iNFRADebate: As ferrovias brasileiras precisam se “falar”

Nilson Mello*

Um dos maiores desafios logísticos do país é a diferença de bitolas (distância entre os trilhos) de suas linhas férreas, um conjunto de reduzida interconexão que, se fôssemos ser bastante rigorosos, considerando essa característica, não poderia ser chamado de malha. São, na verdade, sistemas que operam quase sempre de forma isolada, atendendo a uma demanda específica de transporte, resultado de um interesse (histórico) regional ou corporativo, e que precisariam ser interligados visando a dar maior eficiência ao transporte de carga no interior do país e, por extensão, à cadeia produtiva nacional.

O tema faz parte de um dos painéis do seminário virtual (webinar) Logística e Desenvolvimento no Estado do Rio de Janeiro – LogD RJ, a ser realizado no dia 8 de dezembro (neste link), reunindo alguns dos maiores especialistas brasileiros em transportes e logística e contando com a participação de autoridades e parlamentares com atuação no setor.

Especialista em transporte ferroviário, Paulo Roberto Filomeno lista em diferentes artigos técnicos ao menos cinco bitolas férreas no Brasil. Enquanto os Estados Unidos e os principais países europeus consolidaram no século XIX as suas malhas de forma uniformizada com a bitola de 4,7 pés (1,435 metros), o que corresponderia, segundo o folclore do setor, ao eixo da biga romana, o Brasil foi no sentido contrário ao da padronização, implantando, de forma quase aleatória, desde a bitola de 0,6 metro (Cantareira) e de 0,76 metros (Viação Férrea São João Del Rey – Tiradentes/MG), até a bitola de 1,6 metro, predominante, sobretudo, na região Sudeste.

Dessas diferentes bitolas, as significativas para o sistema ferroviário brasileiro, em quilômetros e principais centros atendidos, são as de 1,6 metro e a de 1,0 metro (a “bitola métrica”), sendo nelas, portanto, que devem ser concentrados os esforços de conexão. É preciso dizer também que, se falta ao Brasil uma “malha”, na melhor acepção do termo, faltam também ferrovias em número compatível com as dimensões de um país continental. De acordo com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), o país conta hoje com 27 mil Km de trilhos, praticamente a mesma extensão de vias férreas existente no século XIX, embora essas linhas não sejam mais as mesmas.

Para se ter ideia do déficit ferroviário nacional, basta dizer que temos cerca de 220 mil km de rodovias pavimentadas (e 1,72 milhão de Km contando as não pavimentadas). A erradicação desenfreada e inconsequente de ferrovias a partir dos anos 1950 até bem recentemente talvez seja um dos maiores crimes cometidos por diferentes governos na trajetória republicana – embora não de forma combinada e por razões diversas – contra o patrimônio nacional. O estado do Rio de Janeiro é hoje talvez o mais triste exemplo dessa erradicação ferroviária. Até quase a metade do século passado, os trilhos que saíam da capital fluminense alcançavam toda a Região Serrana (Petrópolis e adjacências), o Vale do Café (Miguel Pereira, Conservatória, Rio das Flores etc.) e a Região dos Lagos, incluindo Cabo Frio.

Essas antigas vias férreas ou não existem mais e suas antigas estações foram transfiguradas em escolas, “mini shoppings” e “centros culturais”,  ou ainda existem, mas estão inoperantes. Dados de 2018 da própria ANTT indicam que 30,6% (8,6 mil km) das linhas férreas do país estão abandonados, sendo que 6,5 mil Km não têm qualquer condição de operação. Para uma melhor compreensão dos desafios ferroviários que devemos enfrentar, cabe lembrar que para cada 1 mil Km de extensão territorial temos no Brasil 3,6 km de ferrovias, enquanto que essa proporção nos Estados Unidos é de 32 Km para 1 mil Km de território.

