Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Um apelo dramático, informado por ofício às 22h47 do dia 5 de dezembro, revela a situação de descalabro orçamentário a que chegou este ano o órgão responsável pelas rodovias federais brasileiras no fim da gestão do presidente Jair Bolsonaro.
O diretor-geral do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), Antonio Leite dos Santos Filho, um general da reserva do Exército, pediu oficialmente ao ministro da Infraestrutura, Marcelo Sampaio, um servidor concursado da pasta que assumiu o ministério em abril, para que o orientasse sobre como proceder diante do fato de não ter dinheiro para pagar despesas já realizadas.
“A situação de inadimplência que esta Autarquia se insere é extremamente preocupante”, informa no ofício classificado como “urgentíssimo”.
Numa espécie de “escolha de Sofia”, o diretor-geral pergunta ao ministro se deve mandar parar a manutenção das estradas ou o pagamento de outros serviços e investimentos do órgão, como as contas de energia de túneis, dos radares de velocidade, das obras de implantação, entre outras.
“Por oportuno, ressalto que em qualquer das situações expostas, seja não remunerando nenhuma empresa contratada, seja suspendendo contratos essenciais e em andamento, impõe ao gestor a obrigação de informar e solicitar auxílio na busca de solução ao problema apresentado, razão pela qual, respeitosamente, solicito manifestação desse MINFRA em caso de haver alguma providência conhecida para solucionar o problema apresentado e evitar a forçosa paralisação dos contratos de obras e serviços desta Autarquia”, informa o ofício, disponível neste link.
Naquele momento, segundo o Ofício, o DNIT tinha R$ 492 milhões de dívidas a descoberto. Ou seja, o órgão deu ordem aos contratantes para executar o serviço ou obra, mas não tinha dinheiro para fazer o pagamento das notas fiscais emitidas. Essa é uma situação limite no serviço público, inclusive com risco de responsabilização do gestor. E a projeção naquele dia era que o DNIT terminasse 2022 com R$ 1,4 bilhão “a descoberto”.
Qualquer órgão público só pode mandar executar um serviço se há previsão orçamentária para pagar esse gasto. O DNIT tinha a previsão orçamentária. Mas é necessária uma outra previsão, que é o limite financeiro (dinheiro disponível na conta) para gastar, para que se tenha a segurança de que o que está permitido no orçamento e for executado será pago. Nesse caso, o DNIT não tinha.
Ao longo do ano, o Ministério da Economia, que controla o limite financeiro, foi reduzindo esse valor, mês a mês. Os bloqueios e cortes são comuns ao longo do ano e, em geral, são recompostos no fim do período. Alegando isso e diante da necessidade de tentar manter minimamente os serviços nos seus contratos, o DNIT vinha autorizando que contratos fossem executados acima do limite financeiro, na esperança de que se repetisse o que ocorreu nos anos anteriores.
O descalabro que se tornou o Orçamento da União em 2022 fez com que esse limite financeiro ficasse sem ser alterado praticamente até a semana passada, levando vários órgãos públicos a situações limites como essa do DNIT. Na semana passada, houve um desbloqueio e uma parte dos recursos começou a chegar. (A resposta do órgão à Agência iNFRA, disponível neste link, diz que “não há entraves que ameacem a conservação das rodovias”.)
A estimativa é que o DNIT tenha recebido cerca de R$ 700 milhões e já começou a fazer os pagamentos que estavam pendentes de outubro. O valor não resolve tudo, mas foi considerado entre empresas que atuam no órgão um alívio momentâneo.
Período crítico
Sem ele, haveria ainda mais dificuldades para fazer a transição do ano, que é sempre o período mais crítico para as rodovias do país. A troca de ano, início do verão, é quando ocorrem as chuvas mais fortes nas regiões onde a malha está concentrada. Além disso, o período marca o início do envio do interior para os portos da soja, o principal produto agrícola do país para exportação.
Para piorar, as empresas de manutenção normalmente ficam o mês de janeiro sem receber, em geral porque o governo está fazendo os atos exigidos para iniciar a execução do orçamento do ano. A manutenção, portanto, tem que ser feita preventivamente e as empresas precisam ter caixa para suportar o mês de atraso. Se não recebem no fim do ano, a bomba relógio está armada.
