Leonardo Coelho Ribeiro* e Roberto Araújo**
Como de resto vem se passando com variadas atividades econômicas, a pandemia do coronavírus e as medidas adotadas pelos poderes públicos para enfrentá-la acertaram em cheio as concessões de serviços públicos.
Informes diários dão conta de que aeroportos sediam 90% menos voos; sistemas metroviários transportam 80% menos passageiros; e rodovias sustentam a passagem de 70% menos veículos em suas vias. O derretimento da demanda, especialmente nas concessões logísticas, salta aos olhos. Uma leitura apressada poderia levar ao argumento de que é disso que se trata: queda de demanda e, logo, risco de demanda. Entretanto, é preciso não se precipitar. Como trataremos a seguir, o elemento demanda, aqui posto, consiste em uma consequência, e não em uma causa. E isso faz toda a diferença quando se analisa a matriz de risco dos contratos de concessão e suas repercussões sobre o equilíbrio econômico-financeiro desses ajustes.
É de conhecimento convencional que os contratos têm, dentre suas funções primordiais, o papel de repartir riscos de maneira eficiente. Isso lhes confere uma plasticidade que permite serem casuisticamente modelados, a fim de melhor se amoldarem ao objeto contratado. Ainda assim, a distribuição de alguns tipos de riscos não costumam sofrer grandes variações de contrato a contrato. Para o que aqui nos importa, falamos do risco de caso fortuito ou força maior e do risco de demanda.
O comum é que, por configurarem evento de álea extraordinária, dos quais é difícil se desvencilhar ou neutralizar efeitos por meio de seguros ou outras formas de proteção, o risco de caso fortuito e força maior seja alocado ao poder público concedente. Por outra via, considerando que a variação da demanda configuraria hipótese muito próxima ao risco do negócio explorado pelo concessionário privado, costuma-se alocar o risco de demanda ao concessionário (ou, de forma mais rara, prever bandas nessa alocação, como que divisando variações ordinárias, influenciáveis pelo operador do negócio, e extraordinárias, alheias ao campo de influência do operador).
O risco de caso fortuito ou força maior tem uma característica específica: voltado a endereçar um evento externo ao contrato e de agudas consequências sobre seu objeto, há grande chances de que ele venha a ocasionar uma grave queda de demanda. Imagine-se uma catástrofe natural, como um terremoto, que faz ruir a terra, irrompendo diversos trechos de uma rodovia. No dia seguinte ao evento, por óbvio, o tráfego de veículos nesses trechos quedará impossibilitado e, deste modo, não haverá demanda a ser atendida pela concessão. Nesse caso, a inexistência de demanda é consequência direta do evento de força maior. No caso que estamos vivenciando a situação é um pouco diferente. Há mais uma etapa de medidas, fazendo com que a queda de demanda seja ainda mais indireta. Senão vejamos.
No caso de uma pandemia ocasionada por um vírus inédito, de alto potencial infeccioso, e que, segundo a orientação da OMS (Organização Mundial da Saúde), pode provocar efeitos avassaladores no sistema de saúde nacional, levando a um sem número de mortes, caso medidas de distanciamento e isolamento social não sejam tomadas, o vírus, em si, não afeta diretamente a infraestrutura concessionada. Todavia, como a logística tem por objeto mover coisas ou pessoas entre pontos geográficos distintos, as medidas adotadas pelo poder público para impedir a transmissão do vírus importam, diretamente, em reduzir a mobilidade de coisas e pessoas. E isso, sim, consiste na redução da demanda da concessão.
Portanto, um evento de força maior, secundado por medidas de autoridade (possíveis fatos do príncipe, ou da administração), de caráter interventivo na economia e na organização da vida em sociedade, concorrem conjuntamente para gerar a causalidade que leva à grave queda de demanda e receita nas proporções sinalizadas no início deste artigo.
Como se pode ver, a situação se distancia, e muito, de uma variação de demanda que poderia decorrer da concorrência intermodal; da flutuação da economia; da mudança de hábitos dos usuários dos serviços públicos concedidos, dentre outros. Desta forma, de risco de demanda certamente não se trata, e é preciso guardar isso em mente para seguirmos.
Ora bem, é de se esperar que, cessadas as medidas editadas pelo poder público, o debate do reequilíbrio dos contratos de concessão seja posto à mesa. Em um cenário provável, força maior e fatos do príncipe e da administração, e risco de demanda, serão opostos em argumentos contraditos. Como antecipamos, trata-se de uma falsa oposição, que, na forma do racional apresentado, não se sustenta. De modo que, seguir por esse caminho, só levará ao aprofundamento da crise nas concessões, e ao ineficiente caminho do litígio.
De maneira bem diferente, acreditamos que seja possível, e recomendável, que, diante dos pleitos de reequilíbrio que virão, não se perca tempo em litigar empunhando argumentos questionáveis ou máximas de superioridade e interesse público. Será preciso pensar, com pertencimento de parte a parte, as melhores formas negociais de re-equacionamento das concessões para o futuro.
A mutabilidade das concessões nunca terá sido tão importante quanto na quadra que se aproxima. Alterar contratos será imperioso, porque muitas das medidas de mero reequilíbrio, com exato mesmo escopo e cesto de obrigações, não encontrará vida fácil na alteração isolada das variáveis típicas de outorga, indenização, tarifa, prazo, investimentos e obrigações. Será preciso construir, dentro de parâmetros compatíveis com o que os dados da realidade clamam, novos conteúdos para preencher as molduras contratuais das concessões de serviços públicos. Se concedentes, concessionários e controladores não seguirem por essa trilha, atentos à nota da comunhão de esforços que orienta as concessões, pode ser que os serviços públicos concedidos não cheguem a encontrar a cura da versão contratual do coronavírus antes que seja tarde demais.