o mercado.
A modelagem do projeto é um dos exemplos tomados pelo Ministério dos Transportes em estudos para desenvolver o desenvolvimento de modelos de parcerias com a iniciativa privada com uso de recursos públicos em aportes no início dos contratos, como noticiou o iNFRANotícias – Transportes e Regulação nesta segunda-feira (24).
A advogada Letícia Queiroz Maluf, sócia do Queiroz Maluf Advogados Associados, que trabalhou na estruturação do projeto para o consórcio vencedor, a Via Appia Fundo de Investimentos em Participações Infraestrutura, controlada pela grupo Starboard, não tem dúvida em apontar que a segurança jurídica proporcionada pelo contrato, com o endereçamento dos principais riscos, foi a responsável pela atração de empresas para a disputa.
“O tratamento dos riscos foi cuidadoso. Quando o risco é identificado e bem tratado num contrato, ele tende a atrair players desse perfil específico”, disse a advogada. “É uma lição que fica.”
Histórico
A obra do Rodoanel Norte se alonga há mais de uma década. Em 2017, o governo estadual planejou seu término por meio de um modelo de concessão comum em que a conclusão das obras ficariam a cargo do poder público e o concessionário assumiria após a conclusão. Denúncias de corrupção nas obras fizeram com que elas fossem paralisadas e a concessão acabou não sendo concluída. Um histórico do projeto pode ser visto neste site.
O projeto voltou para estruturação, para a qual foi contratado o IFC (International Finance Corporation), ainda no modelo de concessão. Mas após uma consulta pública lançada em 2021 com uma proposta nesse modelo, ficou claro para a equipe do governo paulista, reunida na Secretaria de Parcerias local, que o projeto deveria ter um tratamento diferente de qualquer modelo que vinha sendo usado.
O principal problema eram as obras paralisadas. A estimativa é que 80% estejam concluídas, mas, dos seis lotes, alguns avançaram a perto de 100% e outros estão mais próximos do zero. Os projetos são antigos e foram feitos por diferentes empreiteiras, o que torna a conclusão da obra o principal risco.
Solução
A solução dada foi trabalhar numa PPP (Parceria Público-Privada) com aporte público para a conclusão das obras e fazer uma espécie de segregação deste momento do restante do contrato. Essa segregação, explica Letícia Queiroz, criou regras específicas para garantir a conclusão da obra, em caso de necessidade de reequilíbrio de contrato se a situação encontrada pelo vencedor for diferente da apresentada no edital.
O governo do estado está garantindo um reequilíbrio imediato até um certo percentual a mais do valor estimado para a conclusão, que terá um novo projeto executivo. Esse novo projeto vai vir certificado, para facilitar a avaliação por parte do poder concedente.
Caso o percentual fique acima, um dispute board com poder de decisão vinculante vai decidir o valor do reequilíbrio e há a opção até mesmo de a vencedora sair do contrato em caso de não haver acordo. Caso haja acordo, foram estabelecidas regras para que os aportes não atrasem, para evitar que as obras sejam paralisadas ou percam ritmo.
Risco de demanda
O segundo risco elevado identificado nas conversas com o mercado foi o de demanda, já que é um projeto greenfield e que depende de fatores fora do controle da concessionária para garantir a demanda, como o impedimento da prefeitura de São Paulo de trânsito de caminhões pelas marginais, um caminho mais curto para atravessar a cidade.
Por isso, a decisão dos agentes públicos que estavam estruturando o projeto foi abandonar uma premissa das concessões rodoviárias no estado de não garantir demanda e criar um formato de contraprestação garantida em caso de a quantidade de veículos não chegar ao mínimo estimado. Por meio de uma conta específica, os excedentes de arrecadação para além de um teto estipulado serão capturados para balancear os momentos de baixo fluxo.
Letícia Queiroz também lembra que o governo estadual decidiu assumir o risco do uso do free flow, um modelo de cobrança de pedágio em início de implementação e que tem regras ainda frágeis de enforcement para a cobrança, o que foi mais um elemento de segurança para atrair os investidores.
Mas, mesmo com todas as inovações, o projeto para tentar concluir os 44 quilômetros de rodovias que vão finalmente fechar um anel viário ao redor da mais populosa capital do país, após mais de três décadas de obras, esteve ameaçado em 2022.
Desafio
Em janeiro do ano passado, o edital foi lançado, mas as empresas indicaram que não haveria concorrentes. O novo desafio agora surgiu por causa da pandemia da Covid-19, que elevou fortemente os custos de insumos e de capital para a realização de investimentos, levando a uma avaliação de que, com os parâmetros da proposta, o projeto tinha se tornado inviável.
O edital foi novamente retirado para estudos, que indicaram que era necessário não rever a modelagem, mas aprofundar as inovações, dando ainda mais dispositivos para garantir o fluxo financeiro, por exemplo. E fazer as atualizações da data-base do projeto – o que torna os preços mais próximos da realidade – e da taxa de retorno.
As mudanças levaram à atração de mais grupos do que os que avaliavam a primeira modelagem, mas o prazo de 150 dias entre o lançamento do edital e a licitação, pedido pelos licitantes para preparar uma proposta, tinha um problema político: a licitação cairia em janeiro de 2023, já com um novo governo eleito.
Segundo apurou a Agência iNFRA, com a troca do comando político do estado após a vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) nas eleições de outubro, o projeto foi apresentado aos responsáveis pela área de concessões, que determinaram pela continuidade.
Tarcísio repetiu assim a estratégia de continuidade dos projetos que eram estruturados por gestões anteriores, como fez ao assumir o Ministério da Infraestrutura em 2019 e realizar o leilão da Ferrovia Norte-Sul ainda em janeiro daquele ano, sem alterar a proposta já apresentada. Nos dois casos, o resultado foram as primeiras batidas de martelo das gestões.