Frederico Bussinger*
Joe Biden, presidente norte-americano, vem de completar 100 dias de governo. Seguindo tradição iniciada em 1933, por Franklin Roosevelt, fez um primeiro balanço de gestão.
Destaque para: o i) programa de vacinação, acelerado desde sua posse: mais de 240 milhões de doses já aplicadas (pico de 3,4 milhões/dia), 31,5% da população totalmente imunizada; e o ii) “American Rescue Plan”, lançado quando de sua posse, visando mitigar os efeitos da pandemia, abrange assistência às famílias (por exemplo, auxílio de U$ 1.400,00 per capita) e aos pequenos negócios: montante de US$ 1,9 trilhão (superior ao PIB brasileiro de R$ 7,4 trilhões em 2020 – US$ 1,4 trilhão).
Nas últimas semanas foram anunciados mais dois planos: o i) “American Families Plan”, com foco em saúde e educação, para “ajudar as famílias a cobrir as despesas básicas com as quais tantos lutam agora, reduzindo os prêmios de seguro saúde e dando continuidade às reduções históricas na pobreza infantil”: investimento de US$ 1,8 trilhão; e o ii) “American Jobs Plan”, lembrando o “New Deal” (1933-37) de linha Keynesiana, para “criar milhões de bons empregos, reconstruir a infraestrutura física e a força de trabalho de nosso país, e estimular a inovação e a produção industrial”: US$ 2,3 trilhões. A promessa é “fornecer infraestrutura em que os americanos podem confiar, porque será resistente a inundações, incêndios, tempestades e outras ameaças”.
Tais iniciativas vêm sendo apresentadas como “planos de uma geração”. O site pessoal de Biden e o material oficial da Casa Branca os promove como planos que “juntos, reinvestem no futuro da economia e dos trabalhadores americanos, e nos ajudarão a superar a concorrência com a China e outros países ao redor do mundo”. E arremata: “investiremos de uma forma que não investimos desde que construímos as rodovias interestaduais e vencemos a corrida espacial”. Ou, mais ambiciosamente, “desde a II Guerra Mundial”.
Transportes:
Dos US$ 2,3 trilhões previstos, aproximadamente US$ 621 bilhões são destinados a transportes. À frente programas e projetos para mudar a matriz energética: US$ 174 bilhões destinados à eletrificação de toda a frota federal (incluindo correios), incentivos às pessoas para aquisição de veículos elétricos e implantação de 500 mil estações de carregamento.
US$ 115 bi serão destinados à recuperação e modernização de pontes (10 principais e 10.000 das pequenas, em pior estado) e estradas (32 mil km); US$ 20 bi à segurança viária e U$ 50 bi para socorro e recuperação dos efeitos de desastres (inundações, incêndios florestais, furacões, etc). Para sistemas geralmente administrados por autoridades locais/regionais, como aeroportos, portos e hidrovias são previstos, respectivamente, US$ 25 e 17 bilhões: inclui conversões para energia renovável e aumento de capacidade de eclusas – tema de interesse do agronegócio brasileiro!
Para infraestrutura de logística e mobilidade, tema caro a “Amtrak Joe” (apelido de Biden por ser usuário frequente de trens metropolitanos: consta ter feito mais de 8.200 viagens!) estão previstos US$ 185 bilhões: US$ 20 bi para acessos a comunidades desassistidas; US$ 80 bilhões para ferrovias de carga e passageiros, e US$ 85 bilhões para transporte público (dobrando os fundos federais dedicados).
Os investimentos em portos foram saudados pela “American Association of Port Authorities – AAPA” como sendo “investimentos necessários para modernizar nossos portos e garantir que nossa infraestrutura comercial continue forte”. A “Waterways Council – WCI” vê bons motivos para que, desta vez, velhos projetos hidroviários finalmente saiam do papel. E a “American Public Transportation Association – APTA” os saúda porque “investimentos com visão de futuro em transporte público e trem de passageiros ajudarão nossas comunidades a atender às crescentes demandas de mobilidade, criar empregos com boa renda familiar, expandir a produção e as cadeias de abastecimento dos USA e crescer a economia”; perspectiva talvez inspirada em visões/propostas como as de Michael Cohen: “infraestrutura para inclusão” e “urbanização sustentável” como resposta à Covid-19, objeto de palestra em recente encontro do G-20.
