Roberto Rockmann*
A incerteza cada vez maior na operação do sistema exige ferramentas extras, diz o diretor-geral do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), Luiz Carlos Ciocchi. Uma delas seria a criação de um programa estrutural de resposta da demanda dos grandes consumidores, que depois da experiência bem-sucedida do ano passado, segundo ele, já poderia se tornar anual a partir do fim desse período seco. O programa consiste no deslocamento do consumo de energia da indústria nos horários de pico para outros momentos, dando mais folga para o sistema.
“Seria mais barato que acionar térmica no atendimento da ponta”, afirmou em entrevista à Agência iNFRA.
Os eventos climáticos estão se tornando mais extremos, o que cria mais variações sobre o sistema. Isso leva a necessidade de adoção de uma visão sistêmica das fontes, seus ganhos líquidos e seus atributos. As hidrelétricas, por exemplo, têm outra função além da geração de eletricidade.
No pior dos cenários, o país deve chegar a 40% de armazenamento dos reservatórios em novembro, bem acima dos cerca de 20% do ano passado, mas ainda é cedo para dizer que boa parte do parque térmico ficará desligado, afirmou o diretor. A seguir os principais trechos da entrevista:
Agência INFRA – Os eventos climáticos estão cada vez mais extremos. Qual impacto sobre a operação do sistema?
Luiz Carlos Ciocchi – Os eventos climáticos fazem parte do dia a dia, mas quando falamos de mudanças climáticas ficamos empurrando em uma discussão acadêmica, se existe ou não, se é um ciclo. Não podemos mais contar com nisso, é preciso planejamento.
No ano passado, no Norte da Europa e nos Estados Unidos, houve escassez de ventos. Pode ter ventos muito mais fortes ou muito fracos e pode-se ter chuvas muito fortes ou estiagens duradouras. Temos investido em sistemas de monitoramento e previsão de vento e energia solar. Queremos melhorar a capacidade de previsão e reação. Nesse momento da entrevista, nessa, estamos gerando 5.500 MW (megawatts) de eólicas, a previsão era de 3.900 MW.
Como fazer para ter níveis de segurança maiores nos reservatórios? Precisa precificar a água acumulada de forma diferenciada porque as hídricas desempenham uma função além da geração de eletricidade?
Cada vez mais se confirma essa tese. Não é uma coisa imediata, mas no médio e longo prazo esse papel das hidrelétricas deve mudar. Hidrelétrica te dá potência, energia, flexibilidade. Na hora em que se veem outras fontes, com inflexibilidades ou variações, se tem uma dependência cada vez maior das hidrelétricas para atributos como controle de frequência, tensão, potência. Esse papel está mudando, mas não é só uma questão técnica, mas também regulatória e contratual, que tem de ser revista.
Hoje, elas são remuneradas por energia. Qual atributo que ela traz? Quanto ele vale? Qual o contrato que ela terá para oferecer esse atributo? Isso está na parte teórica. Teremos de avançar nisso. Não dá para adiar muito isso. Sobre a precificação da água, há um debate muito recente sobre isso, se é preço por modelo ou mercado, que está a cada dia mais viva, mas sem definição.
Fechar a torneira das hidrelétricas, ou seja, mexer nas vazões tem sido uma questão cada vez mais complexa, como visto ano passado. Implica mexer em irrigação, turismo. É preciso trabalhar em um novo normal?
Não queria começar a dizer que será preciso trabalhar com um novo normal, isso será uma consequência. Trabalhar com vazão é uma questão tecnicamente muito delicada e complexa. Pode arrumar uma parte da casa e prejudicar a outra. Restringir a vazão por um uso múltiplo. Quando se define a vazão, tem uma escada de peixe que é obrigação da usina, determinação ambiental. Como faz isso? Se você tem uma vazão controlada lá embaixo por uma comunidade ribeirinha, não pode fazer variação muito grande. Como vai operar uma usina se você quer extrair potência para as quatro horas da tarde? É uma discussão técnica que tem influências sobre demandas da sociedade, demandas válidas e razoáveis. Tem de olhar a bacia ou o conjunto das bacias, isso traz complexidade para nós e para a ANA. Tem bacias cujo impacto transcende o Brasil, pode ter influência sobre outro país.
O uso consuntivo da água será crescente ainda mais que o Brasil deverá assumir papel ainda mais relevante na agricultura mundial. Isso terá impacto na energia?
Os números que eu tenho de algumas usinas é que elas usam frações dos volumes utilizados na geração de energia, ou seja, mesmo na crise hídrica, não haveria escassez de água para uso humano, agricultura, mas à medida que a questão das mudanças climáticas vai evoluindo, pode ser que esse fator entre no radar com mais atenção.
Incerteza é uma palavra que tem sido cada vez mais falada para a operação e planejamento do sistema e será maior, com geração distribuída solar, com consumidores no futuro podendo ficar fora da rede. Como estão analisando?
Hoje, a energia solar prevista nesse horário da entrevista era 3.600 MW, está em 2.600 MW. Isso mostra a incerteza, há uma característica sazonal porque a condição meteorológica influencia e tem uma tendência pelas mudanças climáticas. A carga hoje está abaixo do previsto, por conta da frente fria no Sudeste, então estamos usando menos água.
O que fazer? Primeira coisa: estudar melhor os fenômenos e como inserir nos nossos procedimentos para termos condições de adaptar ao tempo real essas mudanças. Temos de ter mais capacitação pessoal e tecnológica.
