Roberto Rockmann*
Quando tanques russos invadiram a Ucrânia na quinta-feira de 24 de fevereiro, a expectativa de Vladimir Putin e de boa parte do planeta era de que até em 72 horas o exército russo tivesse controlado Kiev e anexado a Ucrânia. Mais de um mês e meio após, a guerra se arrasta sem fim à vista, e os preços da energia tendem a seguir pressionados por meses.
A ameaça de racionamento paira sobre grandes economias, incertezas macroeconômicas ressurgem diante de uma nova postura monetária do Banco Central dos Estados Unidos, e aceleram-se discussões de reordenamento em cadeias produtivas em meio a uma corrida por segurança energética.
Racionamento
Toda a atenção está em aumentar os estoques de gás para enfrentar o inverno do fim do ano. A dependência russa, grande fornecedora de gás, óleo e carvão, não pode ser encerrada de um dia para o outro. Resultado: países europeus já discutem a possibilidade de racionamento.
Na Alemanha, cujas exportações de óleo, gás e carvão da Rússia somam cerca de 2 bilhões de euros mensais, grandes indústrias manifestam publicamente sua preocupação com um cenário em que haja interrupção abrupta de importação de gás. A gigante química Basf já anunciou que uma queda de 50% de sua demanda energética significaria paralisação em sua maior unidade.
O provável racionamento em alguns países europeus poderá adicionar pressões extras sobre cadeias globais de fornecimento, que já estão pressionadas desde o início da pandemia. Também acrescentam incertezas em relação a como essas cadeias reagirão à corrida de renováveis, reforçada pelo anúncio recente de países europeus dobrando a aposta nas fontes limpas no médio e longo prazo. O capex dos projetos de energia renovável no Brasil e no mundo, que subiram 50% entre 2019 e 2021, deve permanecer pressionado.
Além de menor crescimento na Europa, o cenário pressiona preços de energia no mundo todo e aumenta a pressão sobre o Banco Central dos Estados Unidos. Subsídios na Europa e nos Estados Unidos sobre os combustíveis e discussões sobre intervenções nos mercados liberados de eletricidade estão na mesa de governos de direita e esquerda do outro lado do Atlântico.
Desde 2008, para combater a crise financeira daquele ano, o governo americano se lançou a um agressivo programa de compra de títulos públicos para injetar liquidez no sistema internacional. Apenas durante a pandemia foram adquiridos US$ 3,3 trilhões em papéis do Tesouro.
Inflação
Os preços de energia atuais nos Estados Unidos e na Europa trouxeram a ameaça de volta da inflação como no início dos anos 1980, quando Paul Volcker, presidente do BC dos Estados Unidos, chegou a elevar os juros a 20%, o que levou à crise da dívida do Brasil e outros países latino-americanos.
Agora o aperto monetário será em outra proporção e com outros desafios: o BC americano irá agora começar a enxugar liquidez, elevando juros e reduzindo as compras de títulos. Parte da valorização do real e dos ativos brasileiros é derivada do “carry trade”, a diferença entre os juros brasileiros com o resto do mundo. A dúvida é o impacto que essa redução de liquidez nos Estados Unidos terá sobre a maior economia mundial e emergentes.
Real valorizado?
O real, que tem jogado a favor dos projetos renováveis, permanecerá valorizado ou se desvalorizará, quando a campanha eleitoral ganhar palco? Voltará a ganhar força depois, impulsionada por alta de grãos e outras commodities?
A prolongada guerra também mexeu na geopolítica. Da “The Economist” ao “The New York Times”, do “Le Monde” ao “The Guardian”, leem-se várias opiniões indicando que o mundo está à beira de uma nova ordem mundial que poderá ser uma versão atualizada da guerra fria. De um lado Estados Unidos e União Europeia, de outro a China. Democracias e autocracias convivendo em um mundo em que a globalização deverá perder espaço.
Como ficarão o Acordo de Paris e as metas de redução de emissão de carbono em um momento em que uma das maiores economias do mundo e um dos maiores produtores de energéticos, a Rússia, sofre sanções e represálias? Como as autocracias (sinais vindos da França confirmam a força dos ventos totalitários) reagirão a essas mudanças?
A nova ordem mundial geopolítica que está se desenhando também enseja outra dúvida. Recentemente a Alemanha lançou um documento de 600 páginas em que anuncia sua disposição para acelerar investimentos em renováveis como eólicas e solares. Isso poderá levar reordenamento das cadeias globais de fornecimento em um momento em que a reforma cambial anunciada pelo governo brasileiro traz segurança para fechar acordos de compra e venda de energia em moeda estrangeira.
Abrem-se novos bolsos, como as agências de fomento da Europa e da Alemanha, que tem uma indústria de bens de capital bem posicionada. Como o Brasil transitará nessa nova ordem mundial?
A agenda do século XXI é diferente do pós-guerra de 1945. Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas aponta que o mundo precisará atingir o pico das emissões de poluentes globais em 2025 para aí começarem a cair 43% até 2030, comparado a níveis de 2019.
O nível de urgência chegou ao máximo, alerta o órgão. A guerra atual e a revisão de políticas de países europeus para reduzir a dependência da Rússia colocam dúvidas sobre esse processo, pelo menos, no curto e médio prazo.
Transição energética
Com sol, vento, recursos hídricos e imenso potencial de produzir hidrogênio verde a preços competitivos, em um momento em que a Alemanha indica que irá acelerar a adoção da tecnologia (em que duas empresas alemãs detêm know how em eletrolisadores), o Brasil poderá liderar a transição energética. Poderá também discutir adensamento de cadeias produtivas, em linha com a segurança energética, de forma como foi bem-sucedido na indústria eólica.
Ainda pode reforçar a urgência e importância de criação de um mercado global de crédito de carbono. Essa é uma agenda que poderia combinar esforços de empresas, sociedade e governo.
Serão precisos planejamento e coordenação, além de ruptura da tradicional visão de curto prazo que impera no Brasil, agravada pelas disputas partidárias e a ausência de uma reforma política. Também será preciso discutir a estratégia de país ao longo das próximas décadas, uma discussão que vai além da agenda de usos e costumes.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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