Adalberto Vasconcelos*
A celebração de termo aditivo de relicitação é caminho sem volta? É cabível e desejável, sobretudo diante dos casos concretos, fatiar o pagamento da indenização ao atual concessionário nas partes incontroversa e controversa?
Retorno, mais uma vez, ao debate acerca do instituto da relicitação, criado pela Medida Provisória n.º 752, de 24 de novembro de 2016, convertida na Lei n.º 13.448, de 5 de junho de 2017. No centro da discussão, no momento, dois temas cruciais: (i) “a aderência ‘irrevogável e irretratável’ ao termo aditivo de relicitação seria caminho sem volta?”; (ii) “É possível e desejável, sobretudo diante dos casos concretos, fatiar o pagamento da indenização ao atual concessionário nas partes incontroversa e controversa?”.
A relicitação é acordo de vontades em que as partes manifestam a concordância com o encerramento antecipado do contrato de concessão, haja vista o não cumprimento das obrigações contratuais ou a demonstração da impossibilidade de adimpli-las, assegurando-se a continuidade da prestação do serviço até a realização de nova licitação do objeto contratual concedido.
Com efeito, o caráter “irrevogável e irretratável” conferido ao termo aditivo de relicitação foi concebido, juntamente com outras características, com o nítido propósito de evitar que a concessionária se utilizasse do mecanismo de forma oportunista para, ao longo da execução do contrato, obter a suspensão temporária de obrigações e de sanções passíveis de aplicação, por parte do órgão regulador, e, posteriormente, desistir da devolução do ativo.
Desse modo, a manifestação de vontade externada pela concessionária, por ocasião da celebração do termo aditivo de relicitação, a vincula, a princípio, em definitivo. Em consequência, a concessionária não pode unilateralmente rescindir o termo aditivo.
Algumas situações, no entanto, permitem afastar a irrevogabilidade e irretratabilidade do termo aditivo pactuado. A primeira delas, sem dúvida, ocorre quando há o concurso de vontades das partes em resolver o ajuste. Enquanto acordo consensual, nada obsta que as partes, por consenso, logo, bilateralmente, optem pelo distrato. Nesse mesmo sentido, posicionamento sustentado Justen Filho e Pereira (2023)1:
A irrevogabilidade e irretratabilidade, tal como previstas na Lei 13.448, não impedem a reversão do processo de relicitação. São limitações impostas ao concessionário, não a escolhas promovidas consensualmente entre poder concedente e concessionário. A relicitação não é unilateralmente revogável nem retratável, mas é reversível mediante acordo entre as partes. O poder concedente tem a prerrogativa, senão o dever, de adotar a solução mais compatível com os interesses públicos subjacentes à concessão. A evolução dos fatos pode evidenciar que a alternativa mais satisfatória é o encerramento do processo de relicitação e o ajuste das condições contratuais para superar os problemas anteriores. (grifos não constantes do original)
Conforme já abordei no meu primeiro artigo publicado na Agência iNFRA, em maio de 20212, há ainda a possibilidade de o Poder Público vir a considerar que o prosseguimento do novo certame é prejudicial ao interesse público, posto “representar concretização de desvantagem ao erário e aos usuários do serviço público concedido”. Na ocasião, manifestei o seguinte entendimento:
Essa possibilidade, ainda que não se encontre explícita na Lei n.º 13.448/2017, deflui dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, bem como da aplicação subsidiária do art. 78, inciso XII, da Lei n.º 8.666/1993 – que corresponde ao art. 137, inciso VIII, da Lei n.º 14.133/2021, que é a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos –, que autoriza a rescisão unilateral de contrato administrativo – no caso em exame, do termo aditivo – pela administração pública por razões de interesse público. Ora, verificada alteração substancial em condições fáticas ou jurídicas existentes à época da assinatura do aditivo contratual que tornem excessivamente oneroso ou desvantajoso para o poder concedente ou para os usuários o prosseguimento da relicitação, afiguram-se presentes condições que justifiquem a rescisão do termo, sem prejuízo de que o concessionário original possa se manifestar, em respeito ao contraditório que lhe será devido na hipótese, e de que sejam recompostos os prejuízos que venha a sofrer.
