por Roberto Rockmann, especial para a Agência iNFRA
A transição energética se acelera com a invasão da Ucrânia pela Rússia e os planos de menor dependência de países europeus do gás russo. Isso abre perspectivas para o Brasil, como na área de hidrogênio verde e usinas offshore. Mas pressões de preços no curto prazo, nos próximos 36 meses, devem permanecer e podem ter impacto sobre a viabilidade de usinas híbridas.
Essa é a visão da presidente da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica), Elbia Gannoum, que enxerga o setor elétrico brasileiro em uma grave crise de governança comparável à vivenciada em 2001, quando o Brasil viveu seu maior racionamento. Agências reguladoras em xeque e o Congresso assumindo o planejamento do setor são exemplos da crise. Ela defende a retomada da governança e leilões de neutralidade tecnológica, como forma de otimizar o sistema. A seguir os principais trechos da entrevista:
Roberto Rockmann – A transição energética se acelerou com a invasão da Ucrânia? Isso terá impacto sobre o COP 27?
Elbia Gannoum, presidente da Abeeólica – Desde 2020, temos percebido uma mudança na discussão da transição. Por quê? Vamos relembrar que a pandemia ganhou força no mundo em março de 2020 com lockdown e restrições de movimentação. Naquele momento, o mundo vivia uma crise do petróleo, que não teve relação com a pandemia. Iniciou-se em fevereiro de 2020, quando os países membros da Opep [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] reuniram-se e fizeram uma restrição na oferta de petróleo no mundo com o objetivo de pressionar os preços. Eles não contavam que encontrariam um gigante maior que eles: uma crise associada à pandemia. Sofreram um revés e os preços de petróleo foram para baixo. O mundo começou a falar que os preços do petróleo caíram e isso levou a perguntas se a transição energética iria ser prejudicada. Mas não. Aí começou a ganhar eco a discussão de segurança energética e as fontes renováveis estão em um patamar de competitividade diferente das crises dos anos 70 e 80. Por fim, há os efeitos do Acordo de Paris e o compromisso dos países de reduzirem suas emissões globais. A pandemia reforça a conscientização de cuidado com o planeta. Fundos internacionais de grande porte como BlackRock destacaram que seu foco são investimentos na agenda ESG. Com tecnologia de renováveis mais acessível e barata, investidores olhando a agenda de sustentabilidade e o contexto internacional, a transição se acelera com o conflito atual. Países estão buscando uma retomada econômica com investimentos verdes, exemplo maior nos Estados Unidos. Alemanha e Inglaterra também indicam a mesma trajetória. A invasão russa na Ucrânia foi a pá de cal nessa discussão. Faltava uma governança global para uma decisão global para que a transição fosse acelerada. A guerra fez isso, fez com que os países discutam suas matrizes, reduzam sua dependência de terceiros, e as fontes limpas são uma alternativa essencial. O modelo de negócios mudou. Não é mais Ebitda, há aspectos sociais e ambientais e de governança presentes em todos os investimentos.
Essa aceleração ocorre no médio e longo prazo?
Sem dúvida. Porque no curto prazo o viés é da sobrevivência, porque a infraestrutura demanda tempo para ser colocada de pé. Então em um primeiro momento terá de ser usado mais combustível fóssil. Não tenho dúvidas de que no médio e longo prazo a governança global fará a transição ocorrer.
Uma das questões presentes nesse debate é a inflação verde. Você tem dito que o mercado vai se posicionar em um patamar diferente e que isso também ocorrerá nos combustíveis fósseis. Há preocupação com custos e com atendimento aos pedidos na cadeia global de fornecimento das renováveis?
Na transição de uma economia de alto carbono para baixo, haverá mudança tanto da indústria de bens de capital que fornece a maior parte dos equipamentos quanto dos metais usados para produzir energia de outra forma. Esse processo natural de substituição coloca o patamar de preços e custos em outro nível. Isso ocorreria de qualquer forma. Os custos vão subir, mas a régua vai subir para todos, fósseis inclusive. A conjuntura indica um desequilíbrio de oferta e demanda de curto prazo. Nesse momento, a surpresa dessa velocidade da transição traz uma pressão que é natural que ocorreria. No curto prazo, a cadeia terá de buscar arranjos e rearranjos. À medida que ela vai ocorrendo, há pressões. Nós estamos hoje com pressão de preços. Mesmo assim, as renováveis estarão em um outro patamar, mas muito abaixo dos fósseis. A competitividade é muito grande e não tem como retomar espaço.