O quadro normal está sendo agravado neste ano. As chuvas estão mais fortes e a previsão é de mais uma safra recorde, que seguirá sendo transportada prioritariamente por rodovias, já que praticamente não se fez ferrovia nos últimos quatro anos (os contratos assinados ainda não resultaram em mais ferrovias transportando).
Mas há um outro fator a colaborar para que as rodovias federais estejam ainda mais ameaçadas. A redução sistemática do orçamento do DNIT nos últimos anos piorou a qualidade da manutenção.
Volta aos anos 1980
A piora já é nítida para quem trabalha no setor. Um experiente servidor que lida com o sistema rodoviário de transportes há mais de duas décadas, inclusive no setor privado, conta que o nível das rodovias hoje já se aproxima do estado de abandono a que ficaram relegadas com a crise dos anos 1980.
“Naquela época, o normal era a estrada estar toda esburacada. Diferente era quando não tinha buraco”, conta.
Pesquisas do próprio DNIT – com dados encaminhados para a equipe de transição de governo – e também do setor privado (CNT, 2022), apontam a crescente piora na qualidade das rodovias, especialmente no que se refere à qualidade do asfalto.
Isso se deve ao fato de que, a partir do fim dos anos 1990, paulatinamente, o país foi recuperando as rodovias até se chegar ao seu melhor nível de qualidade por volta de uma década atrás.
Um programa de manutenção aprofundada das rodovias, denominado Crema, foi construído na Casa Civil em 2004, sob coordenação da então ministra Dilma Rousseff. Em uma década, fez com que as estradas federais alcançassem seu melhor patamar de qualidade.
Nem tapa buraco
A partir de 2015, com as sistemáticas reduções orçamentárias, o programa foi sendo abandonado. Hoje, quase 95% da malha rodoviária federal tem os contratos de manutenção mais simples, uma espécie de tapa buraco melhorado denominado P.A.T.O. Sem a manutenção mais aprofundada, a estrada se deteriora e em algum momento nem o tapa buraco consegue ser eficiente.
É o momento de que nos aproximamos, temem os servidores que participaram da equipe de transição de governo. Segundo um servidor que apoiou a transição na pasta, há uma perda de patrimônio público estimada na casa dos R$ 10 bilhões ao ano, quando se chega a essa situação. Isso ocorre porque, quando o Crema não é feito no momento tecnicamente ideal, significa que a deterioração fica maior. E, se fica maior, o custo para reformar a estrada depois também fica maior, o que leva a essa estimativa de prejuízo.
O fundo do poço pode ter sido este mês. Isso porque a previsão de orçamento do DNIT para 2023 enviada pelo governo com a proposta de orçamento, que está na faixa dos R$ 4 bilhões, é menor que os gastos deste ano (algo entre R$ 6 bilhões e R$ 7 bilhões).
Se o orçamento de 2023 fosse o proposto, segundo um integrante da equipe de transição, significaria que o órgão teria que paralisar algo na casa dos 30% dos contratos de manutenção existentes já no início do ano. Ou seja, por volta de 20 mil quilômetros de rodovias vão ficariam até mesmo sem tapa buraco.
Mas o orçamento de investimentos do Ministério da Infraestrutura foi suplementado para R$ 17,3 bilhões, com a aprovação da PEC da Transição. A maior parte desse recurso vai para o DNIT. Está em linha com o que a atual gestão disse ao grupo de trabalho da transição ser o mínimo necessário para cuidar das rodovias e dos contratos de obras em 2023.
Sem recurso para emergência
Mas os problemas podem ser maiores que o esperado, com os estragos provocados pelas fortes chuvas desde o início da primavera, que têm destruído trechos de rodovias em vários estados. Neste ano, o DNIT não tinha recursos sequer para intervenções necessárias para reabrir o tráfego plenamente em algumas áreas.
O caso mais emblemático é o da BR-277/PR. Era uma rodovia concedida até 2021, quando o contrato se encerrou e o governo local pressionou o ministério para não permitir que a concessionária continuasse. A manutenção sobrou para o DNIT, que já vinha com o orçamento curto e teve que receber 1,9 mil quilômetros de vias cujos contratos de concessão não foram renovados no estado.
Houve um deslizamento de terra nessa rodovia em outubro deste ano e o DNIT informou que não tem recursos para fazer as intervenções necessárias para retomar a fluidez normal.
