José Augusto Valente*
Os sistemas de trens metropolitanos brasileiros enfrentam uma crise estrutural que exige respostas urgentes. Sob o modelo atual, a concessão baseada na venda do fluxo de caixa –alimentado majoritariamente pelas tarifas pagas por usuários de baixa renda – tem se mostrado insustentável. O caso da falência da SuperVia, no Rio de Janeiro, é emblemático: enquanto milhões de pessoas suportam um transporte caro e ineficiente, o discurso neoliberal continua a priorizar o “apetite dos investidores” em detrimento da qualidade do serviço público. Essa realidade aponta para uma contradição central do modelo de estado mínimo aplicado a serviços essenciais: a gestão privada de um sistema público, sem garantias efetivas de controle social.
O dilema não é uma questão ideológica entre esquerda e direita. Países capitalistas desenvolvidos, como Suíça, Reino Unido e Alemanha, demonstram que é possível conciliar eficiência operacional com justiça social por meio de modelos de gestão pública compartilhada, em parceria com entes privados, mas sempre sob rigoroso controle estatal e social. Nesses casos, subsídios públicos garantem tarifas acessíveis, enquanto a governança integrada entre os níveis federal, estadual e municipal assegura eficiência e qualidade.
Na Suíça, por exemplo, o transporte ferroviário é gerido pela empresa estatal SBB, que opera sob contratos de serviço renováveis com o governo federal e recebe fundos de infraestrutura dos cantões. No Reino Unido, a Network Rail, entidade pública, gerencia a infraestrutura com subsídios substanciais do governo federal. Na Alemanha, a Deutsche Bahn supervisiona a maior parte do sistema ferroviário, complementada por redes regionais geridas em parceria com estados e municípios. Em todos esses casos, as tarifas são parcialmente subsidiadas, com foco na acessibilidade e segurança.
Esses modelos reforçam a viabilidade de um sistema de mobilidade fundamentado no compartilhamento de responsabilidades entre os diferentes níveis de governo e no financiamento público consistente. No Brasil, o SUM (Sistema Único de Mobilidade), atualmente em tramitação via PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 25/2023, pode ser o caminho para uma mudança estrutural. Inspirado nos sistemas de saúde e educação, o SUM propõe a criação de um fundo nacional de infraestrutura ferroviária, alimentado por recursos federais, estaduais e municipais. Esse fundo financiaria não apenas a operação e manutenção das redes, mas também sua modernização e expansão.
Além disso, a política tarifária deve ser reformulada. O peso financeiro sobre os usuários pode ser aliviado por subsídios cruzados, combinando receitas tarifárias com aportes públicos. Essa medida não só democratizaria o acesso ao transporte, mas também fomentaria o desenvolvimento social e econômico regional, especialmente em áreas metropolitanas onde a mobilidade é um fator crítico para a qualidade de vida.
Outra premissa fundamental é a coordenação intergovernamental. A definição clara de papéis e responsabilidades entre União, estados e municípios é imprescindível para assegurar a integração e eficiência do sistema. Modelos descentralizados, com gestão compartilhada e controle social, podem atender às especificidades regionais sem comprometer a visão nacional de um sistema ferroviário robusto e coeso.
Em última instância, o debate sobre a mobilidade urbana transcende ideologias. A busca por um transporte ferroviário eficiente, acessível e de qualidade deve ser um consenso em uma sociedade que almeja maior equidade e desenvolvimento sustentável. É hora de olhar para exemplos internacionais e adaptar soluções que dialoguem com a realidade brasileira, superando falsas contradições ideológicas e priorizando o que realmente importa: o direito à mobilidade digna para todos.
* José Augusto Valente é membro da Divisão Técnica de Transporte e Logística do Clube de Engenharia. Foi secretário de Política Nacional de Transportes e Presidente do DER-RJ.
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