Importantes investimentos em ferrovias estão em curso (ou com projetos prestes a sair do papel) no país neste momento, entre eles a complementação do trecho final da Ferrovia Norte-Sul, entre Goiás e São Paulo, a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), da Bahia ao Tocantins, a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), conectando Rondônia à Norte-Sul, em Goiás (parte integrante da Ferrovia Transoceânica, que ligará portos brasileiros aos do Pacífico, no Peru), e o próprio Ferroanel, que circundará a cidade de São Paulo, agilizando o tráfego ferroviário de carga no maior centro produtor do país.

Esses importantes projetos, de grande vulto, não devem obscurecer o relevo de projetos complementares, alinhados com o objetivo de integrar a “malha”, estabelecendo a conexão de ferrovias já existentes de bitolas distintas, uma vez que tais iniciativas pontuais, em geral de custo menor, podem ter um gigantesco impacto na melhoria da eficiência logística e na redução dos custos para a cadeia produtiva. Um exemplo de projeto de integração de baixo custo seria a interconexão da malha do Sul de Minas (de bitola estreita), operada pela Ferrovia Centro-Atlântica, com a malha predominante no estado do Rio de Janeiro (de bitola larga, de 1,6 metro), operada pela MRS Logística.

O chamado projeto do “Terceiro Trilho” – há muito discutido, mas inexplicavelmente negligenciado por vários governos nas diferentes esferas – permitiria que a produção do sul de Minas, importante polo do agronegócio, grande produtor de café, milho, cana-de-açúcar e algodão, seguisse um itinerário mais curto para o mercado externo ou mesmo para outras regiões do país, via Porto do Rio. Isso seria possível com a implantação da bitola mista num trecho de ferrovia de menos de 100 Km entre Barra Mansa, no Vale do Paraíba, até a capital fluminense. Há cerca de 15 anos esse projeto chegou a ser estimado em US$ 10 milhões pela Faciarj (Federação das Associações Comerciais, Industriais e Agropastoris do Estado do Rio de Janeiro), cifra irrisória face aos grandiosos projetos ferroviários mencionados acima.

As vantagens dessa interconexão são indiscutíveis. Hoje, a produção do sul mineiro e de parte do Centro-Oeste segue um percurso mais longo e oneroso para o mercado externo, seja pela rodovia Fernão Dias até São Paulo, e de lá ao Porto de Santos, seja por ferrovia, num percurso muito maior, até o Porto de Vitória. Com a interligação das duas malhas e o escoamento pelo Porto do Rio, haveria, portanto, redução dos custos com transporte. Vale dizer que o transporte ferroviário é mais seguro – o que significaria também menos gastos com apólices e outros serviços – e menos poluente, ampliando os benefícios do projeto para toda a sociedade. Ao projeto original do “Terceiro Trilho” de bitola estreita no trecho mencionado, surgiram alternativas técnicas que poderiam ser igualmente avaliadas, como a de uma estação de transbordo ferroviário em Barra Mansa ou a implantação de quatro trilhos, prevenindo o maior desgaste que a via férrea está sujeita no longo prazo  quando adotado o sistema de três trilhos.

Muitas lendas cercam o setor ferroviário, como a do padrão “biga romana” referido de início. Aliás, essa bitola, utilizada nos Estados Unidos e na Europa, é a empregada na Argentina e no Uruguai, o que dificulta a integração comercial regional. Consta que adotamos bitolas diferenciadas no Sul do país para dificultar as operações militares dos vizinhos, em caso de guerra. Será? Bem, o Rio de Janeiro nunca esteve em guerra com Minas e eis que suas malhas ferroviárias não se “falam”. Para o bem da cadeia produtiva e do comércio exterior, as ferrovias brasileiras precisam começar a se “falar”. O projeto do “Terceiro Trilho”, entre Barra Mansa e o Porto do Rio, já seria um bom início.

*Nilson Mello é advogado e jornalista, pós-graduado em Economia e Direito Empresarial, consultor no segmento de logística portuária e transportes marítimos, à frente do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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