Evaristo Pinheiro*
Há consenso que o resgate da segurança jurídica no Brasil é essencial para que o país volte a experimentar o incremento dos investimentos produtivos e, por consequência, o retorno da geração de emprego e renda.
Tal segurança jurídica depende de um mínimo de estabilidade normativa e de clareza a respeito das competências – especialmente, as normativas – não somente de cada um dos poderes da República, mas também dos diferentes órgãos administrativos.
A edição da Resolução Normativa (RN) n. 13, de outubro de 2016, pela ANTAQ está inserida nesse contexto. O ato normativo em questão estabelece no art. 2º, § 3º, que as embarcações utilizadas para regaseificação (floating storage and regasification unit – FSRU) são sujeitas apenas a registro na ANTAQ, o que exonera tais estruturas da necessidade de afretamento por empresa brasileira, conforme previsto na Lei n. 9.432/1997 (art. 7º), in verbis:
“Art. 7º As embarcações estrangeiras somente poderão participar do transporte de mercadorias na navegação de cabotagem e da navegação interior de percurso nacional, bem como da navegação de apoio portuário e da navegação de apoio marítimo, quando afretadas por empresas brasileiras de navegação, observado o disposto nos arts. 9º e 10.
Parágrafo único. O governo brasileiro poderá celebrar acordos internacionais que permitam a participação de embarcações estrangeiras nas navegações referidas neste artigo, mesmo quando não afretadas por empresas brasileiras de navegação, desde que idêntico privilégio seja conferido à bandeira brasileira nos outros Estados contratantes”.
Trata-se, portanto, de discussão jurídica evidente sobre a competência da ANTAQ (cujas competências estão definidas na Lei n. 10.233/01) para empreender tal alteração normativa em comparação com a Lei n. 9.432/97, que regula o transporte aquaviário no Brasil.
Apesar da competência regulamentar da ANTAQ prevista no art. 27 da Lei n. 10.233/01, parece evidente que esta não conferiu à agência a possibilidade de alterar a política de transporte aquaviário no Brasil – que é definida pelo Poder Legislativo via lei ordinária –, resguardando-se assim a norma legal que obriga o afretamento por empresa brasileira de navegação (EBN) para a empresa estrangeira participar do mercado nacional.
Isso porque, em primeiro lugar, as FSRUs são embarcações de acordo com o conceito da Lei n. 9.537/97, que define tais estruturas como “qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas”. Esses equipamentos são flutuantes e possuem propulsão própria.
Além disso, a ANTAQ classifica tais embarcações como de cabotagem, o que reforça sua obrigatória obediência ao art. 7º mencionado.
Não fossem classificadas como de cabotagem, forçosamente deveriam ser classificadas como de apoio portuário, pois realizam “navegação exclusivamente nos portos e terminais aquaviários, para atendimento a embarcações e instalações portuárias” conforme a definição do inciso VII do art. 2º da Lei n. 9.432/97. Deveriam, assim, também obedecer a norma do art. 7º mencionado.
Não quis o legislador ordinário excetuar da obrigação de afretamento com empresa brasileira as embarcações do tipo FSRU. As únicas exceções para a regra do afretamento previstas na lei em questão são por tipo de embarcação (navios de guerra, pesquisa científica, embarcações de recreio, pesca e turismo) e em razão de acordos internacionais.
Dessa forma, observa-se que a RN-ANTAQ 13/16 extrapolou o poder regulamentar da agência, invadindo a competência do Poder Legislativo ao criar exceção à exigência de afretamento de FSRUs estrangeiras, distinção que a lei não somente evitou fazer, mas listou exaustivamente as embarcações excluídas do efeito da regra.
Além disso, a ANTAQ descumpriu ainda a própria Lei n. 10.233/01, que estabelece como objetivos da agência implementar as políticas de transportes formuladas pelo Poder Legislativo e regular a prestação dos serviços aquaviários. Isso significa que a regulação normativa a ser executada pela ANTAQ deve guardar convergência com as políticas públicas em vigor para o setor e não negá-la ou alterá-la. Veja-se, ademais, que não se trata dos comuns casos de normas regulamentares que vão além da Lei, mas, sim, de um caso em que a norma regulamentar define exatamente o contrário do que a lei definiu.
Ao publicar a RN em questão a ANTAQ modificou, de modo casuístico para as FSRUs, a política de afretamento, invadiu competências relacionadas a celebração de acordos internacionais, além de promover renúncias tributárias por ato infralegal, o que é constitucionalmente vedado em razão do texto do § 6º do art. 150.
É importante reforçar que a política brasileira de exploração da navegação, ao obrigar a bandeira brasileira nas embarcações e o afretamento das estrangeiras via empresa brasileira tem por objetivo estimular o investimento na fabricação de embarcações no Brasil, na contratação de mão de obra brasileira para as embarcações e na preservação da manutenção da arrecadação tributária no Brasil. A título de exemplo, o segmento de navegação do país gera 7 mil empregos diretos e 30 mil indiretos, além de centenas de milhões de reais em arrecadação anualmente.
Ainda que se possa revisar tal política, o foro correto para se empreender tal revisão não é a ANTAQ, vez que legalmente incompetente para tanto. A revisão em tela deveria ser formulada pelos Ministérios de Infraestrutura, da Economia e pelo Itamaraty, e ser proposta, discutida e eventualmente aprovada pelo Poder Legislativo, que constitui o único foro constitucionalmente competente para alterá-la.
Além disso, a RN-ANTAQ n. 13/16 feriu o princípio constitucional da isonomia previsto no caput do art. 5º da Constituição Federal, pois imputou às empresas nacionais de navegação custo maior que o de empresas estrangeiras para a prestação do mesmo serviço, refletindo para as empresas nacionais condições de competição piores do que as empresas estrangeiras. Ainda que fosse possível a alteração pretendida via resolução, é ilegal permitir que a exploração do serviço de navegação por empresa estrangeira incorra em menos custos do que as empresas nacionais.
Isso porque a empresa brasileira para explorar esse serviço precisará afretar embarcação, incorrendo nos impostos decorrentes, além de ser obrigada a utilizar a mão de obra brasileira, que custa mais caro que a contratada no exterior.
Nesse sentido, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) n. 1.091, de novembro de 2018, proposto pelo deputado Hugo Leal (PSD-RJ), anda muito bem ao propor sustar o citado § 3º do art. 2º da RN-ANTAQ n. 13/16, resguardando a competência do Poder Legislativo resguardada pelo inciso V do art. 49 da Constituição Federal:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
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V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
A própria ANTAQ, no exercício da autotutela dos atos administrativos deveria ter analisado o ato (§3º do art. 2º) e o cancelado, declarando-o ilegal, conforme Súmulas STF 346 e 743.
Em resumo, a RN-ANTAQ n. 13/16 (i) fere o princípio da legalidade; (ii) fere o princípio da isonomia ao conferir condições competitivas mais vantajosas para as empresas estrangeiras que para as brasileiras; (iii) institui renúncia tributária por ato infralegal e diminui a arrecadação de tributos na importação; (iv) não gera empregos para os marítimos brasileiros, pois os projetos contemplam marítimos estrangeiros para fugir do “custo Brasil”; (v) desestimula as escolas de formação da Marinha Brasileira; (vi) desestimula o investimento das empresas brasileiras de navegação; (vii) vai de encontro ao posicionamento adotado pela agência reguladora em situações semelhantes.
Nesse sentido, o PDC n. 1.091/01 possui o grande mérito de resguardar as competências do Poder Legislativo e da administração direta do Poder Executivo, contribuindo, portanto, para aumentar a segurança jurídica.