Mauricio Portugal Ribeiro1*
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) publicou em 3 de dezembro de 2019 a Resolução n° 5.860, sobre indenização por investimentos não amortizados ou depreciados em concessões de rodovias para qualquer hipótese de extinção antecipada de contratos. A ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), por sua vez, tinha aprovado, em 12 de novembro de 2019, a Resolução nº 533, também sobre indenização por investimentos não amortizados em concessões de aeroportos, mas apenas para os casos de extinção antecipada do contrato por devolução para relicitação, caducidade, ou falência da concessionária.
A regra da ANTT lamentavelmente abrangeu a hipótese de extinção antecipada de concessões por encampação, isso é por decisão política do poder concedente. As encampações são vulgarmente chamadas também de estatizações ou nacionalizações.
A regra sobre indenização de investimentos não amortizados é uma parte central de qualquer programa de desestatizações. É ela que estabelece a compensação do concessionário pelos investimentos realizados em caso de extinção antecipada do contrato. A regra sobre indenização aplicável à hipótese de encampação é ainda mais relevante, porque ela é a principal proteção do concessionário contra rupturas políticas que inviabilizem a continuidade do contrato.
Eventual imperícia na elaboração da regra sobre indenização de investimentos não amortizados em caso de encampação pode criar incentivos para políticos populistas estatizarem concessões. O valor da indenização e o seu pagamento prévio à encampação² são os principais meios para dissuadir esses políticos de romperem contratos de concessão. Se o valor da indenização for baixo – particularmente quando for baixo comparado à capacidade de produção de receitas da concessão – haverá incentivos para políticos populistas realizarem encampações. E, lamentavelmente, é esse incentivo que a regra aprovada pela ANTT cria.
Note-se que apesar da ANTT ter competência para regular apenas as concessões de rodovias federais, qualquer regra geral emitida pela agência tem impacto nacional. Como é cediço, existem programas de concessão de rodovias estaduais e municipais, e agências reguladoras e poderes concedentes estaduais e municipais geralmente copiam as regras emitidas por agências reguladoras federais, muitas vezes sob a equivocada suposição que tudo que nelas se produz é sofisticado e adequado.
A ANTT desenvolveu a regra sobre indenizações por investimentos amortizados em face da possibilidade de extinção dos contratos de concessão de rodovias da 3ª Etapa, aqueles celebrados entre 2012 e 2014, logo antes da maior crise econômica da história do país, e fortemente afetados por ela, pelos erros de modelagem de contratos de concessão praticados no Governo Dilma, e pela inércia da ANTT e da União em adotar providências para reestruturar esses contratos oportunamente de modo a remediar os impactos da crise e dos erros de modelagem.
As regras de indenização ora comentadas foram criadas após o Governo perder, em março de 2019, as esperanças de reestruturar esses contratos de concessão, supostamente por temor da cruzada que o TCU (Tribunal de Contas da União) faria contra os agentes públicos envolvidos nessas reestruturações. Resolveu, assim, endurecer o discurso contra os concessionários, ameaçando-os de caducidade com uma das mãos, e oferecendo com a outra mão a saída supostamente honrosa da devolução dos contratos para relicitação. Nessa estratégia, a ANTT e a ANAC, com sua (pouca) independência, figuraram como meros braços do Governo. Priorizaram a partir de março acelerar ou instaurar os processos de caducidade e desenvolveram regras de indenização para extinção antecipada dos contratos.
A elaboração dessas regras ocorreu, portanto, no clima atual de aversão a riscos pessoais dos agentes públicos, que permeia os órgãos e entidades da União. Para evitar o risco de punições pelo TCU, agentes públicos, particularmente das agências reguladoras, utilizam sistematicamente os seus poderes discricionários para tomar decisões que beneficiam o poder concedente e os usuários em detrimento das proteções legais e contratuais asseguradas aos concessionários. Para isso, ignoram ou interpretam inadequadamente as regras que protegem interesses dos concessionários.
No caso das concessões de rodovias da 3ª Etapa, esse problema é ainda mais agudo porque várias das concessionárias são controladas por grupos que foram atingidos pela operação Lava Jato. Particularmente nesse caso, temem as agências reguladoras que o TCU considere que suas decisões criam benefícios indevidos para essas empresas, o que certamente acenderia suspeitas de corrupção e levaria à abertura de processos para punição pessoal contra os seus integrantes.
Junte-se a isso o fato de que agentes do Ministério da Economia, que participaram da discussão das regras de indenização, entendem que é preciso fazer regras de indenização que tenham efeitos punitivos sobre os concessionários, de modo a deixar claro para futuros participantes de licitações de concessões que propostas inviáveis não serão renegociadas. A visão desses agentes é que os concessionários da 3ª Etapa propositalmente apresentaram propostas inviáveis nas licitações com a expectativa de renegociação posterior dos contratos. Nessa narrativa, o ocaso dessas concessões é consequência da impossibilidade de renegociação em vista do escrutínio redobrado sobre empresas nos setores de infraestrutura após as revelações da operação Lava Jato. Esse entendimento, contudo, me parece simplista. Entre outras deficiências de percepção, ignora os impactos da maior crise econômica da história do país sobre os contratos de concessão.
