Análise: desafio na renovação de distribuidoras é criar transição energética equilibrada

Roberto Rockmann*

O desafio do governo federal na CP (Consulta Pública) de renovação das concessões das distribuidoras de energia, cujo relatório final deve ser enviado ao TCU (Tribunal de Contas da União) nos próximos dias, é destravar um processo de transição energética equilibrada. Essa é uma tarefa que abrangerá não apenas o processo de renovação das concessões conduzido pelo governo federal, mas também a agência reguladora e o Congresso e exigirá articulação entre as esferas, segundo análises de especialistas presentes em eventos do setor na semana passada.

“Estamos trabalhando nas diretrizes que permitam à ANEEL criar um contrato que possa ser adequado e flexível para esse momento de transformação”, disse o secretário-executivo adjunto do MME, Fernando Munhoz, em evento do TCU na quinta-feira passada.

“A descarbonização precisa ser percebida na ponta, por quem consome, hoje está sendo percebida apenas pela indústria”, disse o secretário de energia elétrica, Gentil Nogueira, também no mesmo evento do TCU.

Separação fio e energia
O diretor executivo de regulação da Abradee (Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica), Ricardo Brandão, disse que o desafio será buscar o equilíbrio no contrato de concessão que garanta equilíbrio econômico-financeiro e flexibilidade para o mundo novo que surge com as transformações e em que a concorrência poderá ser mais ampla. “O contrato tem de ser menos prescritivo e mais baseado em princípios”, disse no evento do TCU.

Para a diretora da FGV-Ceri, Joísa Dutra, a separação fio e energia seria uma resposta adequada à transformação pela qual o setor elétrico passa. As distribuidoras passarão a se tornar plataformas de multisserviços sendo que muitas dessas soluções poderão ser oferecidas em ambiente concorrencial em que uma multiplicidade de agentes competirá. “Os contratos que estão sendo discutidos já devem, pelo menos, prever essa mudança de mentalidade”, disse Joisa, no evento do TCU.

Hoje os dois serviços, de conexão ao sistema elétrico e de venda de energia, estão misturados na mesma conta de luz. A queda na demanda impacta diretamente a comercialização de energia, enquanto fios, postes, transformadores, subestações continuam operando. Com a separação, haveria dois contratos – que poderiam ser cobrados na mesma conta – um para a conexão ao sistema elétrico, paga por uma taxa fixa mensal, e outro com o fornecedor de energia de escolha, proporcional ao consumo. As empresas fornecedoras de energia, por seu lado, arcariam com os riscos de falta ou sobra de energia, como em qualquer negócio competitivo.

A separação fio e energia tem sido discutida há anos no setor elétrico e consta do PL (Projeto de Lei) 414. O governo federal deu recentes indicações de que trabalha em um marco regulatório de modernização do setor elétrico. 

Compartilhamento dos dados
Nas diretrizes dos novos contratos, o governo federal também trabalha no tratamento a ser oferecido aos dados nas mãos das distribuidoras. “Os dados hoje são tudo e estamos trabalhando em uma proteção”, disse o secretário de energia elétrica, Gentil Nogueira.

“O pano de fundo da CP das distribuidoras é a criação de um ambiente concorrencial e os dados devem ser do consumidor, para que ele possa se beneficiar”, disse o presidente da Abraceel (Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia Elétrica), Rodrigo Ferreira.

O acesso livre aos dados – open energy, nos moldes do que existe no setor financeiro – poderia permitir inovações tarifárias, aperfeiçoando o sistema de preços. Ano passado, uma comercializadora fez à ANEEL um pedido de sandbox regulatório — política experimental baseada em testes e simulação de hipóteses regulatórias — sobre open energy. “É preciso transparência sobre esse ponto e o consumidor pode se beneficiar de ceder esses dados a terceiros”, afirmou Ricardo Lima, da Frente Nacional dos Consumidores.

GD solar
A modernização dos contratos pode também permitir melhorar a alocação de custos com o avanço da GD (Geração Distribuída) Solar e definir regras de concorrência em segmentos em que o acesso à rede pode ser livre. O diretor da ANEEL Fernando Mosna disse que a CP cria uma oportunidade.

