Ana Chagas* e Roberta Aronne**
A dependência do setor de transportes de combustíveis fósseis consolidou-se no Brasil em decorrência do investimento histórico na construção de estradas, em detrimento de modais mais eficientes, como ferrovias e hidrovias. Tal concentração no modal rodoviário legou-nos uma série de desafios de transição energética e alguns caminhos de descarbonização.
O setor de transportes responde por cerca de 33% das emissões totais de GEEs (Gases de Efeito Estufa) do país. O transporte rodoviário contribui com 71% desse total, o que evidencia a necessidade urgente de fazermos uma transição energética setorial.
Como o diesel é a principal fonte de emissões, a sua substituição por alternativas renováveis torna-se essencial, considerando que a frota de caminhões que usa esse combustível representa cerca de 43% da demanda energética do setor de transporte. Mesmo com o desenvolvimento tecnológico e os incentivos para o uso de combustíveis mais limpos, a sua substituição em larga escala enfrenta barreiras difíceis de serem superadas, seja pelo alto custo, seja pelas limitações logísticas e tecnológicas. Além disso, o fato de o Brasil depender do transporte rodoviário para o escoamento de sua produção agrícola e industrial retarda o processo de substituição e sustenta a demanda energética fóssil.
O uso de biodiesel de soja pode reduzir em até 72% as emissões de GEEs, conforme indicam estudos. O paulatino aumento da mistura obrigatória de biodiesel ao óleo diesel nos últimos anos vem fazendo avançar a substituição. Segundo a Resenha Energética Brasileira 2024, com dados de 2023, houve um crescimento de 19,2% do consumo de biodiesel no setor de transporte. Não é coincidência que, em abril de 2023, a porcentagem de mistura mínima do biocombustível tenha aumentado para 12%. Atualmente, o mandato é de 14%, sendo prevista a progressão para 20% até 2030, com a recente sanção da Lei do Combustível do Futuro (Lei nº 14.993/24).
A eletrificação dos veículos rodoviários é frequentemente apontada como uma solução para reduzir as emissões no setor. Entretanto, essa opção não é livre de obstáculos. Embora haja incentivos, como isenção de impostos em alguns lugares (a exemplo do Distrito Federal e Rio Grande do Sul), e a promoção de projetos-piloto em cidades maiores, a eletrificação continua longe de se tornar realidade em grande parte do Brasil. O transporte de passageiros, especialmente em áreas urbanas, tem apresentado um ritmo de adoção mais acelerado, mas, no transporte de cargas, a introdução de veículos elétricos caminha lentamente.
Isso porque as opções elétricas viáveis para veículos pesados, como os caminhões, são limitadas por diversos motivos: elevado custo de aquisição; inexistência de uma cadeia produtiva nacional de baterias e componentes; falta de infraestrutura de recarga em rodovias; e limitação ocasionada pela baixa eficiência das baterias em relação ao desempenho exigido por veículos de maior peso. Esses entraves afetam menos os veículos leves, que vêm crescendo expressivamente no mercado.
É preciso considerar ainda que, mesmo com a preponderância da fonte hidrelétrica na matriz elétrica brasileira (61,9% de toda a geração em 2022), o avanço das mudanças climáticas e da escassez hídrica exige o acionamento mais frequente das usinas termelétricas a óleo diesel, carvão ou gás natural. Assim, na ocorrência de uma retração da geração hidrelétrica, a eletromobilidade por si só não seria suficiente para enfrentar a questão da descarbonização dos transportes, já que as baterias dos caminhões seriam abastecidas por energia de fontes não renováveis e poluentes.
Nessa perspectiva, é fundamental o fortalecimento de soluções de geração de energia renovável, como a fotovoltaica e eólica, aliadas a sistemas de armazenamento, biomassa ou por hidrogênio de baixa emissão de carbono. Isso somente se viabilizará na medida em que existam regras claras, dos pontos de vista legal e regulatório, sobre a remuneração do investidor, alocação adequada de riscos externos ao projeto e ampliação da capacidade de transmissão da energia gerada em locais distantes dos centros de consumo. Um ambiente regulatório fértil para o desenvolvimento de novas práticas e tecnologias no mercado de geração é essencial para estruturar o avanço da eletromobilidade de modo proveitoso à transição energética.