Todo esse contexto levou à produção pela ANTT e pela ANAC de regras de indenização claramente voltadas para reduzir o montante a ser pago aos concessionários. A seguir, enumero algumas das características dessas regras de indenização³:
a) Elas supõem que a indenização é do valor dos bens e não do valor dos investimentos. Focam-se, por isso, em estabelecer o valor de aquisição, as regras de depreciação (e não de amortização) desses bens. O problema é que feito o desembolso que caracteriza o investimento, o valor dos bens só cai, por depreciação física. Por outro lado, os compromissos firmados (com financiadores e acionistas) para a viabilização do investimento crescem à medida que o tempo passa. Por isso, que uma regra de indenização adequada, que tivesse por objetivo manter indene o concessionário no ato de extinção do contrato, deveria centrar atenção em indenizar o valor do investimento e tratá-lo no tempo considerando os compromissos assumidos para a sua viabilização. Ao pretender pagar apenas pelo valor de aquisição depreciado dos bens a serem revertidos, as regras da ANTT e ANAC penalizam indevidamente os concessionários. No caso das concessões da 3ª Etapa, seguindo as regras atualmente aprovadas pela ANAC e ANTT, há estimativas que as indenizações serão insuficientes sequer para pagar as dívidas das concessionárias com os seus financiadores;
b) Outra consequência dessa visão de que a indenização é sobre bens e não sobre os investimentos é a atribuição aleatória, ou por cópia de regras fiscais (criadas para finalidades diversas do cálculo da indenização) de prazo de vida útil de bens para efeito do cálculo da depreciação;
c) Ainda como consequência indireta do equivocado entendimento de que a indenização é sobre bens e não sobre investimentos, também me parece violação dos contratos em curso a ANTT e a ANAC estabelecerem nas respectivas resoluções regras sobre quais bens são reversíveis e quais não o são, para efeito de definir o universo de bens reversíveis cujo valor será usado como base para o cálculo da indenização;
d) Como a indenização é dos investimentos e não dos bens, descabe ao poder concedente abrir discussões sobre o “valor justo” da aquisição dos bens, pois não há suporte legal para isso. A presunção nesse caso é que os interesses do concessionário e do poder concedente estão alinhados em relação à aquisição de bens. Quanto mais eficiente a aquisição dos bens, maior a rentabilidade do projeto para a concessionária.
e) Também não há base legal para questionar o valor dos bens simplesmente porque a sua produção ou aquisição se deu em contratos com partes relacionadas da concessionária. A permissão de contratação pela concessionária de partes relacionadas é regra em programas de desestatização na Europa e na América do Norte. Isso porque a contratação de partes relacionadas pela concessionária tem potencial de produzir ganhos de eficiência, que retornam para o usuário e para o poder concedente por meio de propostas mais agressivas nas licitações.
É importante assinalar que essas regras são inadequadas para o cálculo de indenização por investimentos não amortizados em qualquer hipótese de extinção antecipada de contratos de concessão e em minha opinião incompatíveis com as proteções legais dadas aos concessionários.
Mas o que tem isso a ver com as tentativas populistas recentes de Crivella e passadas de Requião de estatizar concessões?
A ANTT, ao aprovar uma regra que prevê metodologia que penaliza concessionários, reduzindo indevidamente o valor das indenizações, e ao estabelecer que essa norma é aplicável à hipótese de encampação, acaba de tornar mais fácil a vida de políticos populistas que queiram encampar concessões.
É evidente que, se a regra da ANTT vier a ser adotada por estados ou municípios, haverá grande contestação sobre a sua aplicabilidade a contratos em curso. Rigorosamente, seria ilícito aplicar novas regras a contratos em curso em face da proteção ao ato jurídico perfeito prevista na Constituição Federal e da proibição de a Administração Pública alterar unilateralmente contratos administrativos.
Adicione-se a isso o fato de que vários contratos de concessão atribuem ao concessionário o direito de indenização inclusive por lucros cessantes, isso é, pelas expectativas futuras de lucro, em caso de extinção do contrato por encampação. Isso em tese criaria uma proteção adicional ao concessionário, uma vez que esse aspecto simplesmente não é contemplado na regra da ANTT.
Mas, perante um Poder Judiciário que tem dificuldades de compreender a lógica econômico-financeira de concessões, alheio ao contexto de criação da regra da ANTT e particularmente ao clima de aversão a riscos pessoais dos agentes públicos submetidos ao TCU, certamente essa regra será vista como uma referência importante, como um standard desenvolvido por um ente imparcial e supostamente sofisticado tecnicamente. Não me surpreenderia se, nesse contexto, a regra da ANTT se tornasse um parâmetro entendido por juízes ou tribunais estaduais como adequado para indenizar concessionários pelos investimentos não amortizados, mesmo havendo regra contratual que lhes dê direito a lucros cessantes.
Observe-se que a situação fiscal atual da grande maioria dos estados e municípios é tão ruim que, mesmo o pagamento prévio da indenização calculada segundo a regra da ANTT, deve lhes ser financeiramente inviável. Mas, e se o PIB do Brasil começar a crescer de maneira consistente nos próximos semestres e a situação fiscal dos estados e municípios melhorar?
Nem Crivella, nem Requião sequer tentaram seguir os procedimentos adequados para extinguir contratos de concessão. Dentro do seu tosco voluntarismo, não foram capazes de engendrar uma narrativa e uma estratégia que pudesse dar ares de licitude aos seus desígnios. Muito menos consideraram pagar antecipadamente qualquer indenização aos concessionários. Procederam explicitamente à margem da lei e isso facilitou a caracterização da ilicitude de suas condutas. Mas imaginem um cenário com populistas mais sofisticados, capazes de agir com alguma estratégia que dê ares de regularidade aos seus objetivos. A regra da ANTT cairia como uma luva para um populista desse jaez.
Para não ser cúmplice de populistas nos seus intentos de estatizar concessões, bastaria a ANTT ter excluído da sua regra de indenização a menção à hipótese de encampação, como, aliás, o fez a ANAC, que estabeleceu regra apenas para os casos de devolução para relicitação, caducidade do contrato ou falência da concessionária. Aparentemente, contudo, a ANTT simplesmente não percebeu a gravidade do problema.