Roberto Rockmann*
Ao assumir a diretoria-geral da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) na próxima segunda-feira (15), Sandoval Feitosa terá como desafio fortalecer a autarquia diante de um ambiente político refratário às decisões tarifárias, resolver fissuras internas que levaram a questionamentos de decisões recentes de diretores e enfrentar uma provável onda de ações judiciais contra resoluções emitidas pelo órgão regulador. Pode-se dizer que é o momento mais crítico da agência desde a sua criação, em 1997.
Judicialização crescente
Uma ameaça à vista é uma onda crescente de judicialização por conta de regulações recentes. Nessa semana, a diretoria aprovou uma minuta de resolução que regula o decreto 10.893/2021, que dispensa a informação de acesso para obtenção de outorgas na chamada “corrida do ouro”. A lei 14.120/2021 estabeleceu que os agentes interessados no desconto solicitassem outorgas até 2 de março desse ano. A fila contabiliza mais de três mil projetos com capacidade somada de 200 GW (gigawatts).
A minuta já fez empresas e entidades irem atrás de escritórios de direito. O dispositivo estabelece, em seu artigo 7º, que a conexão do empreendimento se dá “por conta e risco do agente, não cabendo pedido de excludente de responsabilidade fundado no risco assumido pelo acesso, que compreende a conexão e o uso dos sistemas, inclusive nos casos em que as obras de conexão possuírem cronograma superior ao prazo previsto”.
Isso abrirá um flanco judicial. Não será o único. A decisão recente sobre o fim da estabilização da TUST (Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão) também já está movimentando agentes e escritórios de advocacia, que estão preparando liminares para contestar nas próximas semanas a decisão, tomada em decisão do colegiado de forma unânime.
Isso dificulta mudanças legais, mas advogados interpretam a saída jurídica como uma tentativa de mudar a regra mais à frente. “No GSF (o chamado risco hidrológico) também foi assim e depois foram tantas liminares que se buscou um acordo”, diz um advogado.
A Consulta Pública 39, cuja terceira fase de contribuições públicas foi postergada para o fim desse mês e trata do fator locacional da TUST, também movimenta agentes e escritórios. Participantes da consulta pública já estão buscando pareceres jurídicos para incluir na argumentação para indicar que a ausência de transição para uma nova regra poderá ser contestada. “Tudo indica que o setor viverá uma judicialização crescente”, observa outro advogado.
Decisões recentes polêmicas
Outras resoluções polêmicas da diretoria também podem levar as empresas a buscar revisões na Justiça. Primeiro, uma medida cautelar monocrática inédita em processo referente à RBSE (Rede Básica do Setor Elétrico), indenização bilionária às transmissoras. A decisão, depois retificada em colegiado nesta semana, acatou parcialmente o despacho monocrático, e o mérito ainda será decidido.
Em outro caso controverso, pedidos de excludente de responsabilidade de ganhadores do PCS (Procedimento de Contratação Simplificada) podem também ser um complicador para a nova diretoria. O primeiro caso polêmico foi o da Âmbar, que teve a sua situação flexibilizada. A decisão foi questionada pelo Ministério de Minas e Energia. Agora, a revogação da outorga de quatro térmicas da turca Karpoweship que estavam prontas, pode ser judicializada.
Decisões do colegiado trouxeram questionamentos entre empresários e advogados em relação à postura da ANEEL e o aumento do risco regulatório. As críticas são feitas em off e aparecem na imprensa de forma velada. Em um setor regulado, a cautela é a palavra de ordem dos executivos.
A atual gestão de recursos tributários estaduais e federais para reduzir a conta de luz não modificou a estrutura tarifária. Ou seja, reajustes continuarão sendo tópico para a relação entre órgão regulador e sociedade no próximo governo. O centrão está sempre de olho nesse debate. E, no cenário atual, existe ainda a pressão sobre o mercado cativo com a crescente migração para o mercado livre, para a geração distribuída solar, além do peso dos encargos.
PEC das Agências
Isso coincide com discussões no Congresso de proposição de uma minuta de PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que retira poderes das agências reguladoras, com sugestões que modificam drasticamente o desenho atual e voltam a colocar reajustes tarifários nas mãos do governo, o que seria um retrocesso no modelo de atração de capital privado, ainda mais em um mundo em que a Eletrobras se tornou empresa de controle difuso.
ANEEL tem passado de superações
Mas a história da autarquia é de superações. O primeiro diretor-geral, José Mario Abdo, teve um batismo de fogo logo na primeira semana no cargo, em uma audiência pública, no fim de 1997, sobre problemas com o abastecimento no Rio de Janeiro, que na época sofria com apagões frequentes. No meio do evento, as luzes do auditório se apagaram. Abdo manteve o sangue frio e continuou a falar. A empresa foi multada.
No racionamento de 2001, quando o Palácio do Planalto despertou para o tamanho da crise, o diretor-geral foi um dos colocados na berlinda. Além de empresários que buscavam sua retirada diante de críticas de tarifas represadas, ele ainda sofreu pressões do então diretor da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), David Zylbersztajn, então genro do presidente Fernando Henrique Cardoso. Abdo não renunciou e cumpriu seus dois mandatos à frente do órgão regulador, que saiu fortalecido dos embates. A ver como será o desenrolar da história do novo diretor-geral da ANEEL.
Garantia física
A discussão sobre a revisão das garantias físicas das hidrelétricas voltou à tona. Deverá ser aberta em breve Consulta Pública com detalhamento da metodologia a ser usada. A exoneração em junho do secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia, Paulo César Magalhães, que conduzia a discussão, tinha deixado o processo paralisado.
Uma das razões de o país ter vivenciado a ameaça de nova crise de racionamento ano passado foi a dificuldade em mensurar a energia disponível de fato nos reservatórios das hidrelétricas. Revisar a garantia física é um ponto importante para o planejamento do setor, assim como na estratégia comercial das empresas. Geradoras que tivessem revisadas para baixo suas garantias teriam perdas financeiras, já que elas teriam menos energia disponível para a venda.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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