Além disso, o poder concedente deve justificar o prejuízo potencial ao interesse público da nova contratação, embasado em estudos que demonstrem a vantajosidade econômico-financeira de não se realizar novo certame licitatório e as condições fáticas e/ou jurídicas que alteraram as motivações das decisões administrativas precedentes (qualificação do ativo no PPI e assinatura do termo aditivo), propondo ao concessionário original alguma forma de “repactuação” ou reequilíbrio que possa compor os interesses mútuos e gerar menor prejuízo aos usuários e menor impacto ao erário, sempre amparado no arcabouço legal e regulatório e no contrato de concessão. (grifos não constantes do original)
A avaliação acerca da “necessidade”, da “pertinência” e da “razoabilidade” realizada para justificar a instauração do processo de relicitação pode ter se modificado ao longo da elaboração dos estudos relativos à nova licitação ou em virtude de circunstância fática incidente sobre as condições de execução do contrato vigente, podendo o Poder Público – alguns casos, devendo o Poder Público –, à luz dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, desistir unilateralmente da relicitação.
A complexidade da avaliação de um processo dessa natureza não permite ao Poder Público, antecipadamente e com todas as consequências associadas, avaliar o custo-benefício do mecanismo no caso concreto, de modo que informações relevantes obtidas ao longo do procedimento de relicitação e da estruturação da nova concessão podem repercutir na análise até então realizada.
É possível que, em circunstâncias reais, o Poder Público se depare com situações em que o valor mínimo de outorga do novo procedimento licitatório não seja suficiente para arcar com o montante de indenização pelos investimentos realizados pelo atual concessionário e não depreciados, com a necessidade de comprometimento de recursos financeiros da União e, consequentemente, maior pressão sobre o já desafiador cenário fiscal brasileiro, ou que as circunstâncias macroeconômicas atuais indiquem tarifas superiores às atualmente vigentes, o que ocasionaria perda de bem-estar para o usuário dos serviços concedidos.
Particularmente no caso dos contratos da 2ª e 3ª rodadas de concessões de aeroportos, em que a Infraero detém 49% das ações das concessionárias, veja-se a relevância de o governo considerar a eventual destruição de valor da empresa estatal que a relicitação pode vir a ocasionar. Ademais, também deve ser cotejado no processo decisório do Poder Público, entre outros aspectos, a mitigação de efeitos em relação ao interesse público concretizado nas participações detidas pela Infraero nos referidos aeroportos.
O momento, a bem do interesse público qualificado e respeitados os limites à mutação contratual, com a máxima vênia a pensamentos divergentes, pode inclusive ensejar a repactuação de obrigações contratuais, por meio, entre outras possibilidades, da celebração de termos de ajustamento de conduta, na amplitude que lhe foi conferida pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no dizer do próprio Tribunal de Contas da União – TCU, em voto proferido pelo i. Ministro Bruno Dantas, nos autos do TC 019.064/2022-5:
43. De fato, o art. 26 da LINDB traz tipicidade mais ampla que o permissivo anterior – eliminação de irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público – justamente com o objetivo de estabelecer margens mais largas de liberdade para se definir a estratégia negocial que melhor se compatibilize com o interesse público.
44. A norma trata de reconhecer que a eficiência administrativa requer formas mais flexíveis para lidar com a dinamicidade e a complexidade em certos terrenos do direito público, como os contratos de parcerias e investimentos, que são mutáveis por natureza.
45. Nessa linha, Flávio Amaral Garcia destaca que a “incompletude e a existência de lacunas nos contratos, notadamente nos contratos de longa duração, implicam forçosamente em um maior grau de flexibilidade e elasticidade nos contratos, a fim de justificar estruturas endógenas que confiram às partes maior adaptabilidade às circunstâncias, aos eventos ou às contingências que não foram previstas na regulação contratual ex ante.” (GARCIA, Flávio Amaral. A mutabilidade nos contratos de concessão no Brasil. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ramo do Direito Público, julho de 2019, p. 102.) (grifos não constantes do original)
Apesar da prudência e zelo do i. relator em limitar extrapolações do entendimento firmado no caso concreto para além dos seus contornos, trata-se de racionalidade que traz soluções que podem melhor realizar o interesse público, sobretudo em situações em que a extinção antecipada do contrato de concessão, seja consensual ou litigiosa, se revele, ao fim e ao cabo, desproporcional e desarrazoada.
Esse racional nada mais é do que buscar e concretizar o interesse público primário, totalmente alinhado a contratos de parcerias de longa duração, em que o princípio da eficiência e da continuidade da prestação de serviços têm que se materializar, possibilitando certa flexibilidade nos contratos em execução.
