iNFRADebate: A preservação da racionalidade da engenharia no setor elétrico – uma necessidade fundamental para o futuro

João Carlos Mello* e Afonso Henriques dos Santos**

O blackout sofrido pelo SIN (Sistema Interligado Nacional) no dia 15 de agosto suscitou uma série de dúvidas, precauções e teorias. Poeira baixada, é hora de analisar o setor elétrico sem buscar culpas e culpados. Revisitar nosso passado é uma boa maneira de aprofundar o debate e trazer à luz compreensões e exemplos para basilar o diagnóstico e as soluções desse problema.

O Brasil se destacou no início do século XX pela rápida expansão daquela nova tecnologia de então: a energia elétrica. Foram importados muitos equipamentos, mão de obra e capital, dadas as condicionantes do país naquele momento. Desta forma, o Brasil estava ombro a ombro com o que se passava nos EUA e na Europa e a partir daí, uma série de medidas e fatos contribuíram para construir o setor elétrico que temos hoje.

Em 1913, houve o marco zero da formação de uma engenharia elétrica nacional, com a criação do IEI (Instituto Eletrotécnico de Itajubá), que hoje é parte da Unifei (Universidade Federal de Itajubá). Depois do passo inicial, surgiu uma série de empresas de engenharia e companhias distribuidoras dos mais distintos tamanhos e composições de capital.

Assim foi até a década de 1930, quando o movimento nacionalista e centralizador dominante na Europa reverberou no Brasil, dando origem ao Código de Águas de 1934, que incorporava regulações para a energia elétrica. Por certo, organizou o setor, mas tirou-lhe a dinâmica liberal de seu começo. Aliado ao novo código, o fim da cláusula de ouro ocorreu um ano antes, pondo fim à garantia de lastro de valor às tarifas públicas. Essa medida levou a incertezas que afugentaram investidores.

No geral, a nova regulação trazia vantagens e desvantagens. A entrada do estado permitiria o desenvolvimento de grandes obras, como Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso, iniciada em 1949, a Usina Hidrelétrica Três Marias, de 1957. Outro ponto favorável da participação estatal foi a interligação entre os estados Rio de Janeiro e São Paulo, que tinham diferentes frequências elétricas – 50 e 60 Hertz, respectivamente. Foram grandes desafios tecnológicos e de engenharia dada a época e proporcionaram uma evolução do Brasil, tanto nos seus recursos humanos como na capacidade de engenharia de projeto, construção e fabricação.

Na década de 1950 houve, ainda, outro marco: o início da construção da Usina Hidrelétrica de Furnas – a primeira acima de mil megawatts – em 1958. Na década seguinte, em 1963,  a criação da Eletrobras contribuiu para consolidar o setor elétrico brasileiro até que, em 1973, foi assinada a Lei 5.899, que dispôs sobre Itaipu e outras providências. O documento criou os mecanismos institucionais para a existência do atual SIN, além de consolidar a parceria de Brasil e Paraguai para a construção da maior usina do mundo naquele momento. A soma desses fatores colocou o Brasil em posição de destaque no setor elétrico mundial, posto que se estendeu até o fim da década de 1970, quando o modelo de financiamento com base em garantias do estado, a defasagem tarifária e problemas macroeconômicos levaram à insolvência setorial. Vale ressaltar que esta falência se deu de forma global, em distintos setores e países.

A resposta a este problema foi lenta, mas veio de forma sólida. Primeiramente através da Constituição de 1988, seguida por leis estruturantes, como a Lei 8.987/1995, que dispôs sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços público, e a Lei 9.074/95, que estabeleceu normas para outorga e prorrogações dessas concessões e permissões. O modelo criado com a Constituição e com as leis de 1995 perdura até hoje, embora tenha sofrido adaptações – mudanças estas que são positivas e negativas. Será que se trata de um modelo  ainda apropriado a estes novos tempos, que agora abrigam a transição energética e o empoderamento do consumidor? Não nos parece.

As mudanças em curso atualmente, que são tecnológicas, econômicas, ambientais e éticas, estão afetando o mundo de uma forma ainda mais profunda do que as transformações ocorridas na década de 1970, que incluíram duas crises do petróleo, uma em 1973 e outra em 1979. O setor elétrico brasileiro não ficou imune a estes momentos, ao contrário: a existência de uma abundância de energia primária renovável de distintos matizes e a dinâmica da sociedade promoveram uma penetração de formas e fontes de energia no sistema que surpreenderam planejadores e operadores do setor, além do próprio regulador. Não fossem os problemas econômicos, este impacto seria ainda maior.

Existem uma série de vantagens nessa intensa expansão renovável. O Brasil mostra força no presente e para o futuro ao protagonizar um movimento que outros países lutam para conseguir, pois não têm a nossa disponibilidade climática e nossa dinâmica. Mas, como responder tempestivamente e positivamente a esta mudança, dados os problemas de nova natureza que aparecem? A resposta é simples: com a mesma capacidade de engenharia que respondemos nas transições passadas e neste artigo foram lembradas.