Esse curto prazo deve perdurar quanto tempo? 12 meses? 24 meses?
Vejo até 36 meses, é o tempo que a indústria tem para se ajustar do ponto de vista estrutural.
A indústria está trabalhando no Brasil com 4 GW de acréscimo na matriz. Isso continua? Offshore (alto-mar) ganha espaço no fim da década?
Sob a perspectiva offshore, numa análise otimista, vejo como geração efetiva a partir de 2029 e 2030. Consigo enxergar esses 4 GW anual nesses próximos dez anos. A depender da evolução do hidrogênio e da amônia verde, esses 4 GW poderão se tornar 6 GW. Em 15 a 20 anos, não vejo menos que 3 GW por ano.
Offshore é um segmento cuja regulação inicial foi publicada em janeiro deste ano e já tem mais de 100 GW em projetos sendo avaliados. Como ficará o detalhamento da regulação?
Tivemos um workshop do governo recente sobre esse ponto. Deveremos ter em dois a três meses a regulação da cessão de uso do bem da União. Com isso, podem-se destravar os licenciamentos ambientais que estão no Ibama e os agentes estarão aptos a fazerem a venda da potencial energia que vem desses parques. Minha grande questão é que eu acho muito difícil destravar os primeiros projetos sem realizar um leilão de contratação dessa energia offshore. Imagino um leilão de reserva para isso.
E como serão formados os clusters da tecnologia? O Nordeste tem ventos marítimos importantes, mas o pré-sal tem as petroleiras interessadas em reduzir sua pegada de carbono com usinas offshore. O mercado ou o governo indicará se Nordeste e Sudeste deve liderar esse processo?
O decreto estabelece leilão de cessão independente e de cessão planejada. Independente é que um empreendedor escolhe uma área, peço autorização, faço licitação e pronto, o projeto está lá para fazer. A planejada é aquela em que o governo decide por algumas áreas e faz o leilão. Se o governo conseguir evoluir nessa cessão planejada, e parece que está inclinado a isso, ele pode escolher umas áreas no Sul – Sudeste e Sul. Então esse cluster poderia ficar pulverizado, se ele vier a fazer isso. Dito isso, a tendência é de que os projetos evoluam em áreas em que a infraestrutura seja melhor. Dois pontos são essenciais nessa equação: 1) um bom porto, um porto industrial; 2) conexão, escoamento para transmissão. Nessa ótica, os projetos do Sudeste e do Sul não são dispensáveis, eles precisariam de poucos investimentos para esse conceito de porto indústria, eles são bons candidatos, mas o Nordeste também é, porque está se preparando para isso. E há um detalhe: o país receberá em breve bipolos de transmissão que irão aumentar a integração entre o Sudeste e o Nordeste. Em 2028 e 2029, provavelmente, Nordeste e Sudeste se tornarão um único submercado, então a questão da transmissão seria menor. Esse é um cenário futurístico ainda, é uma sensação.
Você disse anteriormente que hidrogênio verde pode elevar o patamar de projetos de usinas eólicas no Brasil. Há associados de vocês olhando essa nova tecnologia. A invasão da Rússia e o plano da União Europeia de mais renováveis podem ter impacto sobre os custos do hidrogênio verde?
O Brasil é um grande candidato de potência nesse processo. Espero que aproveitemos essa oportunidade, o que depende mais do mercado que de outros fatores. Países como Alemanha e Holanda estão olhando o Brasil. Cerca de 60% dos nossos associados têm negócios offshore e esse elo está muito ligado também ao hidrogênio verde. Eu estava na Europa no início de abril e o que eu percebi é que a Europa tende a fazer investimentos mais fortes para acelerar a adoção do hidrogênio verde. Tecnicamente, ele já está praticamente resolvido. O maior ponto é a questão econômica. Com os países europeus acelerando suas políticas, pode ser que a adoção do hidrogênio verde seja mais rápida. Se a gente antes esperaria que ele ganhasse espaço em 2030, pode ser que essa curva seja acelerada em dois ou três anos.
Fim do ano passado trouxe outra novidade regulatória no Brasil: os parques híbridos. Essa será uma forte tendência? O aumento de custos na indústria solar pode ser um obstáculo?