Ressalte-se que o Tribunal de Contas da União – TCU, almejando a concretização do interesse público primário, de forma inovadora e colaborativa com os gestores federais, alicerçado no princípio da eficiência, criou a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos e editou a Instrução Normativa TCU n.º 91, de 22 dezembro de 2022, a qual instituiu no âmbito da Corte de Contas “procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal”.
Nesse mesmo sentido, o Ministério dos Transportes criou grupos de trabalho, com a participação de representantes do ministério e da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, com o objetivo de discutir soluções consensuais para contratos de concessão de rodovias em processo de relicitação ou caducidade. Segundo consta no site da pasta3, a intenção do Governo “é elaborar relatórios com cenários que permitam a retomada das obras e do investimento privado”, seguindo “orientação da Presidência da República, por meio da Casa Civil”. Os documentos produzidos pelos referidos grupos “serão protocolados para análise da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) do Tribunal de Contas da União (TCU)”.
Tais medidas se coadunam com as necessidades atuais do país, em que é necessário destravar gargalos logísticos a fim de propiciar crescimento sustentável e competitivo do Brasil.
Vale destacar que eventual renegociação contratual não significa necessariamente romper com as condições originárias do certame, possibilitando questionamentos dos demais participantes. São legítimos e totalmente pertinentes questionamentos acerca de alterações contratuais durante a execução do contrato em que não houve mudanças significativas no cenário macroeconômico ou em que o ajuste não sofreu impacto de evento imprevisível e extraordinário, por exemplo. No entanto, a depender dos contornos contratuais, verificada a alteração substancial das condições fáticas, jurídicas e econômicas incidentes sobre as condições de execução do ajuste em relação à época da licitação – concretamente, pode-se citar a crise econômica de 2014 a 2016 e a pandemia da Covid-19, somente como exemplos –, é justificável o Poder Público buscar soluções de continuidade para da execução contratual com o fito de atingir o interesse público primário, notadamente por se tratar de contratos de longo prazo e com investimentos de grande monta já concretizados.
Dessa forma, no âmbito das competências legalmente dirigidas aos atores públicos participantes do processo de relicitação, a par de ser de responsabilidade da pasta ministerial setorial o encaminhamento de eventual proposta de desistência no prosseguimento da processo de relicitação, caberá exclusivamente ao Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos – CPPI opinar, previamente à deliberação do Presidente da República, quanto à conveniência e à oportunidade de o Poder Público desistir unilateralmente da relicitação ou bilateralmente por concurso de vontades das partes em resolver o ajuste. Ressalte-se que o art. 6º do Decreto n.º 9.957/2019 deu competência ao referido Conselho recomendar ou não a qualificação do ativo no PPI para fins de relicitação, portanto, é o próprio Conselho que possui a competência para recomendar sua exclusão, ou seja, essa avaliação é exclusiva do CPPI, não podendo ser invocada pela agência reguladora setorial e nem pela pasta ministerial pertinente.
O outro tema, o qual já debrucei em pelo menos dois artigos publicados, diz respeito à seguinte indagação: “É possível e desejável, sobretudo diante dos casos concretos, fatiar o pagamento da indenização ao atual concessionário nas partes incontroversa e controversa?”
Primeiramente, deve-se recorrer ao estrito texto legal, em que a Lei n.º 13.448/2017 não segrega o valor da indenização em “valor reconhecido ou incontroverso” e “valor controverso”, ou seja, a indenização total dos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados é condição legal e necessária para o início do novo contrato de parceria (§3º do art. 15 da Lei n.º 13.448/2017), não podendo ser modificado esse requisito essencial para a relicitação por norma infralegal.
Dessa forma, em prosperar a indevida sistemática de “pagamento parcelado” da indenização ao anterior concessionário estar-se-á diante de risco moral (moral hazard) inverso, ocasionando insegurança jurídica e imprevisibilidade na implementação do instituto da relicitação, o que certamente afetará a credibilidade do referido processo e afastará investidores para os futuros certames licitatórios de ativos de infraestrutura.
O segundo ponto a ser destacado diz respeito ao valor de indenização ser um dos inputs para os pertinentes Estudos de Viabilidade Técnica, Econômico-financeira e Ambiental – EVTEA da nova licitação, conforme prevê o inciso VII do §1º do art. 17 da Lei de Relicitações, in verbis:
Art. 17 O órgão ou a entidade competente promoverá o estudo técnico necessário de forma precisa, clara e suficiente para subsidiar a relicitação dos contratos de parceria, visando a assegurar sua viabilidade econômico-financeira e operacional.
