Rafael Véras* e Marcos Nóbrega**
Em notícia de 8 de maio de 2020, a Agência iNFRA dá conta de que, para fazer frente aos desequilíbrios provocados pela Covid-19, câmaras de mediação ligadas a um tribunal de contas poderão tratar de temas de reequilíbrio de contratos de concessão. A ideia surgiu em debate promovido entre o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, o ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Bruno Dantas e o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP).
Temos que se trata de um caminho alvissareiro, por razões jurídicas e econômicas. A mediação se configura como um procedimento dialógico, conduzido por um terceiro imparcial, por intermédio do qual é construída uma solução pelas próprias partes. Diferentemente do procedimental arbitral, no qual o árbitro profere a decisão do litígio (substituindo o Poder Judiciário), ao se utilizar da mediação, a decisão será produzida, de forma concertada, pelos concessionários e pelo poder concedente. Nesse quadrante, a função do mediador será a de criar incentivos para as partes encontrarem uma solução que atenda aos seus interesses – ainda que isso envolva concessões recíprocas.
Sob o aspecto jurídico, não é novidadeiro o entendimento segundo o qual as relações contratuais travadas entre o poder público e os particulares, sobretudo após o advento da Constituição Democrática de 1988, devem ser pautadas pela consensualidade, e não pela imperatividade. Não é por outra razão que o ordenamento jurídico, desde há muito, vem disciplinando formas alternativas para endereçar soluções de conflitos em contratos públicos. Mais que isso, o sistema processual brasileiro vem reconhecendo a legitimidade de soluções não adversariais entre o poder público e particulares. Assim, por exemplo, cite-se a Resolução 125/2010, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que, em seus considerandos, dispõe que a “conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças”. E, na mesma direção, o disposto no art. 174 do CPC (Código de Processo Civil), que prevê a possibilidade da criação de câmaras de soluções consensuais de conflitos administrativos pelas entidades da federação.
Mais recentemente, por intermédio do art. 32, §5°, Lei 13.140/2015 (Lei de Mediação), previu-se, expressamente, que tal procedimento de mediação poderá ter por objeto “a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares”. Nada obstante, nos módulos concessórios, providência dessa ordem já fora autorizada, pelo art. 11, III, da Lei 11.079/20014 (Lei de PPPs – parcerias público-privadas) e pelo art. 23-A da Lei 8.987/1995. Daí se concluir pela robusta compatibilidade da solução cogitada pelo governo, pelo Poder Legislativo e pelas cortes de contas com o ordenamento jurídico.
Mais que isso, cuida-se de expediente que já vem sendo utilizado em modelagens de contratos de concessão. Assim, por exemplo, cite-se a Cláusula 38.1.1, do Contrato de Concessão 01/2019, segundo a qual “A autocomposição do conflito em relação ao cumprimento deste contrato poderá ocorrer, desde que de comum acordo entre as partes, perante a câmara de prevenção e resolução administrativa de conflitos ou por mediação, nos termos da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015”. E a minuta padrão de cláusula de resolução de controvérsias do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), submetida à consulta pública no âmbito do processo 00130.000607/2019-22, na qual se prevê que “A parte interessada notificará por escrito à outra quanto ao interesse em iniciar negociação ou mediação, relativa a disputa ou controvérsia decorrente do contrato que envolva direito patrimonial disponível ou direito indisponível que admita transação, observado o disposto na Lei 13.140, de 26 de junho de 2015”.
Para além disso, temos que se trata de uma solução mais eficiente para esse tipo de contrato de longo prazo, por, ao menos, três ordens de razão.
