Rafael Moreira Mota*
Uma coisa é certa ao empresário que queira se enveredar pela infraestrutura do país: tomará uma surra. Ao apanhar, o sentimento de justiça passará nos seus pensamentos, talvez acompanhado das lições educativas de Graciliano Ramos, que, no conto “Cinturão”, escreveu que “as minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me profunda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural”.
As relações dos empresários com os entes públicos permeiam, basicamente, dois caminhos, sendo um o de prestar serviços de construção civil tendo como contratante direta a Administração Pública ou firmar contratos de concessão e PPP (parceria público-privada), em que ativos são repassados por determinado período ao investidor em troca de contraprestações pré-estabelecidas.
Independentemente do caminho eleito, a chance de apanhar é quase garantida e a surra vem dos mais diversos lugares. Um que ainda surpreendente surge com a negativa da Administração Pública de cumprir cláusulas contratuais que ela mesma estabeleceu, e de obedecer aos preceitos estabelecidos na legislação, como a previsão constitucional que obriga o Poder Público a garantir o justo reequilíbrio econômico-financeiro dos pactos que celebra.
O equilíbrio econômico-financeiro de contratos (não só administrativos) tomou ainda mais relevância, visto que a inflação no setor da construção civil no último ano foi a maior dos últimos vinte e oito anos, tendo alguns insumos de grande importância para obras e serviços da construção, como o aço, sofrido aumentos de preços de quase 100%.
A Constituição Federal e a legislação infraconstitucional, como a nova Lei de Licitações – Lei 14.133/2021 – e mesmo a lei antiga – Lei 8.666/1993 –, preveem a concessão do reequilíbrio econômico-financeiro. Porém, o que faz a Administração? Posterga o quanto possível a análise dos pedidos administrativos manejados pelos particulares, pois conta que a burocracia administrativa e o longo prazo para a resolução de ações judiciais darão mais uma surra no empresário.
Os motivos são variados para se negar os pedidos voltados ao reequilíbrio e continuar castigando o empresário, sendo os mais comuns a alegação de ausência de comprovação, insuficiência de documentos e que o desequilíbrio contratual está abarcado no risco do negócio. Enfim, um emaranhado de subterfúgios que são sempre atribuídos ao contratado – apesar de ser uma obrigação da Administração a de velar pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e, portanto, contribuir com a busca concreta pela solução de intercorrências no pacto. Perpetua-se, assim, a surra do particular ao não se admitir que o pagamento não ocorrerá por ser incorreto, mas sim por falta de orçamento.
Um desavisado acreditaria que a surra poderia cessar se o empresário buscasse a prestação jurisdicional, entretanto essa opção exige dispêndio de tempo e mais custos, com a contratação de advogados, custas judiciais, perícias, recursos etc. A demora na solução judicial e, em alguns casos, a incompreensão do Estado-Juiz findam por muitas vezes desestimular que o particular percorra o caminho litigioso e se conforme com a agressão causada pela Administração.
O cenário de violência, aparentemente, terminaria com a vitória na Justiça. Porém, o castigo continua, pois ainda há de ser percorrida uma trilha extenuante para receber os valores devidos, o que, mesmo após convencer o Estado-Juiz de que estava correto, somente se dará através de precatórios, que não se sabe quando serão de fato pagos.
Além da omissão em manter o equilíbrio econômico-financeiro, outros expedientes adotados pela Administração que perpetuam a surra do empresário podem ser citados, como a negativa/demora injustificada da fiscalização de promover as medições por serviços prestados ou a criação de óbices à conclusão da liquidação da despesa. Ambas condutas com o único intuito de evitar que se deflagre o prazo para pagamento (normalmente de 30 dias) e que o Poder Público se torne inadimplente, dando causa à rescisão contratual pelo contratado.
No conto de Graciliano Ramos, ao menino se pedia que fosse buscar o cinturão para que tomasse mais uma surra e, mesmo após o pai descobrir que não teria motivo para bater, não se reconhecia o equívoco. Quanto aos particulares com o Poder Público, ocorre algo parecido. Espera-se que se conclua que apanhar não é natural ou mesmo comum, com a compreensão pelo Estado (em todas as suas dimensões) de que os efeitos das surras que aplica são nefastos ao empresário e a toda cadeia produtiva a ele associado. Estes possuem importante papel na manutenção de condições para a prestação de serviços públicos, geração de empregos e riqueza e desenvolvimento nacional. Afinal, no Brasil, sem desculpa pela violência e ainda com a surra vindo de todo lado, o risco de matar é concreto.