iNFRADebate: Como avaliar o leilão da Ferrovia Norte-Sul?

Frederico Bussinger*

“Para todo problema complexo  existe sempre uma solução simples, elegante, plausível  e completamente errada”
(H. L. Mencken)

“O segredo do sucesso não é prever o futuro. É prover, no presente, certas condições para prosperar no futuro que não pode ser previsto” (Michael Hammer)

Sucesso ou fracasso? Vitória ou derrota? Solução ou problema? A “sociedade do espetáculo” se identifica com o que reluz, prioriza o “parecer” sobre o “ser”. Por seu turno, o maniqueísmo nas redes sociais demanda respostas rápidas, curtas, digeríveis e tonitruantes para alimentar suas discussões e “Fla-Flus”. Para as demandas, aqui alguns subsídios:

Política e mercadologicamente o governo, Ministério da Infraestrutura à frente, liderado pelo ministro que “humilha especialistas da grande mídia” (Tarcísio Gomes de Freitas), foi o grande vencedor dessa batalha. A “quebra de um jejum de mais de dez anos” foi ainda amplificada por ter ocorrida dentro dos icônicos “100 dias”, e num cenário onde discursos, ideias e propostas ainda predominam sobre realizações.

O governo bancou o modelo em gestação desde, pelo menos, o PIL-1 (2012), mesmo ante seguidas notícias de desistência de potenciais novos players no setor. Bancou a própria realização do leilão, enfrentando e ultrapassando sucessivos obstáculos de grupos de interesse, entidades, mídia, órgãos de controle e Justiça. E, finalmente, não se espelhando na confrontação institucional dominante nesse início de 2019, evitou a judicialização do processo, de resultados imprevisíveis, ainda que para tanto tenha tido que firmar “Termo de Cooperação” com o MPF, a menos de uma semana do leilão: pragmaticamente assumiu 11 compromissos de mérito, a maioria deles na linha das teses do procurador Júlio Marcelo de Oliveira (que, curiosamente, não assina o Termo!), e também aceitou o acompanhamento de sua implementação pela 3ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Ponto para o diálogo, para a negociação. Ponto para ambas as partes!

O ativo-FNS

Nos primórdios do PND, focado em empresas fabris, a métrica de sucesso era o valor de venda do ativo e o ágio. No atual PPI, voltado a concessões e congêneres, agregou-se o volume de investimentos (R$) comprometidos e, no essencial, venda de ativo passou a ser outorga do serviço, seja ele de ferrovia, extração de petróleo & gás, rodovias, terminais portuários, aeroportos, geração de energia, loteria, usina nuclear, mineração… Sob qualquer desses parâmetros o leilão da FNS foi um sucesso: ágio de 101%, outorga de R$ 2,719 bilhões pela concessão (na verdade, subconcessão!) de 30 anos, e investimentos comprometidos de R$ 2,8 bilhões.

A Rumo, licitante vencedora, pode celebrar duplamente: pela concessão vencida e, tendo participado de processo com tantas incertezas e riscos, certamente acumulou créditos negociais com o Governo Federal para renovação antecipada do contrato antigo, processo em andamento. Aliás, pelos mesmos motivos, também a VLI, ainda que derrotada na disputa principal. De forma indireta, também os demais concessionários ferroviários pelo clareamento do quadro institucional-regulatório a trilhar em suas negociações antecipatórias.

A indústria de construção e de equipamentos ferroviários também tem o que comemorar, no mínimo aplaudir: encomendas à vista! Também consultores e escritórios de advocacia que ajudaram o governo a se desvencilhar dos obstáculos e, até, os ferroviários platônicos que se inquietavam com o patinar do setor. E, como não poderia deixar de ser, por ter vinculado definitivamente a FNS ao Maranhão e iniciado suas obras, o ex-presidente Sarney, que “…fiz o Porto do Itaqui, trouxe o escoamento de minério de Carajás para ele, liguei o Tocantins e o Pará a São Luís”, celebrou logo após o leilão: “Dei ao Maranhão a melhor infraestrutura do Nordeste. Preparei-o para este dia”.

FNS e política pública

Mas, para além da FNS-ativos, o modelo/leilão da FNS também tem/poderá ter implicações, tanto sobre suas características funcionais/operacionais, como sobre cenários estratégicos para o “sistema” ferroviário brasileiro e para nossa logística.

Portanto, respostas a algumas questões são igualmente desejáveis para se avaliar os resultados das políticas setoriais, mormente sendo a FNS, com seu traçado e seus 1.537 km, vocacionada para ser a “espinha dorsal” do sistema ferroviário, como tem sido apresentada.