Além da eletrificação, a descarbonização dos transportes tem de se basear em duas vias convergentes: o potencial local de produção de biocombustíveis e a diversificação do modal de transportes. O Brasil tem aproveitado de forma bastante inovadora seus recursos naturais para desenvolver uma sólida indústria de biocombustíveis. O etanol e o biodiesel são exemplos disso. Graças a políticas públicas, como o RenovaBio, a participação dos biocombustíveis na matriz energética do transporte já é relevante, representando cerca de 22% do total.
O PDE (Plano Decenal de Expansão de Energia) 2034 prevê a ampliação do papel dos biocombustíveis. O etanol continuará sendo uma alternativa viável para a frota de veículos leves, já que 80% da frota nacional de carros é constituída por carros “flex”, que operaram com altos níveis de mistura de etanol. Por outro lado, a substituição do diesel seguirá desafiadora, especialmente no transporte de cargas, tendo em vista que o óleo combustível é responsável por cerca de 43% da demanda energética do setor. Caminhões movidos a diesel continuarão a ser a principal escolha nas próximas décadas.
Entretanto, soluções híbridas e o uso de GNL começam a ganhar terreno. O biometano tem grande potencial para substituição do gás natural, e uma das razões é a abundância de sua matéria-prima: resíduos orgânicos de atividades agropecuárias podem ser utilizados para produzir o biogás, que, purificado, resulta no biometano. O processamento dos resíduos também é eficaz na mitigação da emissão de GEEs, uma vez que parte de seu processo produtivo envolve a captação de metano emitido na atmosfera.
Versátil, o biometano pode ser comercializado como gás comprimido ou na forma líquida, como o gás liquefeito, e ao se fazer a análise do seu ciclo de vida, ele possui pegada de carbono negativa.
Apesar de derivado do petróleo, o gás natural possui pegada de carbono significativamente inferior à do diesel e segue como uma alternativa relevante para o setor de veículos pesados, especialmente se encarado como um combustível de transição. O PDE 2034 (p. 37) projeta que, até 2034, o gás natural comprimido terá a maior penetração entre as motorizações alternativas no licenciamento de novos caminhões pesados, o que é bastante otimista no cenário da transição energética.
Mas é evidente que não há uma única solução para a transição energética do setor de transportes. A eletrificação e a adoção de biocombustíveis devem ser articuladas a outras esferas de transformação, como, por exemplo, a dos modais de transporte — cuja diversificação é essencial para tornar a indústria da mobilidade mais sustentável.
Nesse aspecto, o transporte ferroviário é uma opção promissora para reduzir o consumo energético e as emissões de carbono. O Brasil tem investido na expansão de sua malha ferroviária, e há um crescente interesse em projetos que aumentem a participação desse modal no transporte de cargas. No longo prazo, uma logística mais diversificada, que inclua ferrovias e hidrovias, será essencial para que o país torne o setor de transportes mais sustentável.
Perspectivas futuras
Ainda que enfrentemos desafios significativos no que diz respeito à infraestrutura, o futuro descarbonizado do setor de transportes no Brasil dependerá, em grande parte, do sucesso na implementação da eletrificação dos veículos, do aumento da participação dos biocombustíveis e dos investimentos em modais mais eficientes.
Essa transformação não acontecerá da noite para o dia. Investir em infraestrutura adequada, como redes de recarga para veículos elétricos, um sistema logístico mais integrado e uma rede de distribuição que permita o aproveitamento pleno da produção de biometano que o país tem capacidade de gerar, será determinante para que o Brasil se tornar uma referência global em transição energética.
É preciso, também, diversificar os modais de transporte. Modais como o ferroviário e o aquaviário, que consomem menos energia, são uma excelente oportunidade para descarbonizar o setor de cargas, e têm potencial de complementar essa mudança de forma significativa.
Para que esse progresso seja efetivo, políticas públicas claras e inovadoras precisam andar lado a lado com os avanços tecnológicos ligados especialmente à eletrificação da frota. Incentivos fiscais, regulamentação adequada e apoio financeiro são ingredientes fundamentais para criar um ambiente onde a inovação possa prosperar. Somente assim o Brasil conseguirá consolidar um setor de transportes moderno, eficiente e sustentável.
*Ana Chagas é advogada e sócia da consultoria Simões Pires na área de Ambiental, Mudanças Climáticas e ESG.
**Roberta Aronne é advogada e sócia da consultoria Simões Pires nas áreas de Energia, Construção e Gestão de Contratos.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.