“Quando o MME definir as diretrizes da prorrogação das concessões vamos saber, definitivamente, qual é o papel das distribuidoras”, disse em evento da indústria solar na semana passada em São Paulo. Ele exemplificou que se pode pensar em discutir melhor as formas de atuação da agência em relação a controvérsias que surgem entre distribuidoras e empreendedores solares, como na cessão de pareceres de acesso à conexão.

Para Wagner Ferreira, diretor jurídico da Abradee, será preciso ainda pensar em revisão dos riscos alocados às distribuidoras com limitações dos impactos negativos. Nos últimos dez anos, o mercado cativo ficou praticamente estagnado, enquanto a GD solar superou 20 GW de capacidade instalada e três milhões de usuários, reduzindo a base de pagantes do mercado cativo. “O dinamismo do mercado mudou, o fluxo de energia não é mais direcional, a equação mudou rapidamente”, disse em evento promovido pelo Stocches Forbes Advogados semana passada.

Abertura total
Outro desafio é preparar o setor de distribuição para a abertura completa do mercado livre. As distribuidoras são o elo arrecadador da cadeia. Na Nota Técnica que baliza a CP, o Ministério trata a liberalização completa do mercado livre como “inevitável”, mas não se detalha como se chegará a ela, nem como será o tratamento aos consumidores que poderão se manter no ambiente cativo. “É preciso pensar em que fica”, disse Joísa Dutra.  

Entre 2014 e 2022, o mercado cativo atendido pelas distribuidoras recuou 13%, segundo dados do MME apresentados no evento do TCU. A GD solar e a expansão do mercado livre, reflexo da alta das tarifas pós MP 579, são duas explicações. Isso reduz o mercado das distribuidoras e encarece a conta de quem fica.

O presidente da Neoenergia, Eduardo Capelastegui, disso que a liberalização completa exige uma modernização do marco regulatório. Hoje há uma disparidade grande de preços: no mercado cativo, o preço médio das distribuidoras é de R$ 300 MWh, enquanto no mercado livre o preço pode oscilar entre R$ 150 a R$ 170 o MWh. “Essa diferença teria de diminuir, além de resolver a questão dos contratos legados”, disse em evento da Prumo na semana passada. Esse é um ponto que estava sendo discutido no PL 414 e que envolve redução de subsídios e encargos.

Abrir todo o mercado implica resolver os contratos legados e o papel das distribuidoras. Quanto mais se amplia o mercado livre, maior fica a conta para quem se mantém no ambiente de contratação regulada.

O Ministério da Economia encomendou ano passado um estudo para a PSR sobre o tema. O relatório sugeriu incluir um mecanismo para cobrir os custos desta transição a ser aplicado aos consumidores cativos, livres e autoprodutores para que essa mudança regulatória não onerasse ainda mais o ambiente regulado, que tem arcado com os custos da sobrecontratação com o avanço do mercado livre.

Prazos
A renovação dos contratos envolve cerca de 60% do mercado nacional, incluindo as duas maiores capitais do país, São Paulo e Rio de Janeiro. A expectativa de agentes é de que o relatório do Ministério de Minas e Energia sobre as diretrizes do processo seja enviado para o TCU até o fim da próxima semana. Em paralelo, o governo irá trabalhar em uma minuta do decreto com a Casa Civil.

A partir da publicação final do Decreto, o Ministério de Minas e Energia (MME) enviará as diretrizes da modernização dos contratos à ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), que irá trabalhar em uma minuta do novo contrato, que será disponibilizado em consulta pública para os agentes.
A primeira distribuidora que irá ser submetida ao processo é a EDP-ES, cujo contrato expira em 16 de julho de 2025.

Pela lei, a concessionária tem 36 meses para manifestar sua intenção de renovação ou não (o que a EDP já fez) e o poder concedente teria 18 meses para responder. Isso faz com que o ministério tenha até 17 de janeiro de 2024 para decidir. A situação econômica da Light, em RJ (Recuperação Judicial) desde maio, é outro fator de pressão sobre os prazos.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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