Para o planejamento, para futuro, nossa reivindicação é flexibilidade, é a palavra mais importante por causa dessa variabilidade que é crescente no sistema. Ou seja, operar o sistema com usinas com capacidade de acomodar essas variações. Tradicionalmente, as hidrelétricas faziam isso, mas somos agnósticos em relação às tecnologias. Podemos ter termelétricas de partida rápida. Quando entrar pesadamente armazenamento, poderemos ter energia armazenada. Cada solução tem suas características.
Armazenamento está mais próximo? A crise na Europa deve baratear ainda mais?
A tendência de queda de preços de tecnologias às vezes é acelerada por questões de mercado ou resultantes de problemas em sociedade. Foi assim com comunicação e será assim com as tecnologias do setor elétrico. Depois dos reflexos com a pandemia, em que havia sinais de alta de preço, e da crise da Rússia e da Ucrânia, muitos recursos serão usados em armazenamento e eficiência energética. Deve ter queda. Há 20 anos, se falava dos preços das eólicas, e olha hoje. Há 10 anos, o preço da solar, e olha hoje.
Leilão de neutralidade tecnológica oferece essa flexibilidade?
Não será um leilão da fonte A ou da B, mas por preço, isso vai favorecer o consumidor, que é excelente, mas em sistema elétrico há características técnicas que não podem ser abandonadas pelas leis da economia. É preciso ter mecanismos para compensar esses atributos. É um caminho, é aderente à nossa filosofia, somos neutros do ponto de vista tecnológica. Onde vai vir essa potência? Como faremos com o controle da frequência? Quem será o responsável por um black start? Não vai usar eólica ou solar para um black start (reiniciar o sistema depois de um blecaute). Não vai se usar eólica e solar para o controle de frequência. Outros atributos de outras fontes terão de ser valorizados.
Como enxerga o fim do ano? Como entraremos nesse período úmido?
O período úmido passado foi bom, não foi uma maravilha, ficou em 80% da MLT (média de longo termo). Os reservatórios estão em uma situação muito melhor que ano passado. A diferença foi a gestão da crise hídrica, que nos trouxe aprendizados de controle da vazão, com uma integração maior do ONS com ANA. Esperamos chegar a esse ano, no geral, bem melhor. Em 30 de setembro de 2021, o sistema interligado nacional chegou a 24%, que é um volume muito baixo. Estávamos caçando megawatt. Ano passado, ao fim de novembro, chegamos a cerca de 20%. No pior cenário nosso agora, devemos chegar próximos a 40%.
O leilão do ano passado de contratação de energia emergencial foi tomado sob esse cenário de 20% em setembro, sem saber ao certo o que viria depois?
Quando tomamos a decisão, nós sabíamos que havia uma taxa de arrependimento associada a ela. Podia ser a de hoje, se está chovendo como hoje, ou então ter situação em que a gente não teria energia porque não haveria chuva. A confusão agora é… a gente está esquecendo um princípio basilar: precisa ser resolvido dentro do contrato. A preservação dos contratos é essencial. Resolver no contrato é chegar a acordo entre as partes. O problema é querer resolver fora do contrato.
Voltando: você disse que devemos chegar a novembro em 40%. Isso quer dizer que teremos menos térmicas em 2023 e um cenário tranquilo?
Sempre quando falamos do próximo ano, sem ainda ter chegado ao período úmido, a gente tem um gigantesco ponto de interrogação.
Cada vez mais esse ponto é maior, não?
Sim, voltamos à sua primeira pergunta. Quando a gente estava em 2021 e chegamos a setembro com nível baixo, nós dissemos que o mundo não ia acabar e que era preciso pensar em 2022. Por isso acionamos térmicas a mais para fazer o sistema atravessar aquele período mais desafiador. Difícil avaliar 2023 porque é climatologia.
Uma coisa tentada ano passado foi o programa de resposta da demanda. Ele volta?
Foi uma experiência muito positiva, tivemos contribuição muito boa dos agentes, vivíamos uma caça a megawatt. Num determinado ponto, ele não cumpria a função emergencial, mas deixamos a semente ali que a resposta à demanda fosse institucionalizada. A ANEEL está para discutir isso em uma reunião. Temos dito para a CCEE, para o Ministério, para a agência, para o planejamento, que essa é uma ferramenta importante para ser implementada já no fim desse período seco. É muito melhor, mais barato contar com uma resposta da demanda do que acionar térmica para atendimento de ponta.
Vocês conversam para o programa se iniciar agora?
Sim, acho que a mobilização do ano passado ajudou a isso e temos confiança de que possa ser feito esse ano, não com caráter emergencial, mas estrutural.
Ou seja, passaria a ser anual?
Sim, todos os mercados mais sofisticados usam esse mecanismo de resposta à demanda.
Um dos efeitos da lei 14.120 foi a corrida de ouro. Chegou-a se 200 GW de 3 mil projetos, isso cria ainda mais incerteza: o que vai sair? Onde vai sair? Como enxergam isso?
Quando se tem um recurso escasso, como o acesso à conexão de transmissão, é preciso atribuir valor econômico a ele. Não pode ser distribuído a quem chegar primeiro à fila. É preciso avaliar outros atributos e tem de ter uma disputa pelo acesso. A primeira imagem que temos é de um leilão de acesso, para que um empreendedor participe e obtenha preferência.
Se ele tem um business case positivo, ele vai colocar isso no papel e vai sair. O problema é projeto de papel e que segura a fila. Precisa ter uma valorização disso. Em relação ao volume, não dá para acreditar que isso vá se materializar, é humanamente impossível, vai esbarrar em fornecimento de equipamento. Esperamos que isso resolvido o quanto antes porque cria uma demanda para o ONS, para a ANEEL, para a EPE. Não dá para fazer eletrón passar por decreto em qualquer lugar.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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