Com isso, um trajeto entre a capital do estado e o litoral, que era feito em pouco mais de uma hora, passou a durar mais de cinco horas, o que está praticamente isolando algumas regiões turísticas do estado. Sem opção, o governo do Paraná decidiu assumir a obra para tentar recuperar a via federal.
Maior dor de cabeça
Por casos como esse, o DNIT se tornou a maior dor de cabeça da transição ministerial no setor de infraestrutura de transportes, conforme mostra o relatório da transição de governo, divulgado nesta quinta-feira (22), disponível neste link.
O relator do Orçamento da União de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, citaram o órgão várias vezes ao longo do processo de negociação da PEC da Transição como exemplo de descalabro do orçamento proposto pelo governo.
Marcas por longo tempo
Apesar da ampliação do orçamento de investimentos para 2023, os oito anos de reduções orçamentárias ainda vão deixar marcas no órgão por um longo tempo. A “escolha de Sofia” que o diretor-geral pediu ao ministro para fazer por ofício no início deste mês já vem ocorrendo no órgão há alguns anos.
Segundo a advogada Elisa Gianella, sócia da PGD Sociedade de Advogadas, as empresas contratadas pelo DNIT são surpreendidas em vários momentos da execução do contrato com falta de orçamento ou de pagamento. Os funcionários do órgão têm que escolher, diante dos limites, quem pode seguir ou tem que parar. Com isso, as empresas ficam impedidas de planejar as obras, o que piora a execução e encarece os custos.
“Eu não conheço um contrato do DNIT que tenha sido executado dentro do período que foi planejado”, disse a advogada.
De acordo com ela, não há critério claro para se escolher quais obras vão ou não receber recursos e quando. Com isso, as empresas muitas vezes pedem para sair do contrato e, quando judicializam a questão, o órgão “lava as mãos” e diz que não é responsável pelo orçamento que recebe.
“Isso gera uma insegurança jurídica muito grande e certamente eleva o custo das obras”, afirmou.
Por esses atrasos, duas associações que representam empresas com contratos no órgão – a Anetrans (Associação Nacional das Empresas de Engenharia Consultiva de Infraestrutura de Transportes) e a Aneor (Associação Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias) – alertaram a diretoria.
“Informamos que a falta de recursos financeiros para o pagamento das obras e dos produtos já executados causa um impacto brusco no fluxo de caixa das empresas, gerando grandes prejuízos. Tais prejuízos podem significar, em alguns casos, atraso na execução das obras e posteriormente a abertura de PAARs, que tem se tornado um hábito constante e desordenado das Superintendências Regionais do DNIT, interpretando para si atrasos como descumprimento contratual, sendo que a causa inicial, desses supostos descumprimentos contratuais, tem sido o atraso por falta de recursos financeiros para pagamento das obras e produtos”, diz ofício das associações assinado em novembro, tratando sobre o problema financeiro de 2022.
Situação gerencial boa
Paradoxalmente, os responsáveis pela equipe de transição encontraram um órgão em situação gerencial considerada boa. A avaliação é que os problemas do DNIT são causados pela falta de orçamento e que alertas formais foram dados ao longo dos anos de que a situação ficaria insustentável diante dos cortes.
As críticas sobre a situação a que chegou recaem sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas, eleito governador de São Paulo. Ex-diretor-geral do DNIT no período que o órgão mais executou (2011 a 2014), Tarcísio não quis “comprar briga” com o Ministério da Economia por mais recursos.
A crença do ministério era de que o programa de concessões de rodovias andaria com velocidade. Em 2021, após fazer três concessões em três anos, o ministério anunciou que faria 14 concessões em 2022, que somavam 8,8 mil quilômetros. O informativo com esses dados está neste link.
Com menos rodovias sob seu controle, o DNIT teria mais espaço orçamentário para cuidar do que havia sobrado para gestão pública, era a previsão. A realidade foi bem diferente: apenas uma das concessões previstas foi feita (de 1,3 mil quilômetro), e 1,9 mil dos 3,4 mil quilômetros de vias do Paraná que seriam concedidas voltaram para o órgão, já com orçamento limitado.
“Eles preferiram cuidar do marketing”, disse um dos servidores que apoiou a transição.