Os feitos do GCOI (Comitê Coordenador da Operação do Sistema Interligado), criado na Lei de Itaipu (5.899/1973), estabelecendo uma engenharia única para um sistema interligado e de características particulares, devem ser resgatados. Não devem ser copiados, pois a história não se repete. Mas podem servir como inspiração para as ações a serem tomadas neste momento.

O blackout do dia 15 de agosto, que atingiu todo o sistema elétrico brasileiro e afetou diretamente 25% da carga, suscitou muitas discussões apaixonadas. Todavia, por mais que possam ser construtivas e bem-intencionadas, há de se ter paciência, que é um atributo raro deste mundo das mídias sociais. Antes de tudo, há de se compreender este novo cenário elétrico em que vivemos; depois, buscar vislumbrar o mundo em que queremos viver no médio prazo. Aí, então, diagnosticar as causas, e não culpas, do problema vivido e avaliar como se pode reduzir seu impacto sobre a sociedade, afinal, tudo serve a ela. E isto só é possível com muita dedicação, tempo e engenharia de alto nível.

Sem querermos, temos que nos ater ao modismo da palavra resiliência, que vai além da confiabilidade ou redução de risco. Pode-se aumentar a resiliência simplesmente aumentando a capacidade de se adaptar, seja o sistema elétrico, seja o usuário consumidor. A resiliência abrange conceitos muito mais amplos que os que são abrigados nos modelos usuais no setor elétrico. “A operação raramente erra; o planejamento dificilmente acerta”, um dito comum no setor, revela as incertezas inerentes a cada uma destas atividades, que foram por tempos assim compreendidas.

É chegado o momento de reler e reescrever este aprendizado, à luz de uma nova dinâmica da sociedade e do setor elétrico: a operação deve sinalizar aos agentes comportamentos compartilhados que aumentem a resiliência sistêmica, enquanto o planejamento deve explorar cenários de usos e ofertas, à luz de dos objetivos globais e regionais. Há muito se sabe que os planos setoriais se distanciam sobremaneira do realizado. Nada de mal; apenas é algo para ser considerado.

Sem paixões, o que não é fácil neste Brasil de hoje, há de se estudar as experiências internacionais e cruzá-las com os interesses e potencialidades nacionais, além de criar alternativas próprias. Durante uma transição energética, há lugar, ao menos em caráter provisório, para térmicas, hidrelétricas convencionais e PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas). Há também a necessidade de expansão da transmissão, além, claro, de soluções para acomodar inovações como geração distribuída, renováveis, armazenamento, como usinas reversíveis, baterias, e outras tantas tecnologias existentes ou a vir – não esquecendo do aumento da digitalização e de uso da inteligência artificial nas redes (nos novos conceitos de operação e proteção, principalmente).

A expansão das renováveis é uma rota sem volta, fruto das políticas ESG, junto com a queda expressiva nos custos dos equipamentos eólicos e solares na última década. O fim do desconto do fio, devido à Lei nº 14.120/21, acelerou o potencial das renováveis em terras brasileiras. Cerca de 230 GW de projetos estão tentando obter sua outorga, sendo que a nossa capacidade hoje é de 200 GW. Deste volume, 20% é a energia do vento e 80% do sol. Esses recursos naturais são uma dádiva divina para a nação que não pode ser ignorada. O estoque é grande e oferta não é um problema!

Não é possível crer que as fontes renováveis não convencionais sejam um problema, assim como a geração próxima à carga, pois elas vieram para ficar e construir o futuro. Queira-se ou não.

A transição energética mundial possui o trilema apropriado “sustentabilidade, segurança e equidade energética”; no entanto o lema “segurança energética” não pode estar apenas no papel. Esse é um ponto em que os melhores conceitos da engenharia nacional devem ser exercitados ao máximo, nos seus fundamentos. Novidades certamente sempre vão surgir com os avanços tecnológicos, mas, com a histórica e sólida engenharia brasileira de qualidade todas as barreiras podem ser retiradas. Não é difícil fazer a previsão de que o setor elétrico não será o mesmo em algumas décadas. Assim, todos devem se preparar: agentes investidores, usuários, reguladores, planejadores, formuladores de políticas etc.

Não devemos esquecer, também, que a energia elétrica nacional já é 85% renovável. Portanto, a transição energética há muito já começou aqui, desde a primeira crise do petróleo. Continuar esse caminho nas próximas décadas, com os livros de engenharia em mente e em mãos, é garantia de sucesso, como sempre foi para a infraestrutura do nosso setor elétrico nacional.

*João Carlos Mello é presidente da Thymos Energia e diretor-presidente do Cigré Brasil.
**Afonso Henriques dos Santos é professor da Unifei (Unifersidade Federal de Itajubá).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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