§ 1º Sem prejuízo de outros elementos fixados na regulamentação do órgão ou da entidade competente, deverão constar do estudo técnico de que trata o caput deste artigo: (…)
VII – o levantamento de indenizações eventualmente devidas ao contratado pelos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados”. (grifos não constantes do original)
Ademais, está prevista na Lei a possibilidade de o novo concessionário pagar diretamente ao concessionário anterior a eventual indenização pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados (inciso I do §1º do art. 15 da Lei n.º 13.448/2017).
Em sua concepção original, eventual indenização devida pelo Poder Público ao concessionário anterior, necessariamente, seria paga pelo novo contratado. Portanto, sem o comprometimento direto de recursos públicos e sem a necessidade de submeter-se aos ritos orçamentários e financeiros a que se sujeita a despesa pública.
Em que pese esse racional tenha sido externado na exposição de motivos EMI n.º 00306/2016 MP MTPA, de 7/11/2016, que acompanhou a Medida Provisória n.º 752/20161, formalmente, no texto da Lei de Relicitações, o pagamento de eventual indenização pelo novo contratado consta como possibilidade, a ser definida nos termos e limites previstos no edital de relicitação, o que abriu inapropriadamente margem para a construção de novas sistemáticas de pagamento de indenização, com elevado nível de incerteza, tanto para o atual quanto para o futuro concessionário, certamente influenciando no processo concorrencial do novo certame licitatório.
Assim, considerando a supra disposição legal que estabelece que o pagamento da indenização devida ao concessionário anterior é condição para o início do novo contrato de parceria (art. 15, §3º, da Lei n.º 13.448/2017), o que se tem, nessa hipótese, é a incerteza quanto ao momento em que se dará o pagamento da indenização ao anterior concessionário e quanto ao início do novo contrato de concessão, além, é claro, do risco fiscal criado para a União.
Dessa forma, indubitavelmente, é necessário o levantamento total do valor da indenização para servir de input, conforme mencionado, para o estudo técnico requerido pelo art. 17 da Lei nº 13.448/2017. Ainda, de acordo com o §3º do art. 11 do Decreto n.º 9.957/20192, é necessária a certificação do cálculo da indenização por empresa de auditoria independente de que trata o parágrafo único do art. 7º do aludido dispositivo. Assim, para concluir os estudos necessários a promover nova licitação do ativo devolvido, deve-se ter o levantamento conclusivo do valor das indenizações eventualmente devidas, pelo Poder Concedente, ao anterior concessionário, incluindo o resultado de eventuais controvérsias a serem dirimidas em sede de arbitragem.
Ressalte-se que este último ponto – resultado dos pleitos controvertidos levados à arbitragem – é fundamental para os casos em que os valores em disputas são muito significativos, podendo comprometer o erário e as demais políticas públicas em caso de o Poder Público ter que arcar com os referidos pagamentos. Explico!
Ora, se os pleitos em arbitragem fossem de controvérsias de valores marginais, seria pertinente e justificável a quitação dos valores reconhecidos pelo ente regulador setorial como condição única para prosseguimento do certame licitatório do novo entrante, haja vista não ter impacto significativo eventual pagamento de valores residuais por parte do Tesouro. No entanto, conforme se verifica nos casos concretos de ativos em relicitações, são diversos pleitos de reequilíbrios questionados pelos concessionários e com valores vultosos em disputas, em que decisão arbitral desfavorável ao Poder Concedente poderá ocasionar sacrifício injustificado para os contribuintes por meio de quitação da dívida – friso, desnecessariamente acometida à União – pelos escassos recursos públicos.
Dessa forma, não parece ser razoável e alinhado ao interesse público prosseguir o certame licitatório sem o resultado das controvérsias levadas à arbitragem e, posteriormente, a inclusão do resultado decorrente da disputa, conjuntamente com o valor de indenização apurado e reconhecido pelo ente regulador, como inputs nos estudos técnicos previsto no inciso VII do §1º do art. 17 da Lei n.º 13.448/2017.
Essas duas reflexões são cruciais para o melhor encaminhamento dos diversos ativos dos setores rodoviários e aeroportuários em processo de devolução amigável por meio de relicitações. A solução a ser trilhada deve perseguir o interesse público primário, a geração de empregos, a execução de investimentos para ofertar prestação de serviços adequado aos usuários, levando-se em conta que concessões de serviços públicos são ajustes de longo prazo e, portanto, sujeitas a diversas variações imprevisíveis e extraordinárias durante a execução contratual.