Caio Figueiroa*
A Lei 8.987/1995 remete aos contratos de concessão o papel de disciplinar o instituto das prorrogações ordinárias. Se o faziam a contento, isso é pauta para outra discussão. É verdade que muitos entes federativos, a depender do serviço a ser concedido, editavam – e ainda editam – leis fixando prazo máximo para prorrogações, valendo-se da fórmula geral do “prorrogáveis por igual período”. Enfim, o instituto costumava receber um tratamento trivial. Sem novidades.
Por se tratar de um ato discricionário, é intuitivo pressupor que a Administração dava pouca relevância ao instrumento. É comum, aliás, achar contratos omissos ou com regulamentação precária sobre as prorrogações, em especial aqueles celebrados na década de 90. Calha que para os contratos de concessão, pautados por uma lógica de investimento, tempo é dinheiro.
Sendo o prazo um elemento econômico relevante a esses contratos, o legislador encontrou na prorrogação uma forma menos onerosa para ampliar investimentos no curto prazo, seja para a manutenção da atualidade, atendimento de demandas emergenciais ou mesmo para a expansão dos serviços1. Para tanto, antecipa-se a decisão de prorrogação ordinária, tendo como contrapartida do concessionário a realização de novos investimentos, desde que demonstrada sua vantajosidade.
Assim surgiram as primeiras legislações sobre o tema (Lei 12.783/2013 no setor elétrico e Lei 12.815/2013 no setor portuário). A mais recente e polêmica em âmbito federal, objeto da ADI 5.991, estabeleceu parâmetros para prorrogações dos contratos de concessão ferroviária e rodoviária (Lei 13.448/2017), nas modalidades contratual e antecipada.
Essas modalidades – cuja distinção entre uma e outra reside apenas quanto ao momento em que se concretizarão – estão sendo pulverizadas por outros entes federativos, a exemplo do Estado de São Paulo, com a Lei Estadual 16.933/2019, e de sua capital, que recentemente editou a Lei Municipal 17.731/2022. Todas replicam, com ajustes pontuais, o propósito, estrutura e conteúdo da Lei Federal 13.448/2017.
Ponto relevante das leis estadual e municipal, que certamente suscitará bons debates, diz respeito à previsão de emprego da prorrogação para mitigação de desequilíbrios (também conhecida como prorrogação extraordinária), sobretudo frente à necessidade de inclusão de novos investimentos.
Tal dispositivo confere uma nítida evolução frente ao diploma federal na medida em que amplia a finalidade da prorrogação tratada por lei específica. Alternativamente, não se nega a interpretação de que a legislação apenas positivou o mecanismo de reequilíbrio que é utilizado em larga escala nas concessões. Seja qual for a interpretação a prevalecer, não se menospreza a dúvida que se colocará para distinguir institutos de eficácia idêntica, quando da inclusão de novos investimentos: afinal, o que difere a prorrogação antecipada da prorrogação extraordinária? Estaria essa última sujeita aos mesmos estudos técnicos exigidos para aquela?2
Para não fugir da proposta deste texto, limito-me à seguinte provocação, aplicável especificamente à inclusão de novos investimentos, considerando dois casos hipotéticos: no primeiro, um desequilíbrio (decorrente de um novo investimento) pode ser compensado por mais prazo, hipótese convencional da extensão de prazo como mecanismo de reequilíbrio; no segundo, a adição antecipada de prazo pela possibilidade de prorrogação futura, por sua vez, pode ser compensada pelo concessionário mediante a realização do mesmo investimento que se pretendeu realizar ao caso anterior. Qual instrumento deve prevalecer?3
Em matéria de concessão, a inovação é sempre bem-vinda. O que preocupa são as reproduções irrefletidas. A partir dessa preocupação, procurei avaliar a lei municipal em face das bases federal e estadual; à evidência, por se tratar de legislação mais recente. Minha proposta será pontuar as críticas lançadas sobre a nova legislação, sem deixar de registrar problemas do mimetismo legislativo, mesmo que perceptíveis os avanços em relação às legislações base.
Antes de começarmos, é válido o registro: a prorrogação é (ainda) encarada como o patinho feio das concessões, pois afasta a licitação4. E nessa condição, em que pese replicar o teor de normas pré-existentes, o conteúdo da nova lei não passou ileso aos olhos da imprensa, ao menos por três perspectivas5.
De início, as críticas à lei municipal se voltam ao ato de “prorrogar contratos sem licitação”. Em segundo, com fundamento no “princípio da vinculação ao edital”, questiona-se a autorização para prorrogar contratos vigentes, ainda que omissos sobre tal possibilidade. Por fim, são feitas ressalvas acerca da abrangência que a lei paulistana confere à discricionariedade do gestor, considerando os riscos de ampliação indevida do objeto a depender da amplitude dos novos investimentos cuja incorporação for prevista como condição à prorrogação.
Para o primeiro ponto, não raro invoca-se o argumento de que licitar seria, em qualquer caso, mais adequado do que prorrogar contratos. É esse o mito jurídico que se coloca reiteradamente quando concessões passam pelo crivo de prorrogações (ainda que para fins de compensação em razão de desequilíbrios contratuais). A retórica da licitação como dever irrestrito, descolada do mundo dos fatos (art. 20 da LINDB) e do próprio ordenamento (art. 175, p. ú., inciso I da CF), encanta pela presunção de benefício à competição e à proposta mais vantajosa, relegando à prorrogação o caráter espúrio e sempre duvidoso.