Já sobre os planos ferroviários, setor que nos anos 70/80 recebeu aportes bilionários e passou por transformações profundas nesse meio século, há enfoques distintos: a Amtrak (estatal fruto desse processo, incidentalmente, completando 50 anos) endossa oficialmente o plano que “é o que esta nação estava esperando”, prometendo “reconstruir e melhorar o Corredor Nordeste e nossa Rede Nacional … levar serviços ferroviários intermunicipais de classe mundial com eficiência energética a até 160 novas comunidades em todo o país”. E acrescenta, até com certa euforia, que “agora é a nossa vez; vamos fazer o transporte ferroviário a solução”. A “Association of American Railroads – AAR” (que congrega as ferrovias privadas) também “apoia investimentos e esforços associados às mudanças climáticas”, mas revela “sérias preocupações” quanto à financiabilidade dos planos.
Cenários:
De fato, para viabilizar os recursos necessários para os planos (US$ 6 trilhões – PIB brasileiro de mais de 4 anos!), anuncia-se aumento da alíquota de tributos corporativos, de 21% para 28%, e uma não clara, mas sempre polêmica, “taxação dos mais ricos”. Medidas nunca simpáticas elas vêm recebendo críticas públicas e enfrentando resistências, como era de se esperar. Assim, numa sociedade bastante polarizada antevê-se dura batalha congressual; bem mais dura que da votação do “American Rescue Plan” em março, só aprovado com uso de voto de minerva da vice Kamala Harris que, constitucionalmente, preside o Senado (como era no Brasil até a Constituição de 1946):.
Nos USA não há algo similar às medidas provisórias brasileiras, o que faz com que a prévia aprovação congressual seja imprescindível. E, como os democratas têm escassa maioria na Câmara, e dividem o Senado meio a meio com os republicanos, o que finalmente será aprovado para viger é uma incógnita!
Há pressa, porém, e meta de aprovar os pacotes até julho; principalmente para não se aproximar muito das eleições de meio de mandato do ano que vem. Se possível no simbólico 4 de julho (dia da independência americana). Para minimizar os riscos, Biden já declarou estar preparado para negociá-los e, inclusive, estabeleceu balizas: “estou aberto a outras ideias, desde que não imponham nenhum aumento de impostos para pessoas que ganham menos de US$ 400 mil/ano”; não perdendo a oportunidade de lembrar que antes de Trump a alíquota era ainda maior: 35%.
Mas essa não é a única dúvida, preocupação ou crítica. A par das suspeições sobre reais objetivos (econômicos e políticos), fidelidade a compromissos de campanha, e responsabilidades administrativas, há, por exemplo, especialistas do setor que lançam dúvidas sobre a consistência dos planos. Outros sobre os trens de alta velocidade, argumentando que, “60 anos e bilhões de dólares depois não temos nada para mostrar”. Também os republicanos ampliam as críticas para aparentemente obter maior apoio na sociedade e se preparar para as votações: além do aumento da tributação, observam que “apenas cerca de 5 a 7% são estradas, pontes, portos e coisas que você e eu diríamos que são infraestruturas reais, e que tentamos aprovar no último governo com o presidente Trump”.
Biden (“o suave”) e Trump são visivelmente diferentes em estilo pessoal. Também na definição de prioridades e forma de governar; o que já enseja, nos meios acadêmicos e entre analistas, discussões sobre a natureza e extensão das rupturas que estão sendo ou serão efetivadas.
Monica de Bolle, todavia, explica em recente artigo que, ao contrário, “os planos de Biden são profundamente marcados pela tradição norte-americana de Estado indutor do desenvolvimento de logo prazo”; ideias “inspiradas na obra do primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton (“Report on the subject of manufactures” – 1791)”. E acrescenta: ideias que “vêm sendo revistas e reinventadas ao longo de toda sua história”, e que “mais tarde influenciariam não apenas a industrialização de seu país, mas a da Alemanha, a do Japão, a da França, chegando à América Latina nos anos 1930, quarenta e cinquenta”.
Os “Bidenomics”, como os planos passaram a ser chamados, interessam lógica e primariamente aos americanos e aos que lá vivem. Mas, pelos potenciais realinhamentos que eles podem causar: na i) competitividade, regras de comércio e geopolítica internacional; ii) nas matrizes energéticas, padrões de urbanização (p.ex., novas centralidades, aceleradas com a pandemia) e sustentabilidade; iii) nos modelos econômicos e processos decisórios de políticas públicas adotados; eles podem ter abrangência maior, principalmente tendo os USA o peso que tem no cenário mundial. Assim, as discussões em torno desses planos, tramitação congressual e implementação do finalmente aprovado certamente é de interesse de todos os países; como inúmeros artigos na mídia internacional já vêm indicando. Do Brasil, inclusive.