Rafael Moreira Mota* e Saulo Malcher Ávila**
A inflação das décadas passadas serviu de cenário para o conto “Assalto”, de Carlos Drummond de Andrade. A reclamação a altos brados de uma senhora sobre o preço alto do chuchu desencadeou um assalto imaginário e a partir de teorias malucas de curiosos e transeuntes, deflagrou-se corre-corre e tamanha convulsão popular que tomou a feira, depois o bairro e as ruas próximas. Por fim, um garoto “escurinho” tocando matraca foi quem sofreu, pois, além do preconceito, foi soterrado por uma multidão revoltada com o ruído do instrumento que confundiram com um tiro.
Diversos entes da federação têm editado normas para promover o reequilíbrio econômico-financeiro de contratos de obras e serviços de engenharia, entretanto, na prática, são criadas confusões e que não alcançam solução, assim como em “Assalto”. O mais recente exemplo é o Manual de Metodologia de Revisão de Preços lançado na última quarta-feira (13), pela Secretaria de Estado de Obras e Infraestrutura do Distrito Federal.
Assim como outros, o manual surge de forma tardia, pois o desequilíbrio da equação econômico-financeira de contratos administrativos já era noticiado pelo setor produtivo, ao menos, desde março de 2020, em razão dos súbitos e expressivos aumentos de preço dos insumos da construção civil, um problema grave, que ameaça a entrega de serviços públicos à população e que permanece sem solução.
A matéria parece estar focada somente em contratos em execução, com saldo. Contudo, sabemos que no período de um ano e meio que antecedeu a edição do manual, diversos pleitos de reequilíbrio foram negados injustamente pela administração e muitos pactos foram encerrados sem que tenha sido sanado o problema na sua equação econômico-financeira, o que criará um legado de ações judiciais.
Para os pactos em execução, o manual não oferece uma solução razoável e com a celeridade que é necessária, uma vez que introduz um procedimento complexo, que deixa dúvidas e é excessivamente burocrático.
Por exemplo, o documento aparenta visar reavaliar somente itens da curva A, uma medida que pode não sanar problemas em determinados contratos, visto que o aumento dos preços dos insumos foi sistêmico. O formato de carta que deve ser utilizado pela contratada para pleitear a repactuação é peculiar, exigindo que sejam anexadas “notícias amplamente veiculadas pela imprensa” sobre a variação de preços, o que, em última análise, poderia ser sugerido como reforço e não posto como obrigação. Ainda, o manual exige a apresentação de laudo norteado por norma do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia, acompanhada de registro de responsabilidade técnica, o que dificulta o exercício do direito pelo particular, não está previsto em lei e cria custos.
Para problemas complexos, não existem soluções simples, entretanto, não é demais relembrar que o dono da obra é o Poder Público e que, como prevê a Constituição Federal, é seu o dever manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos que celebra, não sendo razoável legar ao particular excessivo ônus na busca de solução, como aparenta fazer o manual.
O caso do manual do Distrito Federal se soma a outras tantas medidas tomadas por entes de todo o Brasil e que redundam em uma nova barreira burocrática, cuja superação exigirá esforço do setor produtivo e de diversos profissionais, como orçamentistas e advogados, sem se falar da boa e velha resiliência para que, diferente do desfecho no conto “Assalto”, aqueles que contrataram como Poder Público não findem por levar a culpa pelo alto preço do chuchu, do aço, do material betuminoso, tijolo, argamassa…