A realidade, no entanto, tem demonstrado efeitos bastante distintos. Tanto em aspectos de eficiência (maior vantagem econômica ao erário, considerando o volume de investimentos e de outorga na prorrogação antecipada de ferrovias federais)6 quanto em termos de qualidade dos serviços (celeridade na modernização de frota com aprovação dos usuários, tendo em vista a prorrogação antecipada do Corredor ABD em São Paulo)7, há precedentes que ratificam as conclusões vertidas nos estudos técnicos que antecederam as prorrogações: a presença de vantajosidade em detrimento de nova licitação.
E essa constatação ganha mais força quando os investimentos que se pretende absorver não são passíveis de delegação autônoma, por inviabilidade econômica ou mesmo operacional. Daí dizer que existem outras maneiras de alcançar o serviço adequado e condições mais benéficas que não só pela licitação.
Ao segundo ponto, abre-se brecha para discutir se a previsão legal acerca da possibilidade de prorrogação “ainda que não conste previsão expressa no edital ou no contrato” violaria a vinculação ao edital. A redação replica o teor da Lei Estadual 16.933/20198, cujas discussões sobre sua validade, hoje já existentes, perpassa ao menos por duas questões antecedentes.
A primeira, como já tive a oportunidade de sustentar9, decorre de uma análise conjuntural, pois é natural se deparar com contratos omissos sobre prorrogações, sobretudo os mais antigos. Isso ocorre em razão do contexto em que esses contratos foram modelados, fator suficiente para questionar o quão intencional se deu a omissão de cláusulas de prorrogação nesses ajustes (art. 22, caput e §1º da LINDB).
A segunda questão, é de abrangência temporal, porém complementar à questão anterior. É que a incidência da nova lei pressupõe uma análise de conteúdo dos contratos de concessão em vigor. Se já disciplinam algo sobre prorrogações, preza-se pela primazia do pacto concessório (que veda ou autoriza a prorrogação), em respeito ao ato jurídico perfeito. Diferentemente será a solução para contratos omissos, caso em que inexistirá vedação à aplicação integral da lei. E nem se diga que tal admissão frustraria o direito dos antigos licitantes ou resultaria em proposta em termos distintos da licitação. A prorrogação é ato discricionário da Administração e não gera direito subjetivo aos seus contratados, ainda que prevista no contrato original10.
É no terceiro ponto, contudo, que residem os problemas do mimetismo legislativo, ao mesmo tempo em que abre portas para uma imprescindível discussão, a qual merece ser endereçada em estudo específico. O reiterado argumento do dever de “preservar o objeto” ou “manutenção da natureza do objeto” comporta alta carga subjetiva11, que invariavelmente não resolve as dificuldades do gestor no momento de decidir se o pacote de investimentos propostos em prorrogações está em conformidade com a lei e o direito.
A exemplo das legislações federal e estadual, a lei paulistana condiciona o uso da prorrogação, inclusive a da extensão contratual, à inclusão de “investimentos não previstos no instrumento contratual vigente”, considerando aqueles “com vistas à viabilização da exploração conjunta de serviços, ganhos de escala e escopo derivados do compartilhamento de infraestruturas públicas e aproveitamento de sinergias operacionais” (art. 5º)12. Nas inovações de texto, falou bonito. Mas assim como nas leis antecessoras, pouco disse.
Essa lacuna é o que confere margem para as mais variadas construções interpretativas quando da análise de regularidade de alteração dos contratos pelo controle externo13. A falta de critérios na lei pode justificar modificações descabidas, como também condenar aquelas que realmente façam sentido. Daí que, na minha leitura, a legislação perdeu a oportunidade de tentar delimitar parâmetros objetivos à incorporação de novos investimentos nos contratos de concessão, antecipando desde já minhas desculpas ao leitor por pretender abordar tal discussão em um próximo artigo.
Em resumo, ainda que se reconheça a inaplicabilidade dos parâmetros da Lei 8.666/1993 (e, por certo, da Lei 14.133/2021) para inclusão de novos investimentos, a lei municipal, assim como suas antecessoras, não oferece critérios objetivos para dimensionar se os investimentos propostos estão em conformidade com o instituto que se pretende utilizar (se prorrogação ordinária ou extraordinária) ou com os limites razoáveis para alteração dos contratos de concessão.
Se, hoje, a segurança jurídica reside no reconhecimento da certeza das previsíveis alterações das concessões ou na contratualização do procedimento que se seguirá quando surgir tal necessidade, a insegurança se desloca às dificuldades práticas ao manejo dos instrumentos de gestão da mutabilidade. Essa constatação, preliminar, invariavelmente demanda enfrentar discussões retóricas, que ainda engessam esses contratos. É uma discussão sobre a eficácia do direito e seus institutos. É falar sobre as prorrogações – não mais como patinho feio – como um instrumento contratual e/ou legal à disposição do gestor público e está tudo bem.