Paulo Resende*
Entre todos os países de dimensões continentais, o Brasil é o que apresenta a matriz de transportes de cargas mais desequilibrada, com mais de 60% de tudo o que transporta realizados por rodovias. Durante décadas o país manteve um patamar inferior de participação ferroviária na matriz, por volta de 20%, com predominância absoluta do minério de ferro. Na década de 1990, a rede pública foi transferida para a iniciativa privada, em regime de concessão, iniciando-se um período de maiores investimentos, mas ainda concentrados nos pouquíssimos eixos do minério, com um tímido avanço no setor do agronegócio. Nesse período, as ferrovias começaram a avançar para as fronteiras agrícolas, concomitantemente às reduções nas linhas efetivamente operacionais, passando de 29.600 km para pouco mais de 19.000 km. Dessa maneira consolidou-se um cenário ferroviário paradoxal com crescentes volumes em TKUs, resultantes de maiores exportações de minério, ao mesmo tempo em que quase metade das linhas existentes foram praticamente desmobilizadas.
Estudos realizados pela Fundação Dom Cabral projetam um crescimento de 21% para 41% no transporte ferroviário de granéis agrícolas, se as ferrovias atingirem 30% de participação total na matriz de transportes em 2035. Nesse setor, tal patamar resultará em redução de 28,5% nos custos logísticos em relação ao faturamento bruto das empresas, aproximando a competitividade brasileira dos seus principais concorrentes internacionais, notadamente os EUA. Ocorre que, até agora, o modelo de sustentação para tais avanços está pautado somente pelo regime de concessões. Apesar da inquestionável evolução das concessões, diferentes realidades espaciais, em paralelo às diversidades de exploração econômica macrorregionais, clamam pela também diversificação de modelos de exploração. Justifica-se, assim, a MP (Medida Provisória) nº 1.065/2021, que cria a possibilidade de exploração de ferrovias em regime privado por meio de autorização.
O objetivo é facilitar a exploração de infraestruturas ferroviárias, sem a necessidade dos complexos procedimentos licitatórios de concessão, resultando em uma forma mais simples e ágil de outorga. Nesse caso, uma empresa obtém o direito de explorar ferrovias, seja por iniciativa própria ou por meio de concorrência, a partir de procedimentos de chamamentos públicos. Apesar de menos complexas, as autorizações, ao contrário do que pregam determinados focos de resistência ou de manutenção do status quo, não dispensam a comprovação de regularidade jurídica e fiscal do empreendedor, estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental, como qualquer outro projeto que preza pela responsabilidade sobre questões sociais, ambientais e de exploração consciente de infraestruturas de transportes.
Recentemente, o PEF-MG (Plano de Ferrovias de Minas Gerais), conduzido pela Fundação Dom Cabral, detectou um efetivo potencial de crescimento da malha através de autorizações. Além disso, a modelagem de 80 propostas transformou-se em uma amostra que apontou, de maneira inequívoca, que implantações mais aceleradas de ferrovias contribuem para que a logística interna seja fator primordial na consolidação de diferenciais competitivos, principalmente em vetores de exportação e de ampliação de fronteiras de produção. Para tal, a diversidade de modelos de exploração ferroviária, com características integradoras de eixos econômicos, é fundamental. E a priorização de investimentos, associada a modelos ágeis de exploração, levará à racionalização da atividade logística nas diversas regiões, com ordenamento do território a partir dos potenciais de produção e consumo; ao fomento à multimodalidade, com o aproveitando máximo das vantagens de cada modal de transporte; à promoção de ganhos socioambientais, com a utilização das vantagens micro regionais e com redução dos impactos na emissão de poluentes; e à busca permanente do desenvolvimento econômico regional, com geração de empregos e de criação de riqueza.
O aumento da concorrência das empresas e das regiões, onde o transporte sai de uma condição periférica para se constituir em elemento de criação de competitividade sustentada no longo prazo, é evidente. Mas em um país que jamais passou de 3,5% de seu PIB (Produto Interno Bruto) em investimentos em infraestrutura de transportes fica difícil, principalmente porque não existem taxas de poupança interna capazes de responder à crescente demanda. Portanto, atrair a iniciativa e seus recursos para as ferrovias é a única saída. Isso significa que, entre poucos outros, a diversidade de modelos de exploração privada da infraestrutura é um caminho para maior oferta de ativos.
Como um país que vive décadas de escassez pode agora questionar novas possibilidades de investimentos? No caso do modelo de autorização, podem-se destacar vantagens que outros modelos não trazem, a saber. A integração e expansão da malha ferroviária pode se dar em trechos menores, promovendo acesso a áreas de produção no conceito de shortlines, em geral com ramais de distâncias inferiores a 250 km. Sinergias com aglomerados industriais e plataformas logísticas, permitindo que grupos empresariais integrem suas fábricas ou centros de movimentação de cargas com ramais ferroviários, no conceito de logística integrada. Formação de redes logísticas, em que os trechos autorizados possam conectar portos, hidrovias e até mesmo outros ramais ferroviários, formando-se malhas no conceito de “espinha-de-peixe”, com cadeias alimentadoras de troncos de longa distância.
O Brasil é a única das 20 principais economias mundiais que não está entre as 30 nações de melhor eficiência e produtividade logística de acordo com o ranking de competitividade do World Economic Forum. Elevar sua posição de maneira significativa é sair de uma média de investimentos nos últimos 40 anos de aproximadamente 0,8% do PIB ao ano para, pelo menos, 2,5% nos próximos 20 anos. Qualquer questionamento que coloque em risco tal necessidade é, no mínimo, prematuro e superficial. Obviamente, também se pode abrir mão de investimentos responsáveis em todos os sentidos. No entanto, questionar um modelo sob o risco de levar o país à continuidade da ineficiência é por si só historicamente incoerente.