Análise: política transversal de transição energética tem início com reformulação do CNPE

Roberto Rockmann*

Criado em 1997, com a quebra do monopólio da Petrobras na área de óleo e gás, operacionalizado apenas em dezembro de 2000, o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) sofrerá a maior reformulação de sua história. Sua ampliação trará desafios, já que os interesses presentes serão ainda mais conflitantes.

Publicado na sexta-feira, o Decreto 11.418 amplia o CNPE com seis novos ministérios na composição do órgão: Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços; dos Povos Indígenas; do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; de Planejamento e Orçamento; de Portos e Aeroportos e das Cidades. A primeira reunião deverá ser realizada na primeira semana de março.

Política transversal
A ampliação da esfera coincide com a transversalidade crescente do setor de energia e com a importância acentuada das mudanças climáticas. Matéria da “The Economist” da semana retrasada aponta que o contexto trazido pela guerra entre Ucrânia e Rússia deve acelerar o cenário de transição energética em cinco a dez anos. Líder em energia renovável, o Brasil terá ainda mais oportunidades.

Um detalhe importante da composição nova do CNPE é a incorporação do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. Sua inclusão deixa algumas interrogações no setor elétrico, principalmente em relação à exploração futura da geração hidrelétrica. A maior parte do potencial do país está na região Norte.

A licitação da hidrelétrica de São Luiz dos Tapajós chegou a ser anunciada em 2014, mas foi cancelada porque o estudo ambiental identificou 14 impactos negativos para povos indígenas, dos quais seis foram considerados irreversíveis. A Fundação Nacional do Índio (Funai) alega que o projeto da usina é inconstitucional, pois alagará terras indígenas, o que é vetado pelo artigo 231 da Constituição Federal.

Para reduzir o impacto ambiental, o governo pensou em consolidar, nas novas usinas da região Norte, uma outra forma de construir os empreendimentos, inspirada nas plataformas marítimas de exploração de petróleo e gás, onde os trabalhadores se revezam em turnos. As usinas no rio Tapajós seriam construídas sem a instalação de vilas operárias, cidades e centros comerciais no entorno.

Entre 2014 e 2018, o governo pretendia contratar entre 25 mil e 31 mil MW (megawatts) de capacidade instalada em novos projetos de geração de energia elétrica, dos quais a maior parte – 11 mil MW – se referia a hidrelétricas. O número ficou no papel. Hoje a estimativa é quase nula.

Recentemente, carta da IHA (International Hydropower Association) para o Ministério de Minas e Energia aponta a escassez de projetos de médio e grande porte de hidrelétricas.

Uma das recomendações se refere ao grande potencial de desenvolvimento de hidrelétrica de médio porte, com menor complexidade de licenciamento ambiental e capazes de dinamizar o segmento e assegurar energia renovável para a expansão da geração no país.

Outro ponto é a modernização das usinas hidrelétricas já existentes, o que poderia gerar aumento da capacidade instalada em 51 centrais em funcionamento há mais de 30 anos, resultando em um ganho expressivo de energia.

Futuro das hidrelétricas
Para um empresário consultado, a ampliação do CNPE traz dúvidas sobre o futuro das hidrelétricas nesse governo, que terá de decidir como irá estruturar o crescimento da matriz.

“Os I-Recs têm mais valor em eólicas e solares, as hidrelétricas trazem um componente social e ambiental que traz preocupações. O CNPE ampliado terá visões distintas e a questão indígena é sempre um ponto de reflexão, como se viu na linha de transmissão em Roraima”, diz.

A referência diz respeito à linha de transmissão Manaus-Boa Vista, licitada em 2011 e que ainda está para ter suas obras iniciadas, em razão de divergências em negociação com indígenas.

“Atenuar ruídos”
Para outro empresário, a participação ampliada do CNPE traz um outro lado para a equação, a possibilidade de que, se projetos hidrelétricos avançarem, eles terão chancela de participantes importantes. “Isso poderia atenuar ruídos.”

Durante o governo Dilma Rousseff, uma das ideias presentes no debate foi dada pelo então presidente da EPE, Mauricio Tolmasquim, que apresentou um projeto a vários ministérios sugerindo que os indígenas pudessem receber royalties de empreendimentos que os afetassem diretamente.

Em vez de irem para o orçamento da Funai, os recursos seriam gerenciados por um comitê tripartite, formado por comunidade, investidores e Funai. Uma experiência semelhante à realizada em hidrelétricas do Canadá, em que algumas tribos passam a ter pequena participação em usinas. A ideia nunca avançou.

Desde a construção da usina de Belo Monte, o país não tem visto mais os grandes projetos hidrelétricos saindo do papel. Em paralelo, a participação relativa da fonte tem caído.

Se em 2001 a fonte era responsável por 85% da eletricidade, hoje responde por cerca de 60%. Mas as hidrelétricas continuam muito relevantes no sistema, principalmente em um sistema com avanço de fontes variáveis, como eólicas e solar.

Com capacidade de armazenar água, elas teriam papel relevante em atender à ponta, o que hoje não está precificado. Resolver esse impasse é mais uma das missões do ministro, Alexandre Silveira, que com dois meses de cargo ainda está sem secretário-executivo.

Descarbonização
O CNPE ampliado também cria possibilidades para debates sobre a descarbonização nas cidades e no setor de transportes, ao incorporar o Ministério das Cidades, dos Portos e Aeroportos, além da Agricultura. Com os caminhões respondendo por mais de 60% da circulação das mercadorias no País, dependentes de diesel, a eletrificação da frota de grandes players logísticos é um dos desafios dos próximos anos, assim como a exportação de hidrogênio verde.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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