A regulação deu a segurança jurídica para a partida desses parques híbridos, porém ela não é suficiente. A ideia é que todos os parques eólicos do Nordeste também poderiam se tornar híbridos, mas não é verdade, há terrenos e irradiação diferentes. No curto prazo, a cadeia produtiva tem sofrido muita pressão, principalmente nos painéis solares. A vida da eólica está difícil, a da solar está infernal. Na solar, a pressão é muito forte e isso pode ser intimidador da aceleração de parques híbridos. Há pressão também sobre os metais usados na cadeia solar, pressão sobre o metal usado na placa.
Storage se tornará importante em uma matriz com mais fontes intermitentes. Ele está tornando-se viável?
Há um tempo, antes da iminência da crise hídrica do ano passado, fizemos um estudo que apontava que armazenamento seria viável a partir de 2025. Como nós passamos por uma crise e houve uma mudança do patamar de preços, é possível que essa viabilidade esteja menor, esteja já em 2023.
Ficou mais perto, mas como destravar essa tecnologia tão falada? Um novo tipo de leilão?
Eu consigo prever uma dinâmica maior nesse mercado quando o Brasil adotar efetivamente a precificar requisitos sistêmicos e deixar de comprar apenas MWh de fonte X ou Y. Esses leilões de potência que dão sinais para contratação de térmicas deveriam ser feitos sob o conceito de neutralidade tecnológica, contrata-se a solução de suprimento e não efetivamente usina eólica, solar ou térmica. Um leilão de solução sistêmica pode trazer essa dinâmica. A gente já está precisando disso e estamos atrasados. Temos lutado para que isso fosse feito ano passado, mas a conjuntura não permitiu. Estamos conversando com o governo para que esse leilão de neutralidade tecnológica seja implementado neste ano. Assim poderia acabar com esse Fla-Flu, a gente já tem tecnologia para parar com essa discussão e usar as fontes de maneira mais otimizada.
Um ano atrás, o Brasil vivia um alerta amarelo sobre o fornecimento de energia elétrica e ameaça de blecautes no horário de ponta no fim do período seco. A gente fez a lição de casa? O setor melhorou?
Não foi consertado nada. Foi colocado um torniquete a preço alto. A gente tem vivenciado um pêndulo difícil de ser arrumado: ora estamos em excesso, ora em falta, quando vivemos um excesso estamos pagando a escassez. Qual é a solução de longo prazo? De fato dimensionar o sistema para operar de maneira adequada. Temos os recursos, as ferramentas, a inteligência, competência, mas não temos governança. Quem deveria planejar o sistema e definir como ele deveria funcionar deveria ser o poder concedente por meio da EPE [Empresa de Pesquisa Energética], com um planejamento seguido à risca. Mas ele é atropelado pelo Congresso Nacional. E a regulação das tarifas, que deveria ser da ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica], também sofre interferências do Legislativo, do Executivo, do mercado. Estamos em uma crise de governança gravíssima. Eu compararia com a vivenciada em 2001, do racionamento, a diferença é que lá teve uma crise e apagão fez com que tivesse sido começado do zero. Vivemos uma crise há um tempinho, agravada com a crise hídrica de 2021, com uma crise financeira para gerenciar e um agravamento da governança. Em breve teremos uma crise profunda.
É mesmo?
O setor está em uma situação deplorável. Mantido esse ritmo, a indústria fica sob ameaça. Teremos de recobrar a governança, a situação é muito grave.
Como recuperar essa governança? Parte do sucesso que o Brasil pode ter como potência descarbonizante também terá de vir de um setor elétrico interno organizado.
Precisaremos de um Executivo forte que dê a caneta certa para uma pessoa certa. Há um fator feliz nisso: estamos em eleições. Qualquer um que for eleito precisará pensar em transição energética, mudanças climáticas e na retomada da governança. Se não poderemos perder essas oportunidades.
A gente está colocando a questão climática no planejamento e na execução do setor elétrico? A questão das revisões das garantias físicas das hidrelétricas está nesse contexto?
Essa sempre foi uma questão bastante complexa e sensível, ela traz prejuízos financeiros para as empresas. Quando você poupa as perdas das empresas, o sistema fica sob pressão. Tivemos alguns tropeços nesses 20 anos. O cerne da crise de 2021 é a má dimensão do quanto a gente tem de energia pelas hidrelétricas. A variável clima aprofundou esse problema e tornou a previsão ainda mais difícil. O setor criou os leilões de reserva, essa energia de reserva contratada para fazer jus à garantia que não foi calculada. Temos de enfrentar esse ponto, resta saber como, porque teremos ganhadores e perdedores. Quem paga sempre é o consumidor, que paga a energia de reserva e do GSF [risco hidrológico].