A uma, porquanto tais vínculos não colocam as partes contratuais em posições antagônicas. Não é essa a lógica dos denominados “contratos de investimento”. Nessas relações contratuais, os interesses do poder concedente e do concessionário são distintos, mas convergentes. De um lado, o poder público visa a oferecer uma utilidade pública, por meio de uma relação contratual, a um maior número de destinatários; de outro, o agente privado busca desenvolver uma atividade empresarial vocacionada à obtenção do legítimo lucro – atividade esta que pressupõe que o serviço delegado seja prestado e, se possível, expandido. E isso porque à medida em que há o incremento do número de usuários, maior será a receita marginal do concessionário.
A duas, na medida em que soluções negociadas são inerentes a dois conceitos que lastreiam o regime econômico de tais ajustes: o de “incremento dos custos de transação” e o da sua “incompletude”. De acordo com Oliver Williamson1, os “custos de transação” nos negócios jurídicos têm lugar porque os agentes econômicos não adquirem bens tão somente por conta dos custos de produção, mas porque a todos eles estão agregados os custos de negociação, que são aqueles necessários à formação e à manutenção dos ajustes. Estes custos podem se materializar, ex ante, na fase pré-contratual, ou ex post, posteriormente à sua celebração. Na fase pré-contratual, os custos de transação podem ser exemplificados: (i) pela redação do contrato; (ii) pelas negociações para obtenção de melhores condições e obrigações contratuais; e (iii) pelo estabelecimento de garantias para se mitigar os riscos da ocorrência de fatos supervenientes. Já os custos na fase pós-contratual, por sua vez, terão lugar, por exemplo: (i) na fiscalização do contrato; (ii) na manutenção das condições originalmente acordadas; e (iii) na sua renegociação pela ocorrência de fatos supervenientes.
Trata-se de racional ainda mais saliente em contratos incompletos2 (a exemplo dos contratos de concessão), pois que é impossível estabelecer, ex ante, todas as obrigações contratuais pelas partes. Mais que isso, os custos de transação para se desenhar um contrato completo de longo prazo (à luz de um cenário em que a racionalidade é limitada) seriam insuportáveis. Razão pela qual contratos de longo prazo possuem uma incompletude deliberada3. Daí por que estamos de acordo, com o sempre preciso Egon Bockmann Moreira4, para quem “em tempos pós-modernos, nada mais adequado do que afirmar que a segurança advém da certeza da mudança”.
Com base nessas duas premissas (no incremento dos custos de se estabelecer ex ante todas as obrigações contratuais e na sua incompletude) é que se torna lícito afirmar que as controvérsias decorrentes desses contratos serão mais bem resolvidas no âmbito de um procedimento de mediação, como o ora cogitado. É que, considerando a assimetria de informações presente numa solução de controvérsias heterônoma (pelo Judiciário, pelo regulador ou por um árbitro), ninguém melhor do que as próprias partes para colmatar, de forma eficiente, as lacunas por elas deixadas propositadamente. Ademais disso, não se pode desconsiderar as externalidades positivas da presença do controlador (no caso, o Tribunal de Contas da União) na mediação cogitada. Cuida-se de salvaguarda que reduzirá os riscos de questionamentos ex post dos ajustes.
Nada obstante, temos que tal mediação deverá fomentar condutas cooperativas entre as partes (utilizando-se do racional da “Teoria dos Jogos5”). É dizer: se as partes forem oportunistas, maximizando apenas seus próprios interesses, não haverá mediação. Assim é que o desenho institucional da mediação deverá considerar que as decisões das partes afetam umas às outras. De fato, a mediação cogitada só será eficiente se cada parte estiver satisfeita com o seu resultado (e não pretender mais alterá-lo). Segue daí a razão pela qual mediações pro forma, que sejam permeadas por imposições unilaterais do poder público ou por condutas oportunistas dos concessionários, não se consumarão. Teremos que chegar a um meio do caminho, no qual, de um lado, seja preservada a continuidade dos serviços públicos, mas, de outro, que o concessionário não seja expropriado. Isso tudo à luz do regime jurídico de cada concessão (de rodovias, de aeroportos, de arrendamentos portuários). Teremos muito trabalho pela frente, mas estamos no caminho certo.