Por exemplo: i) Sabe-se que ferrovias são instrumentos estruturantes do desenvolvimento: quanto de investimentos indiretos no agronegócio, na indústria e nos serviços a subconcessão da FNS vai efetivamente alavancar, particularmente em Tocantins e Goiás? ii) A concorrência entre a “malha-norte” (grupo Vale) e a “malha-sul” (grupo Rumo) vai alterar o padrão de precificação logístico, como prevê o ministro Tarcísio, ou os fretes ferroviários seguirão sendo referenciados aos rodoviários (90%, como informa a senadora Katia Abreu)? iii) As tão decantadas “shortlines” florescerão articuladas à FNS? iv) Pode-se antever OFIs operando na FNS em futuro próximo, como propugna, por exemplo, a ANUT e o menciona o “Termo de Cooperação”? v) Diferentemente de rodovias, o concessionário ferroviário tem meios para controlar a demanda. Um “índice de saturação”, mecanismo inovador, está sendo previsto para as renovações antecipadas, associado a um “gatilho” de 90% para tornar exigível aumento de capacidade do trecho. Pode-se esperar que os “gatilhos” venham a ser acionados, ou o duopólio utilizará seu poder de controle da demanda para manter o índice sempre abaixo dos 90%? vi) Para 2020, CNA e ANUT estimam que os direitos de passagem das ferrovias conexas à FNS atenderão, apenas, a 1/5 (1,8 X 9,2 mt/ano) da demanda do agronegócio da área de influência da FNS: Confirma-se? Quando pode-se antever o equilíbrio entre oferta & demanda? vii) O Complexo Portuário de Barcarena (PA) chegará a ser uma alternativa portuária para a FNS-Norte, como no seu traçado original, ou o Trecho Açailândia (MA) – Barcarena (PA) foi definitivamente abandonado?

Mais amplamente: i) Que alterações na distribuição modal da Matriz de Transportes brasileira é possível esperar em decorrência da subconcessão leiloada? ii) Que contribuição ela poderá dar para o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil, de redução das emissões dos GEF, no contexto dos acordos das COPs? iii) Hoje (2018) o Brasil ocupa a 56ª posição  no “Índice de Performance Logístico – LPI” do Banco Mundial: até o final dos 30 anos contratuais, que evolução terá o Brasil no ranking do LPI?

Não são essas questões exemplificativas relevantes? Mas, se dados, informações e definições, claras e suficientes, sobre elas não emergiram dos estudos submetidos às audiências públicas nem das suas atas ou das respostas aos pedidos de esclarecimentos sobre o Edital, o quadro pode se tornar ainda mais turvo, a depender de como serão implementados os compromissos assumidos no “Termo de Cooperação”. Algo a ser definido.

Na verdade, mais que da documentação específica do leilão da FNS, essas dúvidas decorrem da histórica inexistência, ao menos no passado recente, de objetivos explícitos, claros, consistentes, legitimados, aferíveis e, efetivamente, balizadores do processo decisório e de ações setoriais. Seria, por exemplo: i) Ampliar a extensão da malha ferroviária operacional brasileira (“brown-field” e/ou “green-field”)? ii) Ou apenas aumentar os TKUs? iii) Transformar (verdadeiramente) linhas em redes? iv) Fazer da ideia/sonho de “sistema” (ferroviário) e da multi/intermodalidade uma realidade? v) Reintroduzir a ferrovia no transporte de passageiros de longa distância? vi) Aumentar a participação do modo ferroviário na Matriz de Transportes brasileira (passageiros e carga)? vii) Cumprir os compromissos assumidos pelo Brasil, no contexto dos acordos das COPs, de redução das emissões dos GEF? viii) Efetivar “melhoria contínua” na logística brasileira, medida pela trilogia tempo (“transit time”), custos e qualidade de serviço? ix) Garantir concessionárias econômico-financeiramente sustentáveis? x) Ocupar e desenvolver sustentavelmente (econômico, ambiental e social) o território nacional, objetivo já estabelecido por vários antepassados?

Tarefas à frente

Essa relação arrola alguns dos objetivos, explícitos ou implícitos, que se ouve em discursos ou palestras/painéis, lê-se em relatórios, teses, EVTEAs ou notas técnicas, ou se vê em PPTs, vídeos ou propagandas. Mas, ainda que exemplificativa, ela já é suficiente para se perceber que os objetivos enunciados não são, obrigatoriamente, harmônicos entre si: daí a importância de serem sistematizados, principalmente em grau e forma, e hierarquizados. E o mais importante: serem legitimados, balizarem efetivamente os processos de tomada de decisão, e serem periodicamente monitorados para se aferir resultados das políticas adotadas.

O estabelecimento desse quadro de referências é tanto essencial como inadiável: essencial porque pode ser base objetiva para análise da tal “vantajosidade”, exigência da Lei nº 13.448/2017 (art. 8º) e compromisso do “Termo de Cooperação”. Inadiável em se considerando que os processos de renovação antecipada das concessões existentes seguem em marcha batida, e há leilões de concessão de ferrovias “green-field” previstas ainda para este 2019.

*Frederico Bussinger é consultor, engenheiro e economista. Pós-graduado em engenharia, administração de empresas, direito da concorrência, e mediação e arbitragem. Foi diretor do Metrô/SP, Departamento Hidroviário (SP) e Codesp. Presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e Confea. Coordenador do GT de Transportes da Política Estadual de Mudanças Climáticas. Presidente do Consad da CET/SP, SPTrans, RFFSA; da CNTU e Comitê de Estadualizações da CBTU. Secretário Municipal de Transportes (SP) e Secretário Executivo do Ministério dos Transportes. Membro do Consad/Emplasa e da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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